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Publicado em número 165 - (pp. 2-9)

Opção pelos empobrecidos: facho que reluz na escuridão

Por Pe. Darci Luiz Marin

(Entrevista com Pe. João Batista Libânio)

Pe. João Batista Libânio nasceu em 19 de fevereiro de 1932, em Belo Horizonte, MG. É licenciado em filosofia, letras neolatinas e teologia e doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Foi diretor de estudos do Colégio Pio Brasileiro de Roma, membro fundador da equipe teológica da CRB-Nacional, primeiro presidente da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER), assessor do Instituto Nacional de Pastoral e nos encontros intereclesiais de CEBs. Lecionou teologia na PUC-RJ, PUC-MG, CENESC de Manaus, PUC-RS onde também foi diretor. Atualmente leciona e é diretor da Faculdade de Teologia no Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte. Dentre suas obras, destacamos: Evangelização e li­bertação (1975), Pecado e opção fundamental (1977), As grandes rupturas socioculturais eclesiais. Sua incidência sobre a vida religiosa (1980), O que é pastoral (1982), A volta à grande disciplina (1986), Fé e política — Autonomias específicas e articulações mútuas (1985), Teologia da Libertação. Roteiro didático para um estudo (1987), Utopia e esperança (1989), Caminho de Deus e caminho dos homens (1990), Revelação a partir da modernidade (1992). Tendo sido procurado pela redação desta revista, aceitou imediatamente o convite que lhe fizemos e nos concedeu a seguinte entrevista.

 

VIDA PASTORAL (VP): Por que, no final dos anos 80, o senhor lançou a ideia da necessidade da utopia e da esperança cristã?

Pe. Libânio: No final da década de 80 estávamos vivendo enorme crise de esperança. Hoje em dia, repete-se, de modo mais grave, a mesma situação. Basta ouvir um pouco de conversa do povo, seguir os noticiários dos jornais e da TV, para dar-se conta de que a maior crise de nosso povo é de esperança, de confiança, de credibilidade nas instituições e pessoas. E alguns prolongam tal crise para dentro da fé.

A Europa e também os Estados Unidos, sob certo sentido, anunciam muitas das crises que depois eclodirão em nosso país, sobretudo no meio letrado e rico. Assim H. Marcuse, filósofo alemão que vive nos Estados Unidos, lançou em 1967 o seu famoso livro: O fim da utopia, traduzido dois anos depois no Brasil. O fim da utopia significou para muitos um terrível vazio de sentido. A juventude francesa no ano seguinte ainda arriscou loucamente lutar para transformar em profundidade não só a estrutura escolar, mas também toda a sociedade. E a derrota foi-lhe duro golpe. Do entusiasmo nasceu a descrença. Antes, a juventude americana também experimentara momentos de grande coragem e utopia na luta contra a guerra do Vietnã, contra o racismo, contra o “establishment” americano, mas pouco a pouco foi sendo cooptada, esvaziada em seus ideais.

O Brasil viveu também seus momentos de utopia e esperança nos anos seguintes ao regime militar. Quem não assistiu comovido àquela cena maravilhosa em Brasília de uma imensa bandeira brasileira sendo levada em júbilo pela multidão? Os militares tinham aviltado os símbolos nacionais e agora o povo os retomava com novo sentido. Quem não se entusiasmou pela campanha das diretas-já, também ela frustrada pelo regime? E os gigantescos comícios populares na campanha eleitoral acordaram a apatia de muitos. Tudo parece que passou como um sonho. E estamos encalacrados numa gigantesca crise sem muita esperança de sair.

 

VP: Estamos próximos à IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. Quais as perspectivas que se abrem para esta próxima Assembleia de Santo Domingo? Ainda que tênue, há esperança de sair dessa “gigantesca crise” de que o senhor fala?

Pe. Libânio: A preparação para a IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano tem-se manifestado, até o momento, sobretudo por meio dos documentos produzidos. Consta-me que já foram escritos seis documentos. De quatro deles tive conhecimento por leitura. Um primeiro texto não passou de um conjunto de afirmações onde se indicava um fato, apontavam-se-lhe as causas, mostravam-se-lhe as manifestações, para em seguida levantar os impactos e desafios (Comisión de estudio de la realidad, IV Con­ferencia General del Episcopado Latinoamericano. Primera aproximación de la realidad del continente latinoamericano, abril, 1989). Eram fatos de ordem econômica, política, cultural, demográfica e religiosa (genérica e eclesial) do continente.

O segundo texto já tinha uma consistência teórica e propugnava uma tese central (Primera redacción del “Documento de consulta”. Para la preparación de la IV Conferencia General del Episcopado Latinoamericano, Documento privado, s/d, s/l.). Algo desastroso, não tanto no campo da história e da análise pastoral, mas especialmente no nível da leitura teológica. Esta assumiu como pano de fundo a questão da autoridade/obediência para interpretar os conflitos e propor a solução pastoral. Em outros termos, privilegiou-se a dimensão política em relação à teologal.

Interpretou a modernidade como insubordinação em face a Deus e à Igreja, mostrando a Reforma, a Revolução Francesa, a psicanálise de Freud como suas causas e expressões. Esses acontecimentos produziram uma desintegração da sociedade e cultura e toca à Igreja oferecer a esta sociedade o exemplo de integração através da prática da autoridade e obediência. São conhecidas as virulentas críticas elaboradas por J. Comblin (“O ressurgimento do tradicionalismo na teologia latino-americana” in REB 50 [1990], pp. 44-73) e por C. Boff, que chama ironicamente tal texto de “hobbesianismo pastoral”. “É Hobbes de mitra escrevendo o Leviatã teológico” (“Hobbesianismo pastoral. Análise da primeira redação do documento de consulta para a IV CELAM” in REB 50 [1990], pp. 191-194). Esta versão permaneceu, para felicidade do CELAM, reservada, já que defendia uma posição tão reacionária que até o Concílio Vaticano I tinha rejeitado em seu tempo.

O terceiro texto foi publicado no Brasil pelas Ed. Loyola. É bem conhecido (CELAM, Elementos para uma reflexão pastoral em preparação à IV Conferência Geral do Episcopado Latinoamericano. Uma nova evangelização em uma nova cultura, São Paulo, Loyola, 1990). O quarto, por sua vez, veio à luz numa tradução de Ed. Paulinas (CELAM, Documento de consulta. Nova Evangelização, promoção humana e cultura cristã, São Paulo, Ed. Paulinas, 1991).

O importante é notar que cada documento foi sendo mais aberto, mais dialogável que o anterior. Houve, portanto; um movimento de abertura. Depois desses quatro primeiros documentos, saíram duas “Relaciones” (Prima et Secunda), a que não tive acesso. Mas por informações soube que, pelo menos, a Secunda Relatio trouxe enorme avanço. Ela é fruto da colaboração direta das conferências episcopais da América Latina. Retoma o método ver-julgar-agir da tradição latino-americana, reafirma as opções centrais de Medellín e Puebla.

Outro sinal auspicioso foi a reunião dos secretários das conferências episcopais da América Latina que deram a pauta para o Documento de trabalho numa linha também pastoralmente aberta. E pelas últimas informações que temos recebido de Bogotá, este texto também se anuncia pastoralmente aberto.

Portanto há sinais de esperança no horizonte de nossa Igreja latino-americana, apesar dos conhecidos fatos de restauração em curso. Além do mais, há um trabalho escondido nas CEBs que vai dar seu fruto espiritual em tal Assembleia. E também não podemos esquecer este mar de oração que se está fazendo nos conventos, nas comunidades. O Espírito de Deus certamente está atuante. E é nele em quem depositamos, em última análise, nossa confiança.

 

VP: A propósito das CEBs, estamos às vésperas do VIII Intereclesial, e as “Diretrizes Gerais da Ação Pastoral da Igreja no Brasil 91-94”, nº 208, elencam assim os desafios pelos quais as CEBs passam:

“— trabalhar mais com as massas e não se fechar em pequenos grupos;

— acolher melhor a religiosidade popular e respeitar mais seu universo simbólico, evitando o perigo de um excesso de racionalismo, principalmente por parte dos agentes de pastoral mais intelectualizados;

— abrir-se ao pluralismo;

— empenhar-se para que a experiência das CEBs se consolide e continue acompanhando as mudanças da sociedade;

— manter uma relação dinâmica entre e vida, dando maior atenção à espiritualidade”.

Qual seu comentário a respeito disso?

Pe. Libânio: As orientações que as “Diretrizes Gerais” oferecem sobre as CEBs são extremamente pertinentes. Tocam os pontos mais candentes. Assim é fundamental que as CEBs assumam o desafio de uma presença mais ativa e significativa junto às massas ainda mais pobres.

Já é bem sabido que a Igreja de Belo Horizonte está levando a cabo um processo pastoral participativo de repensamento de sua presença na atual sociedade. É o projeto “Construir a esperança” (Ver “Projeto pastoral: Construir a esperança” in Perspectiva Teológica 24 [1992], nº 62). No decorrer do processo, estão sendo feitas pesquisas para conhecer a real situação da Igreja de Belo Horizonte. Numa das pesquisas, que tentou traçar o perfil do católico, fomos informados do fato de que a presença da Igreja é escassa nos dois extremos socioeconômico-culturais da sociedade, a saber: na intelligentsia, elite rica, e nas camadas mais pobres e marginalizadas. Estas últimas são trabalhadas pelas seitas.

Esse dado vem confirmar a preocupação das “Diretrizes Gerais” da necessidade de maior ação missionária das CEBs junto a essas massas. Elas são as mais aptas para desenvolverem tal missão. Nisso elas também viverão a sua opção pelos pobres. Pois muitas das pessoas que fazem parte dessa massa marginalizada vivem em situação de maior pobreza.

Nesse trabalho, as CEBs, que nasceram, em geral, no solo da religiosidade popular, deverão defrontar-se com esta religiosidade. Isso poderia parecer um trabalho espontâneo e fácil. Mas acontece que muitas CEBs modificaram sua mentalidade no confronto com uma racionalidade mais crítica, com uma consciência política mais desenvolvida. Tornaram-se elas mesmas mais críticas e dotadas de maior consciência política. Essa transformação não deveria impedi-las de aproximar-se da religiosidade popular na qual viveram tanto tempo. Mais. Poderão ajudar muitas comunidades a evoluírem de uma visão alienante para uma consciência crítica. Deverão, porém, autocriticar-se, no sentido de ver se não perderam alguns valores de piedade e de religiosidade que essas camadas populares fora das CEBs possuem, desenvolvendo uma atitude de respeito em face a seu universo simbólico.

Se essa dupla atitude for conservada, a saber, de ajuda para um processo desalienador, de um lado, e, de outro, de respeito e revisão de suas posições quiçá secularizadas, poder-se-á ter uma pastoral popular pluralista e libertadora. Nem todo movimento liberta­dor tem de assumir a mesma forma e tipo de racionalidade. Há uma racionalidade mais instrumental e outra mais simbólica. As CEBs mais avançadas politicamente poderão usar uma racionalidade instrumental mais elaborada, enquanto outras camadas populares poderão inserir-se nesse mesmo processo com uma mentalidade simbólico-libertadora.

Isso significa que a relação entre fé e vida pode ser estabelecida de maneiras diferentes. Ora se parte mais da vida, da práxis e se chega à fé explicitada. Ora se parte da piedade e religiosidade popular e se chega à vida, à práxis. Ambos os movimentos devem ser respeitados conforme as diversas situações em que se situam as pessoas e comunidades.

 

VP: Ainda sobre as CEBs, como o senhor vê hoje a opção preferencial pelos empobrecidos e a situação das CEBs?

Pe. Libânio: A situação da “opção preferencial pelos empobrecidos” na atual conjuntura é paradoxal, tocando as raias da contradição. De um lado, os empobrecidos têm crescido na América Latina. A conjuntura econômica piorou enormemente com a recessão. Onde parecia que os indicadores econômicos apontavam para uma melhoria da situação, como na Venezuela, assistimos à dramática crise, oriunda, sem dúvida, do arrocho econômico em que está vivendo a população. São indicadores econométricos positivos construídos sobre a degradação social dos pobres.

Doutro lado, aproveitando a crise do Leste europeu e embaralhando conceitos de opção pelos pobres, teologia da libertação e utopia socialista, forças conservadoras da sociedade e da Igreja levantaram suas vozes, denunciando o cansaço socioeclesial de tal opção, as consequências negativas para o interior da Igreja. Soube-se que na Assembleia dos bispos de 1991, voz(es) pediu(ram) que se retirasse do Objetivo Geral da Ação Pastoral da Igreja no Brasil (1991-1994) a menção explícita à opção pelos pobres.

Notícias mais recentes sobre a preparação para a Assembleia de Santo Domingo, baseadas na “Secunda Relatio” feita com as contribuições dos episcopados latino-americanos sobre o Texto de Consulta e na redação do Documento de Trabalho, alegram-nos com a esperança de que a opção pelos pobres continuará sendo mantida e reforçada nas pegadas de Medellín e Puebla. Esta tradição será reafirmada com toda nitidez.

Este nível do discurso eclesiástico não dá conta, nem de longe, da complexidade e da riqueza da opção pelos pobres. Ela se realiza na verdade da prática de tantos e tantos grupos cristãos. Se nalguns lugares houve desânimo, crise, retrocesso por causa de conjunturas eclesiásticas — algumas dolorosas e tristemente conhecidas de todos —, noutros, sobretudo naqueles envolvidos com a preparação do VIII Encontro Intereclesial de CEBs, programado para setembro próximo em Santa Maria, e na preparação da Assembleia de Santo Domingo, o facho aceso dessa opção reluz com nova força na escuridão da atual situação.

Somando, diminuindo, multiplicando e dividindo os algarismos da atual conjuntura, parece que o resultado final é bem positivo. A Igreja do Brasil continua, sobretudo nas suas bases, nos grupos conscientes, em várias Igrejas locais, concretizando com novas iniciativas a opção pelos empobrecidos.

Em relação com ela, pode-se afirmar pratica­mente o mesmo sobre as CEBs. Sofrem as tensões do momento. Regridem em certos lugares pastoreados, ou melhor, “despastoreados”, por pessoas cuja visão não alcança em profundidade o significado histórico e eclesial das CEBs, como elas se vêm desenvolvendo em nosso país, em articulação com a vida e luta do povo.

Por sua vez, em outras regiões, especialmente incentivadas pela preparação para o VIII Encontro, as CEBs nascem, revitalizam-se e desenvolvem-se. Em vista da preparação do VIII Encontro tive ocasião de visitar as comunidades da periferia de Santa Maria, e percebi enorme entusiasmo e expectativa em face de tal evento.

Para os próximos anos preveem-se consistente crescimento das CEBs em muitos lugares, estancamento em outros e sofrimento-diminuição em outros. Entretanto a linha principal aponta para um crescimento pela força do Espírito.

 

VP: Há quem veja nos movimentos eclesiais (bastante estimulados pela hierarquia) possibilidades concretas de evangelização, desde que inseridos na caminhada das Igrejas locais. Como o senhor vê essa parcela da Igreja atual?

Pe. Libânio: Os “movimentos de espiritualidade ou de apostolado”, em geral de leigos, também participam da complexidade e tensão do momento atual. Não se pode dar uma resposta simplista, nem de rasgado elogio, nem de crítica contundente. Os movimentos não são idênticos. A sua presença não tem o mesmo significado em todos os lugares. Poder-se-ia perder-se numa verdadeira casuística, imaginando as situações e os tipos de movimentos que são mais benéficos para a vida da Igreja e quais não. Isso nos levaria longe.

Talvez seja mais fácil propor algumas reflexões mais amplas que podem trazer luz para situações diversificadas. Antes de tudo, pode-se dizer que os movimentos vêm responder principalmente às necessidades das classes médias urbanas.

A pastoral urbana vive certo impasse e cada vez maior conforme cresce a cidade. E um dos nós de estrangulamento está na sua concepção paroquial-territorial. O homem urbano se define não pelo territó­rio onde mora, mas pelos interesses que tem. Se quer fazer esporte, não vai ao clube de seu bairro, mas de seu interesse, status etc. O mesmo vale para todas as suas atividades humanas. E cada vez mais valerá também para as atividades religiosas. Reúne-se para rezar ou frequentar os ritos sagrados onde estes lhe respondem melhor às necessidades espirituais.

Ora, de maneira intuitiva, ainda que talvez não claramente consciente, os movimentos vêm responder a essa nova configuração da cidade moderna. São transparoquiais, transdiocesanos e transnacionais. Quanto mais se desenvolve a sociedade urbana, mais “trans” ela fica. E nesse sentido os movimentos são, como estrutura, uma resposta a meu ver adequada. Não se pode dizer o mesmo do conteúdo que veiculam. Muitos são modernos na sua estrutura, mas transmitem visão de mundo e de Igreja tradicional e caduca.

Eles são resposta a problemas maiores que os locais. A meu ver, o grande problema a que vêm responder é a centralidade da dimensão da subjetividade, a necessidade de dar sentido à vida do homem moderno. As Igrejas particulares respondem, por sua vez, a problemas bem concretos da região. Por isso, eles vão estar estruturalmente em tensão, não diria conflito, com as Igrejas particulares.

Há uma tensão estrutural entre os movimentos e a caminhada da Igreja local. Só a experiência nos vai dizendo em que medida e em que grau há possibilidade de articular os movimentos com as pastorais da Igreja local e em que grau eles conflitam, a ponto de pedir uma tomada de posição da autoridade eclesiástica em defesa da flor mais frágil de certas pastorais e das CEBs.

O futuro da Igreja no mundo moderno parece fazer-se cada vez mais através de presenças pequenas, comunidades de base (no sentido mais geral do termo), carregadas de testemunho e de vivência. Nesse sentido, tanto os movimentos como as CEBs procuram criar clima de vivência pessoal testemunhal da fé. Participam do mesmo movimento maior de resposta à solidão, ao isolamento da cidade moderna.

A reserva maior que faria aos movimentos vai na direção de alertar para o risco de eles usarem e abusarem de seu poder econômico, cultural e “eficiência transnacional” para invadirem o campo das CEBs e de certas pastorais, criando dissensões e até desestruturação de ricas experiências eclesiais. Não tem sentido os movimentos entrarem numa paróquia e começarem a perturbar o que aí já existe.

 

VP: No início dos anos 80 o senhor lançou o livro A volta à grande disciplina”, antecipando o que aconteceu nos anos seguintes. Nesse sentido, qual sua visão para os próximos anos da Igreja?

Pe. Libânio: Nesse meu livro de 1983, a “grande disciplina” tinha um duplo sentido possível: de um reencontro com a grande tradição da Igreja, como fizeram Vaticano II, Medellín e Puebla, ou de uma volta à disciplina de normas externas, prescritivas, pequenas. Parece que o processo atual se delineia mais no segundo sentido.

Alguns aspectos da atual restauração são muito superficiais, tais como, a insistência sobre a veste clerical, certo ritualismo litúrgico, recurso a elementos jurídicos ou legais na resolução de problemas humanos profundos, a coerção à liberdade de escrever, a resistência à opinião pública como fórum de debate, uma visão menor e acanhada da pastoral, um eclesiocentrismo míope em face aos desafios crescentes do mundo moderno e pós-moderno, uma interpretação equivocada do ambíguo surto religioso etc. Por isso eles não resistirão ao embate da realidade e da história. Poderão vingar enquanto houver pressões que os imponham, mas terminadas essas, desfar-se-ão em pedaços.

Há outra “volta à grande disciplina” que tem raízes mais profundas. Insere-se nela esse maravilhoso surto de espiritualidade que nasce de dentro de uma Igreja bem comprometida com a libertação dos pobres. Em íntima ligação com ele, percebe-se no meio dos fiéis um amor acendido pela Escritura. A Bíblia deixou de ser um livro do clero e da academia. Hoje é um livro do povo, que lê, ora em grupos pequenos, ora individualmente, articulando-a com a vida, na esteira da metodologia do Frei Carlos Mesters, que deixou de ser um simples exegeta, para tornar-se criador de verdadeira “escola de leitura bíblica”.

 

VP: Falando de espiritualidade, quais as ideias-chave para se propor hoje uma espiritualidade afinada com a nova evangelização?

Pe. Libânio: Sobre a espiritualidade e nova evangelização indicaria rapidamente duas tendências, que correspondem a duas interpretações diferentes da nova evangelização.

Há uma tendência, ligada à Evangelização 2000 e à Lumen 2000, que pensa a evangelização em termos de anúncio em grande escala, usando os meios de comunicação social. Produzem-se programas televisivos, vídeos, transmissões em escala mundial, eventos portentosos em que se possa anunciar a todo mundo a pessoa do Salvador Jesus. Quer-se no final do milênio oferecer um presente a Jesus de milhões de conversões. Tal perspectiva tem alimentado uma espiritualidade “carismática”, em que as experiências afetivas e emocionais são importantes, sobretudo em grandes eventos celebrativos.

Outra tendência interpreta a “nova evangelização” na linha de Medellín-Puebla, de maior proximidade com os pobres, com sua libertação. E as CEBs e os círculos bíblicos são suas principais formas de vivência e realização. Trata-se de uma espiritualidade bíblica em profunda ligação com a vida e luta do povo. O aspecto celebrativo, também presente, acontece em articulação com a práxis, como o P. Taborda tão profundamente elaborou em seu livro e artigo (Sacramentos, práxis e festa. Para uma teologia latino-americana dos sacramentos, col. “Teologia e Libertação”, IV/5, Petrópolis, Vozes, 1987; “Sacramentos, práxis e festa. Crítica e autocrítica” in Perspectiva Teológica 21 [1989], pp. 85-99).

Aliás, essa temática da espiritualidade já vem sendo tratada há bastante tempo na teologia da libertação (TdL), seja por S. Galilea (A espiritualidade da libertação, Petrópolis, Vozes, 1975) seja pelo próprio G. Gutiérrez (Beber no próprio poço. Itinerário espiritual de um povo, Petrópolis, Vozes, 1984; Falar de Deus. A partir do sofrimento do inocente, Petrópolis, Vozes, 1987). E esta espiritualidade tem salientado as dimensões de conversão e solidariedade, gratuidade e práxis, sofrimento e ressurreição, morte e vida. Eu mesmo produzi um vídeo, pelas Ed. Paulinas sobre a espiritualidade da América Latina.

 

VP: Tem-se impressão que a teologia da libertação, após os ataques sofridos sobretudo na segunda metade dos anos 80, encontra-se em fase de recolhimento. Como ler a atual situação da teologia da libertação?

Pe. Libânio: Um tipo de pensamento pode ser encarado sob um duplo ponto de vista: de pertinência e de contemporaneidade. E a contemporaneidade, por sua vez, pode ser vista à luz da publicidade e da real influência.

Por ocasião da condenação de L. Boff, a teologia da libertação (TdL) esteve na mais alta cotação no mundo da publicidade. Comentava um editor que um dos autores mais vendidos na Espanha, por aquela ocasião, tinha sido o próprio L. Boff. A imprensa nacional e mundial trouxera a TdL para a vitrine iluminada de suas notícias importantes.

A crise do socialismo e alguns acontecimentos eclesiásticos trouxeram uma virada no mundo da publicidade. Caiu sobre a TdL o manto do silêncio. Contudo, a publicidade não pode ser considerada critério sério de verdadeira contemporaneidade. A TdL continua atual sobretudo através de sua presença no mundo da pastoral viva da Igreja, da influência na confecção de documentos da própria CNBB. O texto preparatório das “Diretrizes Gerais”: “Sociedade Brasileira e Desafios Pastorais” (São Paulo, Ed. Paulinas, 1990), contou com a colaboração de teólogos(as) da libertação que lhe marcaram a linha.

No nível da pertinência, a TdL permanece ativa, viva e crescendo. A coleção “Teologia e Libertação”, apesar de dificuldades editoriais e do trâmite burocrático eclesiástico, prossegue suas publicações. As principais casas editoriais, as obras de maior impacto e profundidade teológica, as revistas e artigos de maior vigor e pertinência situam-se no interior dessa tendência teológica.

 

VP: Documentos eclesiais oficiais vêm pedindo para a teologia preocupar-se mais com a doutrina social da Igreja. Qual a percepção da teologia da libertação a respeito?

Pe. Libânio: Está acontecendo fecundo encontro entre a doutrina social da Igreja (DSI) e a teologia da libertação (TdL). Não se trata de nenhuma prescrição, mas de uma mudança de conjuntura. Em geral, a DSI não exercia nenhuma atração sobre os operários, grupos mais de esquerda. Antes, sentiam por ela natural rejeição.

Podem-se apontar várias razões. A linguagem dos documentos pontifícios, frequentemente abstrata, distava muito do universo concreto dos operários e do interesse pela práxis da esquerda. Ao defender a propriedade particular dos meios de produção, ao opor-se à luta de classe, ao defender a religião, a DSI parecia distanciar-se das reivindicações e lutas operárias e tornar-se ópio. As esquerdas desposavam tranquilamente tais teses. A TdL, próxima dos operários e das esquerdas, participou nos seus inícios dessa apatia em face à DSI. E, entrou, como elemento complicador dessa dificuldade em relação à DSI, a triste figura que a democracia cristã (DC) desempenhou quando do golpe militar no Chile e em dados momentos na América Central. A DC, por sua vez, invocava, como sua plataforma política, a DSI. Assim facilmente se identificaram essas posições neocapitalistas, ambíguas e, às vezes, até desastrosas da DC com a DSI.

Atualmente a conjuntura mudou. Muitas afirmações da DSI foram matizando-se através quer de críticas cada vez mais contundentes ao capitalismo, quer de certa aproximação ao socialismo desde João XXIII e sobretudo em Paulo VI e nas encíclicas Laborem exercens e Sollicitudo rei sucialis de João Paulo II. Ademais, muitas críticas que a DSI fazia ao socialismo se verificaram verdadeiras com a queda do mesmo e com o melhor conhecimento de suas contradições.

Hoje a posição da DSI em relação à TdL, e vice-versa, é de mútuo complemento e fecundação. Cada uma pode oferecer à outra perspectivas de refle­xão e dados objetivos próprios e enriquecedores. A DSI tem trabalhado muito questões sociais fundamentais sobre as quais a TdL não se debruçou. E, por sua vez, a TdL possui já uma rica reflexão teológica que pode iluminar a DSI nas suas considerações mais propriamente teológicas.

Vive-se no momento situação privilegiada para um diálogo mais aberto e enriquecedor entre a DSI e a TdL. Os preconceitos de ambas as partes têm condição de serem superados. De um lado, a crise do Leste veio confirmar muitas intuições e críticas elaboradas pela DSI no referente ao socialismo. Frequentemente essas críticas eram encaradas como posição reformista, ou uma terceira via, ou uma sutil defesa do capitalismo. Hoje se verifica que eram pertinentes, ao defenderem com destemor o primado indiscutível da pessoa humana em relação às ideologias.

Doutro lado, a TdL continua sendo importante. A crise do Leste não significa nenhuma cura dos doentes graves do capitalismo que são, em grande parte, os países do Terceiro Mundo. Por isso, uma reflexão teórica sob os ângulos diferentes de abordagem da DSI e da TdL pode ir criando pontes de contato entre ambas.

 

VP: No contexto do V centenário da conquista-evangelização (1492-1992), como o senhor vê a temática das culturas, no âmbito da teologia da libertação?

Pe. Libânio: A temática das culturas tornou-se central por duas razões fundamentais. A razão mais importante é a tomada de consciência nos setores intelectuais da crise cultural por que se passa na sociedade moderna e pós-moderna. A tensão, entre “sistema” e “mundo vivido” (cultura) vem sendo trabalhada de modo especial pela Escola de Frankfurt, máxime por J. Habermas. Em termos mais eclesiais, o papa João Paulo II tem insistido nessa tecla da cultura. E estabeleceu como tema de Santo Domingo a “Nova Evangelização, promoção humana e cultura cristã”.

Entretanto, já no início da década de 80, por ocasião do Congresso da Associação de Teólogos do Terceiro Mundo, em São Paulo, os teólogos negros americanos criticaram os teólogos da libertação latino-americanos por terem-se fixado quase unicamente na análise das contradições socioestruturais, descuidando os aspectos ético-culturais. A crítica procedia em parte. Pois a urgência e coincidência da opressão socioestrutural especialmente econômica sobre as massas pobres e também negras e indígenas fizeram que os teólogos se concentrassem em tais estruturas.

Nos últimos anos, porém, a temática cultural vem ocupando os teólogos de nosso continente. P. Marcello de C. Azevedo dedicou longo e profundo trabalho sobre as CEBs, sob o aspecto cultural-antropológico (CEBs e inculturação da fé, São Paulo, Loyola, 1986). L. Boff escreve um livro sobre nova evangelização (Nova evangelização, Perspectiva dos oprimidos, Petrópolis, Vozes, 1990) de modo especial na perspectiva das culturas oprimidas. Este é o tema do próximo encontro intereclesial de CEBs, que já produziu interessante texto-base sobre esta temática. Como se vê, ela está hoje no centro de nossas preocupações.

 

VP: Uma mensagem aos sacerdotes, religiosos(as) e agentes de pastoral, tendo em vista a missão de evangelizar no hoje da história.

Pe. Libânio: Somos chamados, nós cristãos, mais do que ninguém, a ser “profetas da esperança” num horizonte fechado. Os pobres vivem ainda mais pobremente. A corrupção é estampada todos os dias nos jornais. Os homens públicos, que deveriam ser modelos de honestidade, sustentados pelo dinheiro do povo, aproveitam-se, em muitos casos, de sua condição política para enriquecimentos rápidos e duvidosos.

Por outro lado, toda nação tem reservas espirituais. Sem dúvida, nosso povo as tem e, em grande parte, alimentadas pela fé cristã. A partir desse tesouro espiritual acumulado, pode-se pensar uma nova evangelização. Já não se trata tanto de comunicar conhecimentos, transmitir um anúncio já conhecido. Hoje em dia, a evangelização passa, sobretudo, pelo testemunho e pela vivência comunitária. Ou se quisermos, por uma vida comunitária que seja testemunho. Depois de dois milênios, parece mais atual do que nunca o que Lucas nos relata nos Atos. Os primeiros cristãos impactavam os pagãos pela sua vida comunitária, repartindo a Palavra, o pão da eucaristia e o pão do sustento numa fraternidade comovente. E o autor desconhecido da Carta a Diogneto, também desses inícios do cristianismo, nos tece um programa de vida cristã em que os cristãos conseguiram, ao mesmo tempo, viver o cotidiano igual a todo cidadão na simplicidade dos fatos, mas informavam-no com um espírito e ânimo novo e diferente.

Assim, em meio aos acontecimentos que nos irmanam todos os brasileiros, os sacerdotes, religiosos(as) e agentes de pastoral, somos chamados a evangelizar através de fé e esperança firmes na presença atuante do Espírito de Deus e na certeza de que caminhamos para uma vida para além desta vida. Essa dupla certeza não nos aliena, mas nos devolve com mais entusiasmo para a realidade concreta, na certeza de que ao perder-nos no serviço aos irmãos estamos ganhando-nos para a vida juntamente com eles.

Pe. Darci Luiz Marin