INTRODUÇÃO
O objeto destas notas é mostrar que a Igreja nasce pelo compromisso com Jesus Cristo. Ela nasce pelo Evangelho: Cristo que vem e abre o Caminho do Reino de Deus. A orientação para esta análise será o anúncio de Marcos, central neste ano litúrgico.
Ele utiliza o termo Evangelho nos pontos estratégicos de sua teologia (Mc 1,1; 1,14-15; 8,35; 13,10; 14,9). O Evangelho é Jesus Cristo que vem e provoca a decisão para seguir o seu caminho. O que aconteceu com Pedro é a figura do que acontecerá com todo homem e com a Igreja. De fato, o Evangelho prepara e provoca a confissão de Pedro (Mc 8,27ss). Esta, porém, não é uma simples afirmação teórica e ortodoxa. É o compromisso para uma nova prática: ela consiste em aceitar o paradoxo do Caminho da Cruz como única maneira para se viver a vida do Reino de Deus.
Assim, é pelo Evangelho que se percebe a continuidade entre o Jesus da História e o Ressuscitado; e é por aí, também que se equaciona a relação entre a Igreja e o Reino. Tudo converge para o evangelho que faz surgir um caminho novo para os homens que se comprometem com Jesus Cristo (Mc 8,35ss). É na prática deste Caminho que o Ressuscitado manifesta e comunica a sua vida ao novo povo da aliança, o qual deverá se embrenhar no mundo dos pagãos (a “Galileia dos Gentios”: Me 16,7 Mt 4,12-17).
I. O EVANGELHO É JESUS CRISTO QUE VEM
O Evangelho é Jesus Cristo (Mc 1,1). Esta realidade se desvenda na fé que o acolhe como Filho do Homem que vem (cf. Mc 14,62). A sua vinda é um julgamento que se realiza no ato de fé: o povo simbolizado pelo Templo passa por uma crise, e a fé entre os pagãos abre uma possibilidade nova (cf. Mc 15,38-39).
O Evangelho proclama, pois, a Vinda de Cristo como um julgamento sobre o antigo povo da Aliança. As palavras e os gestos de Jesus o manifestam como o Servo de Deus cuja prática o revela como o Filho do Homem, ou o definitivo juiz da história (cf. Mc 10,45).
Assim, o Evangelho manifesta a verdade sobre a antiga Aliança. Liberta os homens do antigo sistema da pureza ritual, da lei, e do ritual do Templo. O véu do Templo se rasga, e é preciso andar com uma vestimenta inteiramente nova, pois esta novidade provoca sempre uma crise que faz abandonar o velho e viver do novo (cf. Mc 2,21; 15,38). Esta novidade não está mais na Lei, e sim na vida da Nova Aliança (cf. Mc 7,14-23).
Mas, o Evangelho é também um apelo que convoca e permite viver da gratuidade do Reino de Deus. Este apelo, que é um dom, se expande da pessoa e da ação de Jesus que se revela como força centrípeta que reúne a todos: Pedro, Tiago, João (Mc 9,2; 13,3), os Doze (Mc 6,30; 10,32), os discípulos (Mc 7,7; 8,34), a multidão (Mc 4,10; 3,32.34), e os homens que vêm de todos os lados (Mc 1,28; 1,45).
Uma tal convocação deve ser acolhida na fé. Esta faz penetrar no “segredo de Jesus”. É preciso vencer a dúvida, a incompreensão, a falta de discernimento (Mc 4,13; 4,33; 4,40; 6, 52; 7,17-18). Jesus interroga e provoca a fé (Mc 8,21).
II. O EVANGELHO E A DECISÃO PELO CAMINHO
A missão de Jesus é apresentada como o caminho definitivo, anunciado pelo profeta dos exilados (Mc 1,1-3). A prática de Jesus, em gestos e palavras, é um caminhar (Mc 9,30; 9,33; 9,34; 10,17; 10,32; 10,46). É principalmente, o Caminho para Jerusalém, tal como Jesus começa a demonstrar aos discípulos a partir da confissão de Pedro (Mc 8,31-33; 10,52).
Assim, o ato de fé tem primeiramente uma dimensão de ortodoxia. Ele consiste em confessar que Jesus de Nazaré, por tudo o que já fez e disse, se manifesta como o Messias: o Filho de Deus, o Filho do Homem que se revela na figura e na prática do Servo de Deus (Mc 8,28; 1,1; 10,45; 15,38-39).
Mas, uma fé puramente teórica pode ainda recusar o Caminho. A fé é prática que consiste em aceitar o paradoxo do caminho da cruz. Ela é seguimento de Jesus em sua morte e ressurreição, a exemplo do cego que passou a ver e caminha com Jesus para Jerusalém (Mc 10,46.52). A fé é, pois, uma nova prática que nasce da decisão pelo Evangelho, o qual se identifica com Jesus Cristo (Mc 8,34-35).
É neste processo de decisão, de conversão e de libertação que se encontra a novidade da vida cristã. É neste processo que o povo se liberta da morte e caminha para a Vida (Mc 8,34-38), na dimensão escatológica do Reino de Deus (Mc 9,1).
III. O EVANGELHO E A VINDA DO REINO DE DEUS
A mensagem de Jesus ao inaugurar a sua vida pública, na “Galileia dos pagãos”, mostra que o Reino é o sentido e o conteúdo desta Vinda, e deste caminhar (Mc 1,14-15). O Evangelho de Deus, ou o Evangelho do Reino é, pois, o conteúdo que dinamiza o novo povo convocado e libertado pelo ato de fé. Vale, então, relembrar as suas dimensões que são os parâmetros da humanidade nova, e da Igreja que caminha na história, pois esta se apresenta como o sinal e o germe do Reino de Deus (cf. Lumen Gentium, n. 5).
1. O reino é a plenitude das promessas: Em Jesus de Nazaré, Deus se comunica na sua totalidade. Por aí há de se perceber a revelação do Pai, o sentido do Batismo no Espírito; a passagem do regime da Lei para aquele da Nova Aliança. O tempo chegou à plenitude!
2. A proximidade do Reino demonstra sua dimensão escatológica, na relação entro o presente e o futuro. Esta proximidade se realiza na própria missão de Jesus: na sua missão o Reino está, de fato, próximo, e ele vai se manifestar na cruz que se mostra como a revelação da vinda do Filho do Homem. E esta proximidade escatológica se manifesta no decorrer da história que, no ato de fé, inaugura a realidade do “já, mas ainda não totalmente”. A proximidade do Reino dá o conteúdo do dinamismo da história, e de toda a vida do povo que aí vive porque ainda não é o Fim (cf. Mc 13,7-10).
3. O Reino é a família dos que fazem a vontade do Pai, como irmãos de Jesus (Mc 4, 31-35). É a comunhão nova que liberta de todos os particularismos: do sangue, da raça, da nação, da religião particularista e nacionalista. O Reino é a comunhão cuja vida está na medida do amor do Pai, manifestado na prática e no serviço de Jesus (Mc 10,35-45). Transforma-se o sentido da autoridade, liberta-se do sistema da Lei e da pureza ritual para se viver da Novidade da Aliança (Mc 7,1-23).
4. O Reino é de Deus. Ele é graça. A gratuidade do Reino fez Jesus entrar em conflito com os fariseus, saduceus, escribas e herodianos. Deus faz o primeiro passo. O ato de Deus precede, como dom e apelo, ao ato do homem. A vida no Reino é graça, e a sua força é como a da “semente que cresce por si só”, e de “uma pequena semente é capaz de se transformar numa grande árvore” (Mc 4,26-29; 4,30-32). Era o anúncio da gratuidade que destruía o sistema da Lei, da pureza ritual; por isso o velho sistema decide matar a Jesus (Mc 2,1-3,6). Mas Jesus, no seu Caminho para Jerusalém, desmascara a sua falsidade e a sua dominação (Mc 12); e assim chega até a morte na cruz.
5. O Evangelho é, então, uma boa-nova para os pobres e oprimidos. É realização das promessas proféticas de Libertação (cf. Is 35; Mt 11,2-6). Ele provoca a renúncia, e faz entrar pelo caminho da cruz a fim de chegar à plenitude da Vida, na plena manifestação da Glória do Pai, e da manifestação do Reino chegando em poder (Mc 8,38; 9,1).
Devemos, agora, concluir. O Evangelho de Marcos mostra como o Evangelho reúne o novo povo de Deus na história, e como a Igreja nasce da fé dos que respondem ao apelo e ao dom que vem pelo Evangelho. O Evangelho é Jesus Cristo Vivo que vem. O poder e o dom que emanam de Jesus-Evangelho reúnem, em torno dele, todos que o ouvem e se decidem por sua nova prática. Este apelo é um julgamento que provoca conflito, rasga e desmonta o velho sistema simbolizado pela Lei, pela pureza ritual e pelo Templo. Jesus se coloca a Caminho, cujo passo principal está em chegar ao centro deste velho sistema (Jerusalém-Templo) mostrando que o Evangelho é um ato de decisão que liberta da Lei, para uma vida na Nova Aliança. Jesus é traído, abandonado, preso, morte na cruz. Vence a morte. Assim, os que aceitaram a sua missão, e aceitaram o seguimento como o cego de Jericó, continuam o seu Caminho, pelo mundo todo, até à consumação do Reino que virá em poder.
Gilberto da Silva Gorgulho