Muitos sinais nos sugerem que vivemos momento de transição. Há um cansaço civilizacional. A modernidade avançada tem mostrado sintomas de exaustão. O fenômeno religioso explode tão vigoroso que assusta as instituições religiosas. A Igreja participa dessa situação de perplexidade. Como ela poderá configurar-se no próximo século? Que cenários de Igreja são pensáveis?
Em vez de uma análise da atual conjuntura, ensaiaremos aqui alguns cenários possíveis para a Igreja nas próximas décadas. Escolhendo determinados elementos fundamentais que se preveem dominar a situação da Igreja, procurar-se-á ver as possíveis reações da Igreja, configurando assim diferentes cenários. Neles examinaremos a vida interna da Igreja e sua relação com a sociedade.
Os cenários da Igreja, portanto, procuram descrever como se estruturaria a Igreja com todos os seus elementos sob determinada força hegemônica, dominante. Os cenários giram em torno dessas forças capazes de reordenar toda a figura da Igreja. Em cada cenário estão todos os elementos da Igreja, mas organizados diferentemente por causa do predomínio de um deles. Este estrutura todos os outros. Escolhemos quatro elementos estruturantes: a Instituição, o Carisma, a Palavra, a Práxis da libertação. Portanto, teremos quatro cenários.
I. CENÁRIO DE UMA IGREJA DA INSTITUIÇÃO
1. Descrição
Neste cenário, a Igreja reforça o aspecto estritamente institucional nos seus três centros: a cúria romana, a diocese e a paróquia. Valoriza a visibilidade de sua presença diante das outras denominações religiosas e na sociedade. Quer marcar atuação meio de seu poder. Outrora exercia-o no campo econômico, político e social. No futuro, fá-lo-á no espaço da cultura.
A teologia, a serviço do magistério oficial, interpretará para o católico médio a doutrina comum da Igreja, expressa em seus documentos. As teologias europeias de cunho liberal e as teologias da libertação do Terceiro Mundo sofrerão restrições à medida que se afastem de interpretações consensuais do magistério, deixando sem resposta perguntas da modernidade, da pós-modernidade e da situação social. Predominará uma teologia oficial. Qualquer outra teologia, diferente da oficial, sofrerá forte pressão da Instituição. Correr-se-á o risco de elaboração de uma teologia paralela que prescindirá da teologia oficial, evitando, porém, todo confronto. Ela será ora tolerada, ora contida. O documento da Congregação para a Doutrina da Fé — Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo, São Paulo, Paulinas, 1990 — serve de prenúncio do que serão as intervenções no campo doutrinal, alertando contra o perigo da dissensão.
A leitura da Escritura poderá gozar de certa liberdade no campo estritamente científico das revistas especializadas. A exegese no campo popular padecerá restrições.
A catequese se pautará pelo Catecismo da Igreja Católica para evitar novidades perturbadoras, buscando enquanto possível uma unidade de doutrina até as raias da uniformidade. A liturgia gozará da liberdade medida pelas atuais normas e prescrições. Dar-se-á por terminado o tempo das experiências novas. Fixar-se-ão as formas já vigentes e sancionadas pelos órgãos competentes da Igreja. Viver-se-á um equilíbrio difícil entre o cumprimento das normas litúrgicas e a onda carismática que tende a desbordar dos ritos e rubricas tradicionais.
Os leigos ocuparão presença importante na Igreja por meio dos movimentos de espiritualidade e apostolado, influenciando o clero e a vida religiosa. Esses movimentos cumprirão a função de reforçar a instituição eclesial e dar-lhe vida, usando de suas enormes possibilidades de poder e de organização. Eles conferirão à Igreja uma visibilidade desejada e manter-se-ão unidos sob as orientações vindas de seus centros, situados principalmente na Europa e nos Estados Unidos.
A escolha dos bispos obedecerá também a critérios de fidelidade, obediência visível à Instituição, mesmo à custa de outros valores.
Será um cenário da unidade, da visibilidade, da autoridade interna na Igreja e de uma presença na sociedade. Para tanto, a Igreja disputará espaços cada vez maiores na publicidade midiática. Nesse contexto, o clero atribuirá mais importância à exterioridade comunicativa, visual e midiática da mensagem do que a seu conteúdo. Formar-se-á mais para suas funções sagradas e institucionais, com maior reconhecimento social e com previsível aumento de vocações. Os seminários se pautarão por tal modelo.
A Vida religiosa retomará os pontos centrais da interioridade espiritual e do serviço pastoral nos moldes das orientações das dioceses.
No campo da moral, haverá maior atenção aos temas relacionados com a moral sexual, familiar e com a problemática da bioética, com menor preocupação pela temática social.
As forças divergentes presentes terão várias opções, desde o simples silêncio até a construção de uma “Igreja subterrânea”.
Nesse cenário, prevê-se a saída da Igreja das pessoas mais críticas e o retorno de outras que buscam uma Igreja mais firme nos pontos de referência.
Na relação com a Sociedade, a Igreja procurará maior entendimento a fim de evitar conflitos do passado. Também insistirá na defesa dos próprios interesses corporativos. Diminuirá sua presença crítica.
No campo cultural, pelo contrário, assumirá uma posição de resistência, crítica e combativa, diante dos desvalores da modernidade avançada, sobretudo dos que ameaçam a fé, a moral, a estabilidade familiar. Da modernidade, fará uso de suas possibilidades técnicas, especialmente da mídia. Buscará ser uma Igreja visível por meio de presença nos canais de TV, nas rádios, na imprensa.
Diante do surto religioso, a Instituição terá duas opções básicas. Domesticá-lo ou afastar-se dele. Pela primeira maneira, inseri-lo-á dentro de seu universo institucional, evitando que ele transborde de seus limites. Na segunda, proscrevê-lo-á como abuso ou deturpação do genuíno espírito católico.
A Igreja se preocupará com os pobres por meio de obras de assistência, mas não na perspectiva crítico-social própria da pastoral da libertação. Suprirá o Estado em suas deficiências. Trabalho de suplência. Poderá até mesmo receber apoio das classes burguesas e empresariais como lenitivo social a fim de evitar alguma turbulência social.
2. Plausibilidade do cenário
O cenário está aí. Tem chance de vingar? Sim, se se considera o jogo das forças presentes vinculadas a um processo crescente de centralização. Pesa a favor de tal cenário a força da longa experiência e tradição da Igreja da Instituição. Não, se se olha para futuro mais distante. A Igreja esbarrará com uma sociedade e cultura cada vez mais avessas a toda imposição autoritarista. Tanto as forças culturais pós-modernas quanto as aspirações religiosas vão na direção de estruturas mais flexíveis e adaptadas às experiências pessoais. Busca-se cada vez mais uma religião individual, subjetiva, confeccionada ao gosto das pessoas. Teologicamente tal cenário não responde a uma eclesiologia articulada com a dimensão pneumatológica.
Medindo as duas forças antagônicas, fica difícil prever o resultado do embate.
II. CENÁRIO DE UMA IGREJA DO CARISMA
1. Descrição
É um cenário quase oposto ao anterior. É o triunfo do carisma, da espiritualidade, da mística, das experiências pessoais e subjetivas. Carisma entende-se em contraposição à instituição, sem que haja oposição entre ambas. É o lado subjetivo de inspiração, de originalidade, de espírito, de vida. A Igreja católica é duplamente carismática: vive do carisma do Espírito Santo e sua própria Instituição é tocada por essa força do Espírito. Quando se pensa num cenário do carisma, quer-se chamar a atenção tanto para a presença mais acentuada do Espírito quanto para o lado inspirador e espiritual das próprias instituições.
Nesse cenário, o atual surto religioso, espiritual, místico encontrará incentivo e campo propício para crescer no interior da Igreja.
A Escritura frequentará as mãos dos fiéis, que encontrarão nela, de maneira imediata e literal, conselhos, consignas de ação, palavras de estímulo e questionamentos. Não se recorrerá aos aparatos científicos, mas à espontaneidade da leitura direta. Ela será lida como um livro de consolo e receitas pessoais a modo dos livros de autoajuda com o reforço da autoridade de Deus.
A teologia visará mais a nutrir o coração, o lado emocional da vida cristã do que a iluminar a inteligência. Em vez, propriamente, de teologia crítica, cultivar-se-á uma de natureza espiritual em vista de nutrir a espiritualidade carismática em expansão.
A liturgia se transformará na grande festa religiosa e emocional, que se prolongará em ritos alegres e estéticos ao sabor da criatividade da comunidade. A Igreja carismática será fundamentalmente celebrativa.
Nela os leigos terão muita liberdade no campo da espiritualidade e das celebrações. O clero se formará e exercerá sua missão nutrindo e animando os leigos nessas práticas. O cristocentrismo, que marcara até agora a vida dos cristãos, cede lugar para uma crescente presença e atuação do Espírito Santo, ora de maneira integrada, ora de forma extremada em detrimento do seguimento de Jesus e do compromisso com os pobres.
A ação pastoral social receberá menos realce em favor da interiorização e privatização da vida cristã. A Igreja vai interessar-se por uma presença espiritual especialmente na mídia, preparando-se melhor para o uso desses instrumentos de comunicação.
A vida religiosa buscará ser centro irradiador de espiritualidade e não tanto manter obras evangelizadoras e sociais.
Esse clima espiritual reinante dificultará o envolvimento da Igreja com a sociedade e o mundo. Ela procurará ser um oásis de experiências espirituais, recorrendo a técnicas de espiritualização. Cenário que virá ao encontro do surto religioso atual, sendo alimentado por ele e reforçando-o em toda a sua ambiguidade. Pois o fenômeno religioso poderá ser tanto um campo fértil para o crescimento da fé quanto todo o contrário. Afastará as pessoas do núcleo da fé cristã, centrada no seguimento de Jesus, para uma comunhão emocional, vaga, sem compromisso com o Mistério Sagrado impessoal.
A Igreja, que terá dificuldades enormes com a cultura pós-moderna, arredia a toda instituição, encontrará uma janela para ela no surto religioso. Investirá nesse fenômeno para marcar presença nele.
Todas as realidades, que não conseguirem ser redimensionadas nessa perspectiva espiritualista, tenderão a se tornar marginalizadas. As próprias atividades sociais se vestirão do toque espiritualista.
2. Plausibilidade do cenário
Tal cenário está, no momento, em alta, especialmente neste final de milênio e pós-modernidade. No entanto, vai defrontar-se com os avanços da mentalidade tecnocientífica. São previsíveis conflitos com a Igreja institucional.
Teologicamente, aparece clara a ambiguidade do fenômeno religioso diante da fé cristã e das exigências de seguimento de Jesus.
III. CENÁRIO DE UMA IGREJA DA PREGAÇÃO
1. Descrição
Neste cenário, valorizar-se-ão na Igreja o aspecto doutrinal, o conhecimento, a pregação, o ensino sob as formas de catequese, teologia, evangelização, anúncio missionário, moral etc.
A vida interna da Igreja organizar-se-á em torno da Palavra: cursos de Bíblia e de teologia para formar os catequistas, os agentes de pastoral e os membros dos movimentos. Com isso, tanto a catequese quanto as liturgias exigirão melhor nível de conhecimento da Escritura e das verdades de fé.
As escolas e universidades católicas adquirirão maior importância em vista de formar leigos preparados intelectualmente para o mundo moderno.
Articular-se-á mais a espiritualidade com a teologia. Os religiosos também investirão mais na formação intelectual com frequentes cursos de atualização.
A contribuição da Igreja para a constituição de uma Sociedade justa e fraterna se expressará por meio de seus ensinamentos sociais. Ocupar-se-á a mídia como lugar de evangelização, se não da fé, ao menos, de valores cristãos. Enfrentar-se-á com mais criticidade o fenômeno religioso.
É uma Igreja que investirá na formação intelectual do clero e dos leigos.
2. Plausibilidade do cenário
Seu futuro vem da importância e necessidade crescentes do saber na atual sociedade. Sua dificuldade se origina tanto da decadência dos cursos básicos quanto do tipo de cultura vigente, mais afeito à imagem que ao conhecimento.
Teologicamente, nesse cenário valoriza-se a dimensão fundamental da fé como conhecimento. Corre o risco de encurtar tanto o aspecto existencial quanto o da práxis. Nisso enfrenta a crítica dos carismáticos e a das pessoas engajadas.
IV. CENÁRIO DE UMA IGREJA DA PRÁXIS LIBERTADORA
1. Descrição
A Igreja fará as opções básicas do compromisso com a libertação, com os pobres, com as CEBs.
Nesse cenário, predominará a leitura popular da Escritura nos círculos bíblicos, em que se articulam fé e vida. A teologia seguirá o método desenvolvido na América Latina nas últimas décadas: ver, julgar e agir. A Igreja se estruturará em comunidades de base. Surgirá a figura nova da Assembleia do Povo de Deus, como órgão orientador principal da Igreja local.
A catequese, a liturgia, a pastoral assumirão a perspectiva libertadora. Multiplicar-se-ão as celebrações da Palavra sem ministro ordenado. Os movimentos perderão a relevância que tinham adquirido, já que o princípio ordenador da Igreja serão as comunidades eclesiais de base. O leigo assumirá relevância maior na coordenação das comunidades e nos ministérios, redimensionando o papel do clero e, por conseguinte, sua preparação nos seminários. A espiritualidade do seguimento de Jesus na relação com a libertação do pobre alimentará a vida cristã. A Vida Religiosa inserida no meio popular se fortalecerá, influenciando as Congregações na sua espiritualidade e missão. As vocações originar-se-ão, de preferência, dos meios populares ou de grupos sintonizados com eles.
A presença da Igreja na Sociedade se tornará mais expressiva e crítica, seja por meio de seus ensinamentos sociais, seja mediante práticas pastorais sociais. Em relação aos meios de comunicação social, privilegiar-se-ão as rádios comunitárias, os programas populares, a presença no meio das camadas mais simples da sociedade. Valorizar-se-á o papel da religiosidade popular, seja sob o aspecto de expressão da vida do povo, seja sob as suas possibilidades libertadoras.
2. Plausibilidade do cenário
As chances de êxito deste cenário fundam-se na tradição de Medellín-Puebla das últimas três décadas, que conseguiu presença significativa em nosso continente por meio de uma pastoral libertadora, de uma teologia consistente e de um testemunho de vida até o martírio.
As dificuldades vêm por conta da crise das esquerdas e das militâncias com a queda do Socialismo e com as sucessivas derrotas das forças populares. O clima de pós-modernidade e de neoliberalismo não favorece tal cenário.
Numa perspectiva teológica, reconhecem-se o caráter evangélico e a importância da experiência iniciada em Medellín e prosseguida nas últimas décadas. Há, porém, um risco de milenarismo.
CONCLUSÃO
A história nunca está fechada nem aberta arbitrariamente para nenhuma possibilidade. Nada acontece nela por pura fatalidade. Todo evento, mesmo com dose aleatória, pode ser inserido num universo de significado. Esta é nossa tarefa humana e de cristãos. Esta necessita encontrar pontos de apoio. Se num juízo crítico desejamos um cenário, cabe-nos colocar as condições de sua viabilidade. No momento, parece-me que os dois primeiros cenários gozam de maior probabilidade, embora julgue pessoalmente os dois últimos como mais afinados com a proposta evangélica.
Portanto, vários cenários são possíveis. Quando configurados, toca-nos viver dentro deles na coerência de nossas opções, mesmo que não favorecidas por eles. Antes de eles imporem-se, cabe-nos, por conseguinte, colocar as condições que favoreçam aquele cenário que julgamos mais consentâneo com nossa visão de Igreja.
Pe. João Batista Libânio, sj