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Publicado em janeiro-fevereiro de 2015 - ano 56 - número 301

Igreja em serviço à sociedade

Por Antonio Manzatto

O Vaticano II compreende a Igreja presente no mundo como servidora dele na proclamação da boa-nova da salvação em Jesus Cristo. O papa Francisco retoma esse ensinamento, lembrando que o mundo todo precisa ser salvo, e por isso a confissão de fé e a ação eclesial têm uma dimensão social que lhes é inerente e precisa ser realizada como contribuição dos cristãos na construção de uma sociedade de paz.

“Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG 176).

1. Igreja e mundo

Na Antiguidade, a Igreja enxergava sua relação com o mundo como uma relação de oposição. Isso transparece no período da Igreja primitiva e também na época patrística. Por mundo se entende, evidentemente, não o universo físico, mas sobretudo o social. Falando de uma Igreja contra o mundo, fala-se de uma Igreja contra a sociedade tal qual organizada naquela época. E não é difícil entender o porquê, pois, afinal, se vivia o início do cristianismo em ambiente de confrontação e mesmo de perseguições, sobretudo por parte do Império Romano. Daí que ser contra o mundo era uma postura quase natural dos cristãos, que proclamavam que Jesus é o Senhor, e não César.

A evolução do tempo e da história faz também evoluir a compreensão que a Igreja tem de sua relação com o mundo. No período medieval, então, haverá uma espécie de identificação entre Igreja e mundo, não apenas porque o cristianismo passou a ser a religião oficial do Império Romano e dos Estados que lhe sucederam, mas também porque o mundo todo, ao menos do lado ocidental, passou a ser cristão. Não havia maiores diferenças entre ser cristão e ser cidadão e o batismo era a ocasião em que se oficializava a pertença do indivíduo ao grupo social. Assim, a Igreja era o mundo e o mundo era a Igreja, uma relação de identificação que perdurou praticamente durante todo o período medieval.

O surgimento da modernidade provoca nova organização dessa relação, ainda que de maneira unilateral. O mundo passa a compreender-se como algo diferente da Igreja, isto é, a sociedade começa a organizar-se fora da influência eclesiástica. O símbolo é a Revolução Francesa, da qual decorre a compreensão de que os Estados podem organizar-se como entidades separadas das influências religiosas cristãs. Ainda que não se preconize a laicidade do Estado, que virá a ocorrer mais tarde, ainda assim já na época se compreende a sociedade separada da Igreja. A reação da Igreja foi de insatisfação com essa situação, e seu combate ao modernismo todos conhecemos bem. Ainda hoje há setores na Igreja que combatem essa situação e anseiam pela volta ao regime de cristandade, por motivos igualmente conhecidos.

2. Vaticano II

A separação entre Igreja e mundo faz que o mundo evolua tanto na organização social quanto na capacidade técnica, enquanto a Igreja permanece como que em passo medieval, incapaz de acompanhar os avanços vividos pelas sociedades. A inspirada iniciativa de João XXIII de convocar o Concílio Vaticano II cria uma oportunidade de reaproximação entre a Igreja e a sociedade com seus anseios. A esse empenho eclesial de reencontrar e acompanhar o passo das sociedades humanas chamou-se aggiornamento, atualização. Eis a grande realização do Concílio Vaticano II: possibilitar que a Igreja consiga de novo dialogar com o mundo e a humanidade que o habita. Mais ainda, a Igreja se reconhece, nas palavras da Gaudium et Spes, servidora do mundo, pois não é a Igreja que precisa ser salva, mas o mundo.

Essa noção de Igreja servidora do mundo é que comandará a ação pastoral nos anos seguintes ao concílio, exatamente com a Igreja atentando ao fato de que sua ação é, antes de tudo, pastoral. Por ação pastoral se entendem não apenas as atividades religiosas, como orações e celebrações, e administrativas, próprias da organização eclesiástica, mas também aquelas que se preocupam fundamentalmente com a organização da vida das pessoas e das sociedades. Têm lugar, então, os grupos pastorais que atuam junto ao mundo do trabalho, da cultura, da política e assim sucessivamente. A pastoral é entendida como a ação do pastor, cuja função é cuidar do rebanho. Não é o rebanho que existe em função do pastor, nem é função do rebanho cuidar do bem-estar do pastor. Ao contrário, é o pastor que existe em função do rebanho e deve dele cuidar. A Igreja vê sua ação como a de cuidado com o mundo, com as pessoas que o integram. É nesse sentido que ela é servidora do mundo e lhe anuncia e testemunha a salvação.

As preocupações com as situações concretas vividas pelos povos passam a figurar na agenda da ação pastoral. A paz, o desenvolvimento dos povos, o estabelecimento da justiça entre as nações, as possibilidades com relação ao trabalho, à cultura e o acesso aos benefícios da sociedade são assuntos constantes nos documentos eclesiais e vivos nas preocupações dos pastores. A Igreja abre-se ao mundo, reconhecendo sua autonomia, a autonomia das realidades terrenas, e, por sua vez, o mundo aceita dialogar com a Igreja como uma interlocutora confiável. As preocupações sociais integram o horizonte de preocupações da Igreja, pois “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (GS 1).

Paulo VI, o papa que implementou as decisões conciliares, escreveu em 1974 importante documento sobre a ação evangelizadora da Igreja, a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. Ocorre que rapidamente houve queixas no sentido de que a Igreja estaria abandonando sua missão religiosa, anunciar o evangelho, e assumindo um discurso social que não lhe dizia respeito. O papa, então, lembra que “entre evangelização e promoção humana existem laços profundos”, de tal forma que não se pode pensar a evangelização como ação eclesial sem que as preocupações com a promoção humana lhe acompanhem. A preocupação fundamental da Igreja é com o ser humano, com todo homem e o homem todo, para dizer como o papa Paulo VI na Encíclica Populorum Progressio.

Foi nesse horizonte do Vaticano II que se organizou no Brasil a Campanha da Fraternidade, e atualmente os bispos lhe dão um conteúdo de alcance social, que relaciona a fé com a vida prática das pessoas e promove intensa campanha pela humanização das relações na sociedade. Neste ano de 2015, o tema é como que a compilação disso que até agora dissemos: “Fraternidade, Igreja e sociedade”; o lema, “Eu vim para servir”, lembra o compromisso do serviço dos discípulos de Cristo.

3. O papa Francisco

É convicção de todos que Francisco humanizou o papado. Seus gestos, palavras e preocupações mostram claramente o papa como um ser humano e, mais que isso, como alguém preocupado com as pessoas. Sua postura é intencional e nitidamente pastoral, e seu ensinamento precisa sempre ser entendido nessa direção. Trata-se do pastor que se preocupa com o rebanho, daí sua atenção às periferias existenciais, à prática da misericórdia, a uma Igreja que precisa sempre estar pronta a acolher, perdoar e curar feridas. Uma Igreja que não pode se satisfazer em si mesma, mas precisa missionariamente ir ao encontro do mundo, das pessoas e da sociedade, para ali anunciar e testemunhar o evangelho de Jesus, que Aparecida chamava de evangelho da dignidade humana.

A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, documento papal que fala sobre a nova evangelização e alude, propositalmente, aos dois documentos que trazem o ensinamento do Vaticano II sobre a ação eclesial, Gaudium et Spes e Evangelii Nuntiandi, tem um capítulo inteiro dedicado à dimensão social da evangelização. Francisco parece dar um passo além na compreensão da relação entre o anúncio da Igreja e a organização da sociedade. Não se trata de querer impor ao mundo um modelo social, como no período de cristandade. Nem se trata de discurso que quer acomodar a vivência eclesial às situações do mundo contemporâneo. E também não se trata de aceitar, passivamente, um distanciamento entre a Igreja e o mundo. Trata-se de retomar a postura conciliar da Igreja como servidora do mundo pelo anúncio e testemunho profético. Por isso, falando a cristãos, a Evangelii Gaudium afirma que a evangelização tem, mais que consequência, uma dimensão social.

O passo avante é importante. Não se vê simplesmente a ação social de promoção humana como consequência da ação evangelizadora da Igreja, algo que parece ser óbvio. Também não se diz que o trabalho da Igreja não tem nada a ver com a sociedade, como se fosse simplesmente anúncio de verdades e práticas religiosas, das quais a caridade seria como que uma derivação de perfeição. Francisco afirma que a ação social é uma dimensão da ação evangelizadora, de tal forma que não há evangelização sem promoção humana. Não se trata de consequência, mas de composição: a preocupação com a forma de organização da sociedade é componente do trabalho evangelizador. Afinal, lembra ele, não é apenas a pessoa que é salva pela ação de Deus, mas também suas relações (EG 178). Assim, a caridade é constitutiva da essência da Igreja e de sua missão (EG 179), de maneira que, mesmo no querigma, existe um conteúdo social, em forma de convivência e ajuda ao próximo (EG 177). E o papa ainda aponta dois lugares prioritários onde deve se manifestar de maneira decisiva a dimensão social da ação evangelizadora: a realidade de sofrimento dos pobres e a implementação da cultura do diálogo para a vivência da paz.

4. Opção pelos pobres

A opção pelos pobres é mais teológica que política ou sociológica (EG 198) e, por isso, Bento XVI já a caracterizava como implícita na fé cristológica (DAp 392). Trata-se de reconhecer, em primeiro lugar, a presença de Deus no meio dos pobres, onde ele se revela e oferece um caminho de salvação para toda a humanidade. Paulo já a afirmava como critério da fidelidade ao evangelho de Jesus (Gl 2,10), de tal forma que, sem ela, não há verdadeiramente evangelização (EG 199). Por isso, Francisco afirma sonhar com uma Igreja pobre para os pobres (EG 198).

Se, de um lado, não se pode apenas ter atenção à ortodoxia e se preocupar com eventuais erros doutrinais, por outro, a opção pelos pobres não se concretiza apenas em um ativismo expresso em programas de assistência ou promoção humana, mas também em uma presença solidária junto aos pobres (EG 199). É um estar ao seu lado, ser com os pobres, preocupar-se com sua realidade pessoal e humana, em espírito de comunhão e convivência. A Igreja não é alheia ao mundo dos pobres, e estes não podem ser estranhos na comunidade eclesial. O amor aos pobres é que diferencia a opção pelos pobres de qualquer outra prática ideológica, evitando sua instrumentalização (EG 199).

Ainda mais, a opção pelos pobres não se realiza apenas em ações de assistência em suas necessidades. Elas são necessárias e não podem ser esquecidas, mas não são suficientes. Porque não se trata apenas de alimentá-los ou proporcionar-lhes possibilidades de sobrevivência, mas sobretudo eliminar as desigualdades, a fim de que o mundo possa se constituir em ambiente onde o valor da pessoa humana seja privilegiado. “A dignidade da pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política econômica” (EG 203), lembra o papa, e as causas da pobreza precisam ser atacadas para que a sociedade seja mais justa e humana (EG 202-206).

A ação cristã se transforma, por isso, em compromisso político que visa transformar não apenas o coração das pessoas, como se isso bastasse para transformar automaticamente as situações de injustiça no mundo. Deve-se transformar também as bases estruturais da sociedade, e por isso nenhuma comunidade cristã pode ficar alheia à realidade de vida dos pobres. Os discursos vazios, as práticas religiosas não comprometidas ou mesmo as simples críticas ao governo não dizem da qualidade da vida de fé da comunidade eclesial, mas sim seu efetivo compromisso com a realidade de vida dos pobres, em atitude de solidariedade (EG 207). Ou, para dizer em outras palavras, a comunidade cristã morre se não houver em seu interior efetivo compromisso com a vida daqueles que são os últimos da sociedade.

5. Cultura do diálogo

A paz é fruto da justiça, já lembrava Paulo VI, e por isso ela não pode ser entendida como simples ausência de violência ou imposição de silêncio dos mais fortes sobre os mais fracos. Não é o modelo da Pax Romana que deve ser seguido, porque isso não significa verdadeira paz (EG 218). Esta se baseia no respeito à dignidade das pessoas, aos direitos humanos e aos direitos dos povos. Não se deve escamotear os conflitos, mas enfrentá-los com serenidade para que eles possam ser superados.

Por isso Francisco lembra que o estabelecimento da paz não se faz simplesmente na interioridade das pessoas ou no nível interpessoal. Deve-se atingir um nível mais amplo e profundo, aquele da formação da sociedade e da convivência entre os povos. Uma sociedade ou povo não se constitui por simples aglomeração de pessoas, mas por relações estabelecidas entre elas e governadas por princípios que valorizam o bem comum, segundo os ensinamentos da Doutrina Social da Igreja. Por isso o papa ensina que “o tempo é superior ao espaço” (223-225), o que permite pensar a construção social a longo prazo sem a obsessão de resultados imediatos. Ensina ainda que os conflitos não podem ser ocultados, mas “a unidade prevalece sobre o conflito” (EG 226-230), ou seja, em vez da tentativa de impor sobre os outros a solução do grupo que se quer vitorioso, o princípio da unidade exige uma capacidade de convivência na diferença como proposta de solidariedade.

Além disso, “a realidade é mais importante que a ideia” (EG 231-233), isto é, o pensamento está a serviço da compreensão da realidade e não pode ocultá-la, como acontece com “os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projetos mais formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria” (EG 231). Finalmente, Francisco lembra que “o todo é superior à parte” (EG 234-237), com a proeminência do bem comum sobre os possíveis benefícios particulares, sabendo que se deve trabalhar naquilo que é local e particular, mas com perspectiva ampla de universalização e de totalidade.

Estes são princípios que norteiam o diálogo social e, ademais, o trabalho de evangelização. Não se constrói a paz sem a cultura do diálogo. Para a ação eclesial propriamente dita, ele aponta três campos imprescindíveis na atualidade: o diálogo com os Estados, com a sociedade e com os que não são católicos (EG 238). Nesse diálogo, a Igreja fala a partir de seu lugar específico, o da experiência da fé, sem se apresentar como portadora de soluções para todas as questões da humanidade. Ela participa deste encontro com sua história e sua experiência, juntando-se a outras forças sociais e acompanhando as propostas que melhor se apresentam no momento, lembrando sempre a permanência dos princípios da dignidade humana e do bem comum (EG 139).

A postura dialogal da Igreja é importante no contexto atual até para ela mesma, pois significa a superação da perspectiva de cristandade, na qual o religioso tem a solução para cada questão e a sociedade se organiza à luz de seus princípios ou definições. Hoje a sociedade é plural e, como a construção da paz não se faz por imposição, deve-se cultivar espaços de encontro e interação sobre os diferentes pontos de vista e propostas. A perspectiva é de diálogo amplo, que se estabelece com todos, com “a gente e sua cultura, e não com uma classe, uma fração, um grupo ou uma elite”, pois o que se busca não é a formação de “uma minoria esclarecida ou um grupo testemunhal […] mas um pacto social e cultural” (EG 239). O que se quer não é uma solução universal, já que ela será sempre parcial e contextualizada, nem uma apresentação de verdades conceituais que se querem impor por proselitismo, mas uma espécie de consenso que possibilite a convivência em paz, a fim de que se possa avançar na integração social de todos. Esse consenso será sempre limitado e provisório, precisando ser reconstruído pelo diálogo permanente estabelecido entre os diferentes.

Aqui se tem toda uma perspectiva diferente do que se constrói com o trabalho evangelizador. A nova evangelização não se resume à simples catequese, entendida como ensinamento de fórmulas doutrinais, ou à realização de celebrações ou momentos devocionais que emocionem ou atraiam multidões. É claro que tudo isso pode ser feito; contudo, o que se busca é a prática da fraternidade em vista do estabelecimento de uma sociedade de convivência, onde as diferenças sejam respeitadas e ninguém seja excluído, a começar pela integração dos pobres e dos sofredores.

6. Teologia latino-americana

É verdade que a Igreja da América Latina se caracteriza por uma preocupação social bastante pronunciada, e isso vem de longa data. As comunidades eclesiais de base, por exemplo, atuaram decididamente na participação política em vista da conquista de melhores condições de vida para a população. A Igreja no Brasil, como um todo, caminhou bastante nessa direção e a própria realização, a cada ano, da Campanha da Fraternidade é testemunha disso. Muito do que se conseguiu em avanço na sociedade brasileira, a começar pela conquista da redemocratização, contou com a participação dos cristãos e da Igreja. É verdade também que, de tempos para cá, a preocupação social cedeu lugar a outras práticas eclesiais, algumas mais preocupadas com certa interiorização do sentimento religioso. Em certo sentido, a Igreja preocupou-se mais em olhar para si mesma, seu interior e sua organização, do que para seu lugar na sociedade e a realidade do mundo que a cerca.

O papa Francisco parece indicar o caminho da retomada das preocupações sociais. É verdade que a sociedade mudou bastante nos últimos anos e o discurso teológico-pastoral de décadas passadas não pode simplesmente ser aplicado na atualidade. A teologia tem consciência disso e por isso avançou nos últimos anos, também aquela que leva o nome de teologia latino-americana. O discurso foi atualizado, mas permaneceu a preocupação com os pobres e com a organização de uma sociedade da qual todos possam participar. Não é de estranhar que o papa latino-americano retome as intuições e práticas fundamentais da Igreja do continente e as apresente, renovadas, a todos os cristãos.

 Fiel ao Vaticano II e à realidade dos pobres tal qual apresentada pela teologia da Igreja na América Latina, Francisco insiste no trabalho evangelizador que converta, além dos corações, as estruturas da sociedade em vista da concretização do Reino de Deus. O discípulo missionário de Jesus Cristo, lembra o papa, não se satisfaz em viver sua fé apenas em comportamentos religiosos, mas vai além, traduzindo nos atos cotidianos a convicção de que o Reino de Deus está presente no mundo e se pode viver em sua dinâmica por meio da solidariedade com os pobres e o fortalecimento dos laços de fraternidade entre todos, em um relacionamento novo que permita o respeito às diferenças, aos direitos humanos e à integridade da criação.

7. Igreja e sociedade

A fé cristã não pode ser reduzida ao domínio privado da vida. Aliás, lembra Francisco, nenhuma convicção religiosa pode sê-lo. Se a sociedade atual é plural, também no aspecto religioso, isso não significa a “privatização das religiões, com a pretensão de reduzi-las ao silêncio e à obscuridade da consciência de cada um ou à sua marginalização no recinto fechado das igrejas, sinagogas ou mesquitas” (EG 255). O diálogo ecumênico e inter-religioso não se esgota no respeito às diferentes formulações doutrinais, mas alcança propostas que visam ao estabelecimento da paz no espaço público. O respeito devido a quem não crê não pode se impor arbitrariamente, silenciando as convicções religiosas de quem crê. Afinal, a religião não visa preparar o crente apenas para viver no outro mundo, mas também para viver neste mundo, transformando-o em outro, onde reine a justiça, a tolerância e a fraternidade. Este parece ser o ponto central do ensinamento de Francisco, o qual a Campanha da Fraternidade pode aprofundar, no sentido de perceber a função social da religião e, mais que isso, a dimensão social do trabalho de evangelização.

A fé não se reduz ao privado, pois comporta implicações sociais. A convicção da fé cristã pode, ou deve, levar o crente à manifestação mais contraditória da mística do amor ao próximo: a da prática política, própria do discípulo missionário de Jesus Cristo. Afinal, a pregação da Igreja é bem mais que o anúncio de algumas verdades religiosas, pois é o anúncio da chegada do Reino de Deus. A Igreja não se anuncia a si mesma nem tem um fim em si mesma, mas está a serviço do Reino, exatamente como Jesus fez durante sua vida. Trata-se de anunciá-lo e fazê-lo acontecer, sem resumir a fé ao culto ou à oração, mas envolvendo-os no compromisso com uma nova sociedade, mais humana e solidária. Afinal, o Reino de Deus realiza-se em novas relações: de filiação estabelecida com Deus e de fraternidade estabelecida entre as pessoas.

Não deixa de ser curioso notar certas tendências culturais atuais, algumas às quais se adere rápido demais, como as do racionalismo ou de um laicismo exagerado, que não aceitam a afirmação da dimensão social da fé cristã. Há também tendências eclesiais que agem assim, como o conservadorismo, que quer guardar a fé no domínio do privado, sem aceitar suas implicações sociopolíticas. Lembram que na sociedade há quem não crê e, por isso, não se pode impor-lhes convicções religiosas ou derivadas da religião; ou então lembram o caráter confessional da teologia e a prática de fé como interiorização espiritual. Não é sem interesse notar que o discurso religioso conservador se liga a um discurso social dito progressista, talvez porque a ideologia dominante de ambos seja a mesma, a de guardar os benefícios da sociedade para aqueles que a dominam, evitando a partilha dos bens sociais. É preciso aqui recuperar o caráter profético do anúncio do Reino e da proclamação da fé, também para denunciar os interesses que se escondem atrás de belos e elaborados discursos, até porque faz parte do trabalho de evangelização a denúncia das idolatrias. Francisco, aliás, denuncia também as novas idolatrias que fundamentam o sistema social atual (EG 55-56), combatendo-as para que se possa construir uma sociedade humana.

O trabalho de evangelização não quer apenas repetir o que já foi feito como proclamação de verdades doutrinais. Deve-se proclamar, sim, a chegada do Reino de Deus e caracterizá-lo como o fez Jesus, como novas relações estabelecidas entre todos, pois todos são irmãos e filhos de Deus. A proclamação da chegada do Reino não isenta a Igreja do envolvimento na construção de uma nova sociedade, de um mundo novo onde todos possam ser integrados, a começar pelos últimos. Por isso, a proclamação da dignidade de toda pessoa humana, do estabelecimento da justiça nas relações sociais e da necessária construção da paz no respeito a todos é parte integrante do trabalho eclesial em seu serviço ao mundo, realizado em espírito de diálogo e como contribuição para o desenvolvimento dos povos.

Bibliografia

FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 24 nov. 2013.

PAULO VI. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, 8 dez. 1975.

PAULO VI. Carta Encíclica Populorum Progressio, 26 mar. 1967.

VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, 7 dez. 1975.

Antonio Manzatto

Presbítero da Arquidiocese de São Paulo, doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina (1993) e professor titular da Faculdade de Teologia da PUC-SP. E-mail: [email protected]