Publicado em número 128 - (pp. 9-16)
Igreja Católica e liberdade religiosa nas constituintes do Brasil
Por Pe. José Oscar Beozzo
I. INTRODUÇÃO
Em 15 de novembro deste ano o povo elegerá a Assembleia Nacional Constituinte, cujos trabalhos terão início em 31 de janeiro de 1987.
Sindicatos de trabalhadores rurais; sindicatos operários e de profissionais antigamente “liberais”, hoje assalariados; movimentos e grupos de mulheres, de favelados, de mutuários do BNH, de negros, de povos indígenas, de comunidades de base estão mobilizados, discutindo a Constituinte e indicando candidatos para a próxima Assembleia. Muitos desses segmentos da população brasileira ingressam, pela primeira vez, como atores sociais e políticos, organizados, na luta para influir na elaboração da nova Carta Magna brasileira.
A forma de convocação proposta pelo presidente Sarney e já aprovada no Congresso, rejeitando a eleição de uma Assembleia Constituinte distinta do Congresso ordinário, limitará, certamente, a influência dos movimentos populares e dos seus representantes. A indicação dos candidatos dependerá dos partidos, controlados, quase todos, pelos políticos que herdamos da situação anterior e pelas mesmas elites dirigentes que passaram, sem maiores problemas, da velha para a “nova” República.
Em que pese essa limitação, uma maior mobilização e articulação do movimento popular em torno de uma plataforma clara de suas reivindicações pode assegurar um espaço constitucional novo, voltado para os direitos dos despossuídos, dos trabalhadores, das mulheres. Por isso mesmo, desenha-se também uma intensa mobilização de empresários, banqueiros e grandes proprietários de terra, visando limitar o ímpeto reformista da Carta.
Outra novidade, nesta Constituinte, é que setores importantes da Igreja Católica e de várias Igrejas Evangélicas entraram no debate constitucional, respaldando uma pauta ampla de reivindicações dos movimentos populares e da sociedade civil, em geral, e não limitada simplesmente aos interesses das Igrejas.
Propomo-nos, neste artigo, a recolher, nas várias Constituintes, o debate acerca da liberdade religiosa dos cidadãos, do lugar da religião e das Igrejas na sociedade e nas relações com o Estado, bem como o papel desempenhado pela Igreja Católica no debate constitucional.
II. AS ASSEMBLEIAS NACIONAIS CONSTITUINTES E A IGREJA CATÓLICA NO BRASIL
1. Constituinte de 1823
“A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império” (art. 5º — Constituição de 1824).
A independência política do Brasil em relação a Portugal, em 1822, levou o país a buscar um novo ordenamento jurídico. Este passa pelo projeto de Constituição elaborado por uma Comissão, pelos debates e resoluções da Assembleia Constituinte e, finalmente, pela sua dissolução e outorga de uma Carta pelo Imperador.
Três questões centrais ocuparam os legisladores:
1. O conflito de poder latente entre a Assembleia Constituinte e o Imperador, pois uns consideravam “a Assembleia fonte de todo o poder, recebido diretamente do povo”, enquanto outros achavam que “o Imperador é um poder, senão superior, pelo menos igual”[1].
2. A questão da cidadania, num país onde a maioria da população era constituída por escravos, libertos e não proprietários. Havia, ademais, a presença de grande número de portugueses, entre os quais o próprio Imperador, parte da nobreza do paço e dos oficiais do Exército, sem contar a poderosa classe dos comerciantes.
3. A questão da liberdade religiosa.
Ao mandar cercar, pelas tropas, a Assembleia Constituinte em 12 de novembro de 1823, D. Pedro I resolveu o primeiro conflito, a seu próprio favor, retirando dos representantes do povo o direito de elaborar a Carta Magna. Impôs à Nação uma Constituição cujo princípio basilar foi o Poder Moderador, espécie de quarto poder, exercido pelo Imperador, fora e acima das instituições políticas, fossem elas legislativas, executivas ou judiciais.
O segundo tema é constituído de um impasse que persiste até hoje. Começamos nossa trajetória como nação, como uma grande maioria de excluídos dos direitos de cidadania por serem escravos, por não serem proprietários de bens de raiz, indústria ou comércio, com renda líquida anual de 100$000 ou por serem negros e mulatos libertos, por não professarem a religião do Estado. Ao subsistirem, até hoje, profundas desigualdades reais, a igualdade formal perante a lei é apenas uma ficção. Uma parcela importante da população, para não dizer uma maioria substancial, ainda hoje não goza dos direitos de cidadania e continua exposta ao arbítrio e truculência da polícia, ao descaso dos juízes, à exploração econômica, à escravidão disfarçada em fazendas e à discriminação racial. Essa população está privada de trabalho, de saúde, de habitação, de instrução e de uma família estável.
O terceiro tema, o da liberdade religiosa, objeto de apaixonados debates na Assembleia, é tomado pelo Imperador como um dos pretextos para a dissolução da 1ª Constituinte: “Se a Assembleia não fosse dissolvida, seria destruída nossa santa religião…”[2].
Na Assembleia, dos 90 Constituintes, 16 eram padres e 1 bispo — o do Rio de Janeiro, que presidia os trabalhos. O projeto da nova Carta declarava no seu artigo 16: “A religião católica, apostólica, romana é a religião do Estado por excelência, e única mantida por ele”. O artigo não provocou maiores discussões, pois mantinha a situação vigente a do padroado régio. O ponto nevrálgico encontrava-se no artigo 7º, dedicado à garantia dos direitos individuais, entre os quais o da liberdade religiosa. Essa liberdade era explicitada no art. 14: “A liberdade religiosa no Brasil só se estende às comunhões cristãs..”, as outras seriam apenas toleradas e sua profissão inibia o exercício dos direitos políticos (art. 15).
Uma corrente mais liberal, tendo à frente o pe. Muniz Tavares defende a liberdade religiosa dos cristãos e o dever do Estado de proteger essa liberdade. Outros atacavam a nova liberdade, como liberdade pródiga, não solicitada pela nação e aceitavam apenas a tolerância religiosa em relação aos estrangeiros, mas não aos naturais do país. Outros nem essa tolerância queriam, pois o estrangeiro é que devia adaptar-se aos costumes e à religião do país e não vice-versa.[3]
O princípio da liberdade religiosa foi aprovado em plenário, mas dissolvida a Assembleia, o que irá vigorar é a Constituição outorgada de 1824, onde a religião católica é declarada a religião do Império, sendo todas as outras (e não apenas as cristãs) “permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo” (art. 5º). Essa restrição fará com que, até a República, os templos protestantes, tanto os dos luteranos no sul (a partir de 1824), como os das Igrejas Congregacional, Presbiteriana, Batista e Metodista (segunda metade do século XIX) não tivessem torre, fachada ou quaisquer sinais exteriores que indicassem sua qualidade de igrejas. A profissão de outra religião que não fosse a católica não inibia a aquisição da cidadania brasileira, mas coarctava fortemente os direitos políticos. O não católico, podia votar nas listas paroquiais, mas não candidatar-se a deputado, ser magistrado ou pertencer ao conselho de Estado, pois em todos esses cargos devia-se jurar “manter a religião católica…”.
A contrapartida ao regime de religião de Estado, era a submissão da Igreja Católica ao aparato do Estado. Competia ao Imperador nomear e prover os benefícios eclesiásticos (art. 102, § 2); conceder ou negar o beneplácito aos decretos dos concílios e letras apostólicas e quaisquer outras constituições eclesiásticas que não se opusessem à constituição (§ 14).
A ingerência do Estado na vida da Igreja descia até a nomeação dos professores de seminário, aprovação dos currículos e indicação dos livros de textos a serem aí utilizados. Os privilégios da Igreja Católica traziam por sua vez graves transtornos aos não católicos: na ausência do registro civil, o batismo católico foi por muito tempo o único documento civil hábil. Até 1863, os casados perante ministro de sua Igreja, viviam oficialmente em concubinato e seus filhos eram considerados ilegítimos. Os cemitérios não admitiam o enterro de não católicos e os inúmeros cemitérios ingleses, alemães e norte-americanos em cidades brasileiras, eram, de fato, cemitérios anglicanos, luteranos, presbiterianos ou israelitas.
2. Constituinte de 1891
“É vedado aos Estados, como à União:
— Estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício dos cultos religiosos” (art. 11, § 2).
A situação anterior trazia embaraços à Igreja, ao Estado, aos cidadãos. Após 1870 as elites dirigentes laicizam-se rapidamente. Não tarda a estalar o conflito entre a Igreja e o Estado a propósito de franco-maçons, membros das irmandades religiosas. A crescente imigração estrangeira tornava cada vez mais difícil manter cidadãos de segunda categoria, por razões religiosas. À Igreja era difícil suportar a intervenção do Estado em seus assuntos internos, e que ministros confessadamente liberais ou maçons pudessem intervir na nomeação de bispos ou vigários, vetar professores de seminários, cercear a entrada de noviços nas ordens religiosas.
Proclamada a República, uma das primeiras medidas do Governo Provisório foi decretar a separação entre a Igreja e o Estado, através do decreto 119/A de 7 de janeiro de 1890. De autoria de Rui Barbosa, esse decreto foi negociado em seus termos com o bispo do Pará, D. Macedo Costa — baiano como Rui Barbosa, e seu antigo professor em Salvador.
Por um lado, o decreto restitui a plena liberdade à Igreja, liberando-a da ingerência indevida do Estado, por outro, declara o caráter inteiramente laico do Estado, além de decretar a liberdade de culto e a equiparação legal entre todos eles. Extingue-se o padroado régio e o Estado deixa de considerar os ministros religiosos como seus funcionários e pagar-lhes a côngrua, decorrido um ano do decreto. Rompem-se assim os laços morais, econômicos, políticos e jurídicos entre a Igreja Católica e o Estado.
Na pastoral coletiva de março de 1890, os bispos festejam a nova liberdade conquistada no quadro republicano, rejeitam, porém a separação entre a Igreja e o Estado e a liberdade pública de outros cultos. A posição dos bispos leva a uma radicalização da posição liberal, nos meses seguintes, e esta transparece na Constituição do Governo provisório, baixada pelo decreto nº 510 de 22 junho de 1890, assim como no projeto de Constituição de 23 de outubro de 1890 a ser submetido ao Congresso Constituinte. Ali se mantém não apenas a separação entre a Igreja e o Estado e a liberdade de cultos, mas propõe-se a expulsão dos jesuítas, a proibição das ordens religiosas, a nacionalização dos bens eclesiásticos, a instituição do casamento civil, a laicização dos cemitérios e a proibição do ensino religioso nas escolas. Temeroso o Governo de que a Igreja levasse uma grande representação de padres para o Congresso Constituinte, introduz um artigo draconiano na legislação eleitoral. Trata-se do art. 26: “São inelegíveis para o Congresso Nacional: os religiosos regulares e seculares, bem como os arcebispos, bispos, vigários gerais ou forâneos, párocos, coadjutores e todos os sacerdotes que exercerem autoridade nas suas respectivas confissões” (Decreto 914 — 23/10/1890).
Serão as bancadas do Ceará e de Minas Gerais, com deputados católicos de outros Estados que evitarão, durante a Constituinte, uma posição jacobina em relação à Igreja.
A Constituição de 1891 guarda, na sua substância, as grandes linhas do decreto de separação entre a Igreja e o Estado, cuidando, porém de seus desdobramentos em todos os campos da vida da sociedade:
— Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens… (art. 72, § 3).
— A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita (§ 4º)[4].
— Os cemitérios terão caráter secular… Ficando livre a todos os cultos religiosos, a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis (§ 5).
— Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos (§ 6).
— Nenhum culto ou Igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados (§ 7).
— Por motivo de crença ou de função religiosa, nenhum cidadão brasileiro poderá ser privado de seus direitos civis e políticos, nem eximir-se do cumprimento de qualquer dever cívico (§ 28).
Na verdade, esse artigo constituía-se numa verdadeira cassação branca dos direitos políticos dos cidadãos brasileiros pertencentes às ordens, congregações ou comunidades religiosas, proibidos de alistarem-se como eleitores (art. 70, § 4).
Também as mulheres eram cidadãs de segunda categoria, excluídas do exercício do voto e da representação política.
No campo da liberdade de cultos, esta só era efetiva para os católicos e para os protestantes, sendo ferozmente perseguidos, pela polícia, e destruídos os locais de culto das religiões afro-brasileiras, sob o pretexto de perturbação da ordem pública, de exercício ilegal da medicina, prática do curandeirismo ou mesmo sem qualquer pretexto.
Na prática, muito da legislação republicana em matéria religiosa permaneceu letra morta pela força da tradição anterior e pela ausência da administração do Estado nos vastos interiores do país. Em muitas cidades do sertão os cemitérios não foram secularizados e continuaram sob a administração de irmandades religiosas. Por todo o interior o batistério e não o registro civil continuou sendo o único documento dos pobres. Antônio Conselheiro, na Bahia, pregava abertamente a desobediência civil em relação ao casamento, perante os oficiais do Estado. Por impossibilidade prática, o povo continuou se juntando e depois regularizando as uniões quando passava o padre ou chegava o missionário, pregando as santas missões. Ainda hoje em dia, passados quase cem anos, o Estado continua valendo-se dos documentos expedidos pela Igreja, para processos de aposentadoria, comprovante de casamentos e de parentesco, pela simples razão de que são os únicos existentes entre as populações pobres e afastadas.
A hierarquia eclesiástica não aceitou, facilmente, a nova situação de orfandade em relação ao Estado, em que pese a liberdade conquistada. O caráter laicista do Estado, no campo escolar, tornou-se o espinho das relações entre o poder civil e o eclesiástico. A Igreja irá despender um enorme esforço para criar, ao lado das escolas leigas do Estado, sua própria rede de escolas confessionais, limitadas, porém ao segundo grau, pois as escolas de primeiro grau eram obrigatoriamente gratuitas. Nasceu daí grave distorção: a Igreja ausente do ensino primário, salvo nas colônias italianas e alemães do sul do país, concentrou-se em colégios de segundo grau, só acessível às elites econômicas e sociais.
3. Constituinte de 1934
“À União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado:
— Estabelecer ou subvencionar cultos religiosos ou embaraçar-lhes o exercício.
— Ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou Igreja, sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo” (art. 31, § 2 e 3 — o grifo é nosso).
A I Guerra Mundial e a crise de 1929 haviam abalado o modelo agrário-exportador e a autossuficiência das elites republicanas. O país havia se tornado mais complexo, sobretudo nas cidades, com uma crescente classe operária e segmentos médios ligados aos serviços e a burocracia do Estado. A Igreja passara a aceitar a República, embora continuasse combatendo seu laicismo, já mitigado ao longo do tempo. Em alguns Estados, como Minas Gerais, a reaproximação era mais profunda, a ponto de ser permitido o ensino religioso nas escolas, em 1928. A revolução de 1930 acelerou as mudanças no país e a Igreja, sob a liderança do Cardeal do Rio de Janeiro, D. Leme, tenta obter uma alteração constitucional no que tange ao lugar da religião e da Igreja na sociedade e nas relações com o Estado. A pressão se faz através de grandes manifestações cívico-religiosas no ano de 1931: a primeira, em 31 de maio, quando da vinda da imagem de Nossa Senhora Aparecida ao Rio de Janeiro, atraindo uma multidão de meio milhão de pessoas; a segunda, em outubro, por ocasião da inauguração do Cristo Redentor, no alto do Corcovado. O cardeal Leme apresenta-se ao chefe do Governo Provisório acompanhado de cinquenta bispos e solicita a introdução do ensino religioso, facultativo, nas escolas públicas. Obtém-se o decreto, embora sua regulamentação encontrasse tropeços e fosse sendo retardada.
As eleições para a Constituinte em 1933, levaram a Igreja à intensa campanha para que os católicos se alistassem como eleitores, para que se introduzisse o voto feminino e para que os católicos cerrassem fileiras em torno de um programa mínimo, só votando nos candidatos que se comprometessem a defendê-lo na Constituinte. O programa da Liga Eleitoral Católica constava de dez pontos:
“1. Promulgação da Constituição em nome de Deus.
2. Defesa da indissolubilidade do laço matrimonial, com a assistência às famílias numerosas e reconhecimento dos efeitos civis ao casamento religioso.
3. Incorporação legal do ensino religioso, facultativo nos programas das escolas públicas primárias, secundárias e normais da União, do Estado e dos Municípios.
4. Regulamentação da assistência religiosa facultativa às classes armadas, prisões, hospitais etc.
5. Liberdade de sindicalização, de modo que os sindicatos católicos, legalmente organizados, tenham as mesmas garantias dos sindicatos neutros.
6. Reconhecimento do serviço eclesiástico espiritual às forças armadas e às populações civis como equivalente ao serviço militar.
7. Decretação de legislação do trabalho, inspirada nos preceitos da justiça social e nos princípios da ordem cristã.
8. Defesa dos direitos e dos deveres da propriedade individual.
9. Decretação da Lei de garantia da ordem social contra quaisquer atividades subversivas, respeitadas as exigências das legítimas liberdades políticas e civis.
10. Combate a toda e qualquer legislação que contrarie, expressa ou implicitamente, os princípios fundamentais da doutrina católica.”[5]
Dos partidos exigia-se o compromisso mínimo com os três princípios referentes à família, à escola e às forças armadas, os pontos 2, 3 e 4 do programa da LEC. A Igreja monta uma estratégia de cerco ao Estado, indo direto aos mecanismos mais sensíveis da formação dos valores e da representação do mundo: a família, a escola, sem descuidar desta outra instituição-chave, pois igualmente nacional e com funções diretamente ligadas ao exercício do poder no Estado, que são as forças armadas.
Durante os trabalhos da Constituinte, essas posições acabaram sendo integradas à Carta Magna de 1934, mantendo-se a separação entre a Igreja e o Estado, a liberdade de cultos, mas abrindo caminho para uma política de colaboração entre a Igreja e o Estado, expressa no adendo final do art. 31. Depois de reafirmar a proibição republicana de aliança do Estado com qualquer Igreja ou culto, acrescenta-se “sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo”.
Essa colaboração recíproca traduziu-se de modo particular no campo da assistência social: orfanatos, asilos, hospitais, creches; no campo escolar, com subvenções a escolas, colégios e, bem pronto, a faculdades e universidades católicas; no campo trabalhista, os Círculos Operários Católicos tornaram-se importantes correias de repasse de programas assistenciais dirigidos às classes trabalhadoras.
No quadro do populismo, as instituições da Igreja engrossaram a vasta rede do clientelismo do Estado. Essa situação mereceu um comentário amargo no Plano de Emergência da Igreja do Brasil, em 1962: “O Governo, a menos que se altere fundamentalmente a praxe estabelecida, firma convênios de Poder Temporal a Poder Espiritual, mas expõe, depois, os bispos a esmolar, nas antecâmaras ministeriais, verbas orçamentárias, em bem do povo, como se fossem favores pessoais…”[6].
4. Constituinte de 1946
A questão da redemocratização do país e de sua modernização no campo do trabalho e da economia, estiveram no centro dos trabalhos da Constituinte de 1946. No que tange à religião, mantém-se o princípio republicano inalterado desde 1891, o da separação entre a Igreja e o Estado e o da independência religiosa deste último. Reafirma-se, por outro lado, o princípio de colaboração no que tange ao bem comum, aprovado na Carta de 1934.
Propicia o Estado uma base material mais tranquila para o exercício do culto e de atividades como as dos partidos políticos, instituições de educação e de assistência social, ao prever para as mesmas a isenção de impostos (art. 31, V-b).
Reafirma-se, nas garantias e direitos individuais que “é inviolável a liberdade de consciência e crença, e assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública e os bons costumes” (art. 141, § 7).
Surgiram emendas à esse artigo, visando eliminar a cláusula restritiva à liberdade de culto, a partir do conceito de ordem pública e bons costumes. Sob o pretexto de perturbação da ordem pública, acabavam os cultos afros, sendo colocados sob o arbítrio de autoridades policiais locais, de nada valendo o preceito constitucional de inviolabilidade de crença e de livre exercício do culto. A emenda de Caires Brito da Bahia foi rejeitada, tendo continuado os abusos e arbitrariedades contra os cultos afro-brasileiros, os únicos obrigados até hoje a retirar na Polícia, alvará para o seu funcionamento.[7] Seria impensável que uma paróquia católica ou templo protestante se submetesse a essa arbitrariedade ou vexame. Cria-se, pois, uma discriminação intolerável e um tratamento que vem ferindo preceito constitucional que considera todos os cidadãos e cultos iguais perante a Lei.
Também são mantidos na Carta de 46 os preceitos de 1934 relativos a matéria religiosa: efeito civil do casamento religioso (art. 163, § 1 e 2), ensino religioso facultativo nos estabelecimentos escolares, de acordo com a confissão religiosa do aluno (art. 168, § 5), assistência religiosa às forças armadas (art. 141, § 8). Os cemitérios guardam seu caráter secular, mas permite-se a todas as confissões religiosas praticar neles os seus cultos. Inova-se, porém, ao permitir que associações religiosas, na forma da lei civil, mantenham cemitérios particulares (art. 141, § 10).
Dá-se redação mais clara ao § 28 do art. 72 da Constituição de 34 onde se abria caminho para objeção de consciência, por motivos religiosos. Em 1946 garante-se, de modo mais amplo, que nenhum cidadão será privado de seus direitos, por “motivo de convicção religiosa, filosófica ou política” (art. 141, § 8). Esse foi, talvez, o preceito mais violentado no país, durante os 21 anos do regime militar instaurado em 1964. Ele já havia sido, entretanto, desconhecido, logo após a sua promulgação. No clima da “guerra fria” e da política de blocos que opôs Estados Unidos à União Soviética no imediato pós-guerra, foram cassados, em 1947, os parlamentares eleitos pelo Partido Comunista Brasileiro e cancelado o registro do Partido.
5. Constituinte de 1987
Ela surge no horizonte como exigência da sociedade, não apenas para remover o chamado “entulho autoritário”, mas para colocar as bases de uma profunda e real mudança das condições de vida da maioria da população.[8]
Os vinte anos de arbítrio atingiram também profundamente a Igreja que se distanciou de uma demasiada intimidade com o Estado, para formar, ao lado de outras instituições da sociedade civil, a denúncia da violência, do arbítrio, da violação dos direitos humanos, do cerceamento das liberdades públicas, da liquidação do Estado de direito, da censura, da ditadura e da exploração econômica, da submissão ao capital e aos bancos estrangeiros. Suspenso, porém, o arbítrio na chamada transição para a “Nova” República, continuaram a cair lavradores, presidentes e advogados de sindicatos, sacerdotes, religiosas e agentes de pastoral sob a violência de jagunços nos infinitos conflitos de terra.
A pregação para a nova Constituinte coloca menos a questão dos direitos das Igrejas e muito mais a dos direitos das maiorias em nosso país: direito à sobrevivência e à segurança, ao trabalho e à moradia, à saúde e à educação, enfim à participação política e social, plena e respeitada.
Assim mesmo gostaríamos de elencar algumas questões que estão nos debates e na consciência dos cidadãos, na do movimento popular e ainda na consciência dos cristãos:
1. Liberdade sindical, com o desatrelamento das organizações sindicais da tutela do Estado.
2. Garantia efetiva do direito de greve.
3. Medidas visando assegurar o pleno emprego, como prioridade número um da ordem econômica e seguro-desemprego.
4. Reforma agrária visando não apenas dar terra aos que trabalham, mas eliminar a dominação econômica e social, apoiada no latifúndio, na manutenção de grandes áreas para reserva de valor e comércio de terras. Reforma agrária para abastecer o mercado interno de alimentos e não para exportar o que está faltando à mesa da maioria.
5. Lei de solo urbano que ponha fim à especulação imobiliária, abra espaço para a moradia das classes populares e humanize as cidades.
6. Política habitacional voltada para 70% da população brasileira que ganha até dois salários mínimos.
7. Educação fundamental e profissional gratuita para todas as crianças e jovens, dos seis aos quinze anos, como grave e inadiável obrigação dos municípios, do Estado, da União e das instituições da sociedade civil que se dispuserem a colaborar neste intuito.
8. Direitos da mulher visando assegurar a plena igualdade em todos os campos, superar as discriminações existentes e oferecer instrumentos e amparo específicos no campo do trabalho, da segurança pessoal (delegacias de mulheres), da saúde, do planejamento familiar, da gestação, maternidade, aleitamento e creches.
9. Direitos dos povos indígenas, garantindo suas terras, sua autonomia e identidade cultural e plena participação nos órgãos públicos destinados à sua proteção.
10. Direitos dos negros, combatendo de maneira severa as manifestações de discriminação e racismo, assegurando a livre e desimpedida manifestação de seus cultos, o florescimento de sua cultura e o acesso mais amplo ao preparo profissional e intelectual, com o objetivo de eliminar as desigualdades neste campo.
11. Regulamentação dos veículos de comunicação, visando eliminar o arbítrio do Estado na concessão das licenças de exploração de ondas de rádio e canais de televisão e do monopólio de fato exercido pelo poder econômico. Livre acesso de todos os segmentos sociais e instituições da sociedade civil: sindicatos, associações de bairro, igrejas, universidades, partidos, para transmissão de suas propostas e veiculação de suas ideias.
III. CONCLUSÃO
Numa Constituinte é possível a um país pensar o seu futuro, de maneira mais aberta e positiva. Ela poderia, neste momento da vida nacional, expressar a profunda vontade de estreitamento dos laços do Brasil com os países irmãos da América Latina, fazendo um gesto de largo alcance para o fortalecimento da paz e da partilha e o intercâmbio dos conhecimentos e técnicas aplicadas no campo nuclear, com a interdição absoluta da produção, estocagem e uso de armas nucleares em todo o território nacional, convidando os países vizinhos, em especial a Argentina, a adotar também o princípio da total desnuclearização da América Latina.
A Constituinte podia também prever como um aperfeiçoamento da convivência nacional, o princípio da objeção de consciência, comutando-se o serviço militar obrigatório por um serviço civil equivalente. Admite-se o princípio para sacerdotes, pastores, rabinos e demais ministros religiosos, mas a cada ano, dezenas de Testemunhas de Jeová perdem todos os seus direitos políticos, ao recusarem serviço militar, por razões de ordem religiosa. Há outras maneiras de se servir à pátria, com igual amor e dedicação que não seja o serviço militar.
E por último, às vésperas da Constituinte, a Igreja Católica está em condições de reexaminar seu lugar e papel na sociedade brasileira. O Concílio Vaticano II, Medellín, Puebla, a opção pelos pobres e por um serviço desinteressado pela causa da justiça e da paz, os sofrimentos de 21 anos de arbítrio e perseguição, permitiram à Igreja Católica, no Brasil, avançar na compreensão de seu papel e de sua missão na sociedade brasileira. Fê-la afastar-se dos instrumentos do poder como caminho para o anúncio do Evangelho, fê-la acreditar na força do povo dos pobres e empenhar-se na sua organização e na luta pelos seus direitos. Mas aqui e ali despontam atitudes que fazem lembrar os tempos em que a Igreja era a religião do Estado, baseada no confessionalismo do Estado. Volta a tentação de tentar valer-se do Estado e de sua coerção para atingir os fins que ela julga válidos. Por ser a religião da maioria, volta a tentação de não respeitar o pluralismo, a diversidade de crenças e opiniões legítimas na sociedade. O recente episódio da censura do filme Je vous salue, Marie, pode reacender uma questão religiosa que parecia definitivamente superada na sociedade brasileira. A desobediência civil, para se assistir ao filme, está levando a que pessoas sejam espancadas, presas e indiciadas em inquérito por delito de opinião. Terá a Igreja agora que apoiar o que ela condenou nestes últimos 21 anos: a censura, o arbítrio no campo das ideias, das opiniões políticas, religiosas ou culturais? Não deve a Igreja dirigir-se aos homens na mansidão e na força da verdade, tal como o fez Jesus de Nazaré, sem nunca recorrer ao poder e à coerção do Estado para forçar as consciências e impor seus pontos de vista? Fica a esperança de que a censura ao filme e o apoio que emprestaram à ação do Estado importantes setores da Igreja, tenha sido apenas um acidente de percurso e que a Igreja, no Brasil, continue aprofundando seu compromisso de ser apenas fiel seguidora de Jesus e servidora dos homens, sobretudo dos pequenos e pobres.
[1] José Honório Rodrigues. A Assembleia Constituinte de 1823. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 44.
[2] Constituições do Brasil — Coleção LEX, nº 34. Rio de Janeiro: Editora Aurora (sem data), 1º vol., p. 76. (Todas as citações das Constituições são tiradas desta publicação da Coleção LEX, em dois volumes).
[3] Rodrigues, op. cit., pp. 140-143.
[4] Este ponto da família, do casamento civil e do divórcio é um tema crucial que ocupou a Igreja desde a Constituição de 1891 até o presente. Não tratamos desta questão, pois mereceria todo um cuidadoso estudo à parte.
[5] Cf. para o conjunto das relações entre a Igreja e o Estado entre 1930 e 1945, José Oscar Beozzo (“A Igreja entre a Revolução de 30, o Estado Novo e a Redemocratização”, in: História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, tomo III, 4º vol., cap. V, 1984, pp. 273-341.
[6] CNBB — Plano de Emergência para a Igreja do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Dom Bosco, 1962, p. 9.
[7] Cf. Pe. José Scampini. A liberdade religiosa nas Constituições Brasileiras. Petrópolis: Vozes, 1978, pp. 220-221.
[8] Cf. CNBB — Igreja e Constituinte — Subsídios para reflexão e ação pastoral, 1985.
Pe. José Oscar Beozzo