(Entrevista com D. Paulo Evaristo Arns)
D. Paulo Evaristo Arns nasceu em 14 de setembro de 1921, em Forquilhinha, Santa Catarina. Ingressou na ordem franciscana em 1939. Fez seus estudos de Filosofia em Curitiba e Teologia em Petrópolis. Foi ordenado presbítero em 30 de novembro de 1945. Em 1947 foi a Paris, onde se doutorou em Patrística e Línguas clássicas em 1952. De volta ao Brasil, dedicou-se ao magistério e, simultaneamente, por mais de dez anos, exerceu seu ministério sacerdotal entre os pobres dos morros de Petrópolis. Em 1963 foi sagrado bispo. Por quatro anos exerceu o trabalho de Vigário Episcopal da Região Norte da Arquidiocese de São Paulo, cargo que ocupava quando da nomeação para Arcebispo Metropolitano de São Paulo, em outubro de 1970. No Consistório de 5 de março de 1973, Paulo VI nomeou-o Cardeal. É o atual Cardeal-Arcebispo de São Paulo.
VIDA PASTORAL (VP): Atravessamos atualmente uma etapa da história em que se defende a globalização, a competição, as vantagens da tecnologia… por um lado, a exclusão e o desemprego, por outro. Como ficam as exigências éticas (morais) anunciadas pelo evangelho nesse contexto?
D. Paulo: Hoje, no fim de mais um milênio, a defesa da vida dos pobres do Sul do planeta, somada ao extermínio das nações aborígines de tantos continentes, exige de todos resposta solidária. Desde Medellín todos anunciávamos que um surdo clamor nos vinha, do mundo dos empobrecidos como sinal de alerta à comunidade dos cristãos. Nos empobrecidos e excluídos nega-se hoje a ética e a vida humana de todos os povos. Muitos afirmam que a hegemonia do mercado poderia salvar a humanidade, mas o que vemos é a miséria e a dor em todos os continentes e uma idolatria pecaminosa deste sistema neoliberal. Nós, cristãos, cremos no homem e na pessoa como critério de todos os sistemas e economias. É a serviço dos pobres que a tecnologia e a evolução devem existir. Nos sonhos de Deus a dignidade humana ocupa lugar central. Hoje a fidelidade aos valores mais sagrados, como a honestidade, a solidariedade, a justiça e a paz, tem de assumir lugar de destaque em nossa vida política e eclesial. Estamos diante de um dos maiores desafios da humanidade: partilhar bens e saber com todos, e possibilitar a salvação de nosso planeta de predadores vorazes de madeira, vidas e riquezas e da tragédia ecológica do solo e de nosso meio ambiente global. O anúncio de vida, e vida plena, deve continuar sendo nosso horizonte prático. Assumo plenamente as lúcidas palavras do episcopado brasileiro no seu Documento nº 54, das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora, parágrafo 196: “À luz da análise da atual situação socioeconômica e ético-política, parece-nos que os serviços mais urgentes que as comunidades cristãs podem prestar à sociedade brasileira são o empenho na luta contra a pobreza e a exclusão e a contribuição para a criação de um novo sentido de responsabilidade na ética pública”.
VP: A crise ética pela qual estamos passando faz com que haja deformação das consciências (conforme já denunciavam os bispos na 31ª Assembleia Geral da CNBB em 1993). O que fazer para rearticular a ética de modo que auxilie a retomada consistente da consciência (que não se deixa corromper) das pessoas?
D. Paulo: Em primeiro lugar, despertar as consciências adormecidas e manipuladas pela violência e pelo medo.
Em segundo lugar, salvar as vidas e os corpos lá onde as forças e os esquemas da morte os destroem, sendo profetas, organizados e firmes, na luta não violenta pela paz.
Constituir, a cada dia e ano, milhares de pequenas comunidades eclesiais de base, esta verdadeira rede de solidariedade a oferecer base e firmeza para gestos e lutas em favor da vida. Sem a força dos pobres articulados não há ética nem nação que subsista. A constituição da cidadania e o resgate dos direitos secularmente postergados é tarefa perseverante e árdua.
Estar sempre em sintonia com os princípios éticos fundamentais, como: a dignidade da pessoa humana, o trabalho com primazia diante do capital, a solidariedade e a liberdade de cada pessoa, a subsidiariedade e, sobretudo, a caridade.
É preciso que também nós, da própria Igreja, mudemos nossos comportamentos e atitudes de vida e solidariedade, assumindo ainda mais em nossa própria existência aquilo que proclamamos como valor aos outros. Coerência é a exigência ética da atualidade. Assim nos lembra Santo Agostinho: “Por causa da miséria humana, até a vida dos bons está coberta, se não de barro, ao menos de poeira. E, se não se aplicarem diariamente ao exercício da penitência, podem acabar em estado lamentável” (Serm. 131, 3.5).
VP: Durante a realização do Sínodo dos Bispos sobre “A reconciliação e a penitência na missão da Igreja” o senhor fez uma intervenção (publicada em “Vida Pastoral” 116, maio-junho/84, pp. 11-12) falando sobre o pecado social. Passaram-se mais de dez anos da realização desse Sínodo. O que o senhor diria hoje sobre pecado social?
D. Paulo: A principal luta da nossa Igreja é e sempre será a de salvar vidas, culturas e corpos machucados pelo pecado estrutural, social e pessoal. A informação e a solidariedade rápidas e urgentes continuam sendo mecanismos necessários e eficazes para enfrentar a injustiça institucionalizada. Salvar vidas que correm o risco de desaparecer exige dos cristãos atitudes solidárias e coletivas audazes e caridade articulada, quando são milhões que dependem desse gesto e desse amor político.
Hoje os direitos dos pobres ameaçados pelo sistema neoliberal exigem novamente que a Igreja empreste sua voz, seus espaços religiosos e seu próprio vigor evangélico em favor da vida de tantos pequeninos.
Como bem afirma o texto-base da Campanha da Fraternidade de 1996: “… existem no mundo estruturas sociais e econômicas que podem ser chamadas de estruturas de pecado. São a presença daquilo que pode ser chamado de mal objetivo no coração do mundo e enquanto tal constituem um antissinal do Reino, o seu contrário” (nº 145).
E ainda prossegue o texto da CF-96: “A superação dessas estruturas coloca-se como imperativo evangélico. Essa superação só pode ser realizada mediante ações políticas que, com seus meios específicos, transformem as estruturas e promovam a criação de uma sociedade mais justa e fraterna” (nº 147).
Nesses últimos anos temos também nos esforçado em construir essas ações para edificar uma cidadania plena no Brasil. Cristãos maduros e engajados são excelentes cidadãos e testemunhas vivas contra todo pecado.
VP: A encíclica “Evangelium Vitae” (março/95) sublinha o valor e a inviolabilidade da vida humana. Encontramos aí a preocupação com “a multiplicação e o agravamento das ameaças à vida das pessoas e dos povos”. Partindo dessa constatação, o que fazer para romper esse ciclo antievangélico da cultura antisolidária atual?
D. Paulo: Todo aquele que se dispuser a defender e a visitar presos, pobres e excluídos — como o Cristo o fez e exigiu em seu Evangelho — será caluniado, perseguido e tratado como “coitado” no Brasil atual.
Na história colonial, os massacres contra os pequeninos foram inúmeros e sanguinários: Canudos, na Bahia, a guerra do Contestado, nas fronteiras do Paraná e Santa Catarina, a Cabanagem no Norte do País… Foram praticados grandes crimes contra a humanidade. Pessoas que queriam terra e dignidade foram assassinadas e destruídas barbaramente. Há, já, na história brasileira, um grande e pesado pecado original que precisa ser lembrado e constantemente penitenciado.
Não podemos jamais nos esquecer do fim genocida do Quilombo dos Palmares e da morte, sob chicote e na escravidão, de milhões de negros trazidos escravos para nossa terra e até hoje não reconhecidos em sua dignidade de filhos prediletos de Deus.
Recentemente os crimes e perseguições cometidos contra as crianças de rua em todas as capitais brasileiras, particularmente em São Paulo, Rio e Recife, são clamores que chegam aos céus e incomodam não só nossa sociedade, mas o próprio Deus Criador.
Quem toca e machuca uma criança está tocando e machucando o Deus Criador. É pecado imprescritível e necessita ser abolido com urgência. Uma criança de rua, qualquer criança de rua de qualquer canto pobre deste planeta é uma imagem única de Deus e somente ela poderá salvar e preservar a imagem bela e digna de um mundo novo e verdadeiro.
Fazer essa memória, resgatando a história de dores de nosso povo e defendendo as crianças, é a tarefa primordial de qualquer cidadão neste Brasil atual. Não temos tempo a perder nem desculpas a oferecer. Lembramos novamente Santo Agostinho: “Deus não condena quem não pode fazer o que quer, mas quem não quer fazer o que pode” (Serm. 54,2).
VP: Nossa sociedade vive acentuado relativismo de valores. A encíclica “Veritatis Splendor” (agosto/93) recomenda a importância de recuperar a verdade na vida cristã. Como fazer isso hoje, sem prejudicar a liberdade das pessoas?
D. Paulo: O critério que sempre deve nos animar é o amor e a prática concreta desse amor. Verdade e liberdade bebem dessa fonte inesgotável. Poderia alguém pensar, dentro do horizonte cristão, numa verdade sem amor e na liberdade sem amor? Jamais. Seria impossível!
O amor é o grande voto de confiança de Deus na humanidade. Ele nunca passará, pois é a própria graça de Deus oferecida gratuitamente.
É esta a maneira como o caro sacerdote redentorista Bernhard Häring, professor de Moral de renome internacional, nos apresenta o desafio hodierno da moral. Diz Pe. Häring: “Na minha teologia moral e pastoral, a doutrina sobre a graça com que Deus se nos antecipa, o voto de confiança que ele deposita em todos e cada um de nós para nos encorajar, é o pensamento mais profundo que penetra no coração”.
A busca da verdade que tanto nos motiva deve ser feita com pedagogia semelhante à do Cristo encarnado; com a delicadeza, respeito e tolerância de quem serve à verdade. Jesus revela o Pai pela ação e pela palavra viva de seu testemunho. Jesus apresenta o Reino e envia o Espírito santificador para nos tornar livres e verdadeiros diante de nós mesmos e diante de Deus.
Assim, unir verdade e liberdade é tarefa atual. Os Padres conciliares assim nos lembram, no texto sobre a Revelação Divina, do Vaticano II: “Assim, pois, com a leitura e o estudo dos livros sagrados a palavra de Deus se difunda e resplandeça (2Ts 3, 1), e o tesouro da Revelação, confiado à Igreja, preencha mais e mais os corações dos homens” (DV 26).
Apresentar a verdade tocando corações e propor livre adesão ao Cristo por amor e sem autoritarismos de nenhuma espécie: eis o “como”, tão difícil, mas sempre necessário.
VP: A partir de sua longa e incansável busca da defesa dos direitos humanos e da paz, o senhor diria que de fato podemos afirmar hoje “Brasil: nunca mais”? A opressão não teria tomado outros caminhos na atualidade? Quais os desafios que eles nos põem?
D. Paulo: Como escrevi, em 3 de maio de 1985, no prefácio do livro “Brasil: nunca mais”: “Confiamos que este livro, composto por especialistas, nos confirme em nossa crença no futuro”, até hoje continuo mantendo essa esperança e essa fidelidade ao Cristo e ao povo que tanto amo.
De fato, estamos precisando com urgência de um Judiciário mais isento e independente, com uma justiça efetiva e rápida; uma polícia mais bem equipada, preparada e selecionada profissionalmente, evitando assim o contágio e a manipulação pelo poder paralelo do tráfico de drogas; uma educação para a cidadania e para os direitos humanos em todos os níveis da vida pública e privada, particularmente nas escolas e comunidades de todo o país; uma reforma agrária feita com vigor e coragem pelo governo federal e em cada Estado de nossa Federação, para promover a vida e a produção abundante de alimentos e de qualidade de vida; uma economia voltada para o homem e suas necessidades básicas, e não este sistema de exclusão neoliberal que está destruindo o emprego, a saúde e a dignidade de nosso povo; uma Igreja sempre mais fiel ao Cristo e ao seu Evangelho, no respeito aos outros credos e culturas.
No diálogo construiremos a paz e a verdade.
VP: No ano que passou, a Igreja de São Paulo lembrou 250 anos de história diocesana, 50 anos de sua vida presbiteral e 25 anos de episcopado. Qual a mensagem que o senhor gostaria de registrar aos sacerdotes e agentes de pastoral, partindo desses eventos importantes para a Arquidiocese de São Paulo?
D. Paulo: Nesses 25 anos de pastoreio de nossa grande e amada cidade de São Paulo, posso dizer, como pastor jubilar, que muito foi feito graças aos leigos, religiosos, padres e bispos com quem trabalhei. Foi esse esforço conjunto e cotidiano que me fez e continua fazendo feliz e realizado.
Ao ouvir os clamores do povo e ao articular forças e meios para a eles responder, conto com gente generosa e inteligente, capaz de grandes gestos de amor e de ternura. Deus me concedeu a imensa graça de poder trabalhar com uma Igreja tão viva e plena do Espírito Santo, Igreja que luta pela vida e sabe louvar o Pai Criador em sua infinita misericórdia.
Muito tentamos fazer, com a graça de Deus, e ainda mais faremos, assumindo hoje novas causas em favor da esperança, especialmente junto aos aposentados e aos portadores de AIDS.
Com a proteção do Apóstolo Paulo e de Maria, nossa mãe, cantaremos o Magnificat, na busca constante de tornarmo-nos sempre mais servos de Javé e testemunhas do Cristo ressuscitado, com uma fé viva e libertadora.
Como os antigos Padres da Igreja, peço que a nossa imagem de Igreja e de pessoa humana (“imago creationis”) possa transfigurar-se a cada amanhecer, pelo batismo e na mesa eucarística, na semelhança com o Cristo, imagem recriada (“imago recreationis”), pela graça do Divino Espírito Santo.
Pe. Darci Luiz Marin