O mundo dos excluídos veio para ficar. Ele é produzido pelo sistema econômico atual, que vai gerando cada vez mais exclusão. Uma parte da população tem capacidade para entrar no mundo novo da economia, outra parte não. As exigências são cada vez maiores, de modo que a distância cultural aumenta entre os que têm e os que não têm condições de vida digna. Quem nasce no mundo dos excluídos já nasce excluído e nunca poderá recuperar a distância que o separa de quem nasceu numa família incluída. Somente ínfima minoria, ajudada por muita sorte, consegue — o que não afeta o fenômeno no seu conjunto.
O atual sistema econômico domina de modo absoluto o mundo todo. Reina praticamente sem contestação entre todos os que detêm o poder. Está crescendo sem parar, confiante em si mesmo, sem nenhuma dúvida. Os que conduzem o processo não têm dúvida nenhuma. Estão seguros de si mesmos e dispõem de quase todos os recursos que há atualmente no mundo. Dispõem de praticamente todos os cérebros importantes na sociedade. Tudo e todos trabalham para consolidá-lo. Somente o contestam alguns intelectuais sem poder.
Este modelo de economia está tão firme, que é feito para durar pelo menos um século. A famosa “Terceira Via”, lançada por Tony Blair, está sendo aceita hoje por quase todas as esquerdas do mundo, o que significa que a esquerda considera fato irreversível a evolução atual da economia (cf. Anthony Giddens, The Third Way. The Renewal of Social Democracy, Polity Press, Cambridge, 1998).
No momento não há outra alternativa com força política. A oposição vai ter de cumprir o seu papel de oposição, mas está impedida de realizar o seu programa de governo. Estamos ainda na fase inicial da exclusão. O que vem por aí tende a ser ainda pior. Isso não depende de um governo, regime político ou constituição de Estado — pois nenhum Estado pode impedir o inevitável que é a pressão de um sistema compacto e dotado de todas as forças materiais e culturais.
Anunciar o fim da exclusão é irresponsabilidade, porque, com isso, deixa-se que as pessoas fiquem na ilusão, atrasando-se as disposições a serem tomadas em virtude da situação que existe. É irresponsabilidade pensar que o problema está sendo resolvido e que algumas boas pregações podem mudar a evolução atual do mundo. Naturalmente todos os governantes dizem, com lágrimas nos olhos, que estão preocupados com a exclusão e a pobreza. Falam assim para enganar-se a si próprios — pensando que têm bom coração — e ao povo. Na hora de agir acabam fortalecendo o sistema. Nada farão para mudar o sistema atual. Também não será um futuro governo que mudará esse rumo. A intensidade do movimento poderá variar um pouco, mas o movimento em plena expansão não será mudado.
1. Os excluídos vivem
Os excluídos não desaparecerão por serem excluídos. Conseguem sobreviver, encontrando brechas no sistema e meios de subsistência. Recolhem as migalhas que caem da mesa dos poderosos. Como os poderosos são muito ricos, as migalhas podem alimentar muita gente. Os excluídos vão formando um mundo próprio, separado, com sua própria cultura e relações sociais próprias. Constituem pouco a pouco um mundo completo — como na favela da Rocinha no Rio de Janeiro.
Vivem de uma economia informal ou às vezes, conseguem emprego aleatório em empresa de construção ou em serviço precário. Recolhem o que a sociedade lhes concede, sobretudo a televisão, que abre para o resto do mundo, porém sem criar comunicação com esse mundo. Criam uma cultura, um estilo de vida em casa, uma maneira de comer e beber, de festejar, de se relacionar com os vizinhos. Seu mundo é um mundo pequeno, mas que permite viver. Nesse mundo há tempos de alegria e de tristeza, tempos de medo e de ilusão.
A cultura do mundo dos excluídos não é muito conhecida, porque não consegue interessar aos sociólogos. Estes ainda ficam muito dependentes das teorias do passado. Uns são marxistas, e olham tudo em função da luta de classe, como nos tempos da sociedade industrial, sem ver que na atualidade somente uma minoria participa do mundo industrial — os operários das indústrias já pertencem ao mundo dos incluídos, embora numa posição modesta. Outros dependem da sociologia norte-americana, e enxergam tudo no sistema positivista de passagem da cultura pré-moderna para a cultura moderna — não descobriram que há duas culturas modernas: a dos incluídos e a dos excluídos.
A cultura dos excluídos está presente nas cidades. É feita de fragmentos da cultura rural desintegrada e de fragmentos da cultura dominante mais ou menos assimilados. Pois o mundo dos excluídos não está totalmente isolado. Vive ao lado do outro, ainda que com comunicação muito superficial. Os novos pobres reinterpretam na sua cultura a exibição da cultura dominante.
No primeiro mundo, os excluídos constituem ⅓ da população, e no terceiro mundo ⅔. Claro, esses números são aproximativos. Em cada país a situação é particular e a fronteira entre excluídos e incluídos não está tão clara. Há uma parte da população que está entre os excluídos e os incluídos, participando parcialmente das duas categorias. No entanto, globalmente, há separação radical entre os dois polos e essas duas partes da população.
2. A Igreja continua repetindo o discurso da opção pelos pobres e excluídos
Continua-se a fazer o discurso da opção pelos pobres e excluídos, no entanto, esse discurso fica cada vez mais distante da realidade. Se se examina o comportamento real, nota-se com toda a evidência que a Igreja está fazendo opção pelos incluídos, perdendo o contato com os excluídos. Com o discurso repetido, nem percebe que está se distanciando cada vez mais dos excluídos. O discurso serve para esconder a realidade e tranquilizar a consciência.
Com efeito, hoje a força da Igreja está concentrada ao redor de dois polos: os “movimentos” e as paróquias. Os “movimentos” estão crescendo cada vez mais, e constituem atualmente o setor mais vivo, dinâmico e florescente na Igreja. Na frente está a renovação carismática, vindo depois o ECC, os Focolarinos, os neocatecumenais, Schönstatt e outros menos numerosos.
Os “movimentos” estão implantados no mundo dos incluídos. Todo o seu modo de ser revela a sua perfeita adaptação à cultura dos incluídos. Estão bem inculturados e, por isso, fazem sucesso e crescem sem cessar. Apesar de não serem integrados nas estruturas oficiais da Igreja, a sua influência vai crescendo. Não têm o poder na Igreja, mas têm o conhecimento do mundo, a ciência das comunicações e tudo o que o clero não tem. Por isso, na realidade, a sua influência é maior do que a dos sacerdotes na Igreja. Os sacerdotes são cada vez mais espectadores do que acontece na Igreja ou auxiliares dos “movimentos”. A sua cultura arcaica não lhes permite competir, salvo raras exceções.
Por serem emanação da cultura dominante, os “movimentos” não têm comunicação com o mundo dos excluídos, ainda que no seu discurso multipliquem as profissões de boa vontade. Não há comunicação, sequer a linguagem é a mesma. Não se trata de falta de boa vontade, mas simplesmente por necessidade sociológica.
Fica como tarefa para o século XXI o surgimento de vocações missionárias nos “movimentos” para descerem até o mundo dos excluídos, afastando-se da sua cultura para irem ao encontro da cultura dos excluídos. É mais difícil ser missionário no mundo dos excluídos do próprio país e da própria cidade do que ser missionário na África ou na Ásia, porque a resistência psicológica é maior. É mais fácil reconhecer a diferença da cultura indiana ou chinesa do que a diferença da cultura dos excluídos na própria cidade. O cidadão da classe superior pensa que sabe e pode tudo na sua própria cidade, mas, na realidade, nunca pisou no mundo dos excluídos.
Como “movimentos” organizados e totalidades sociais, os “movimentos” nada podem fazer pelo mundo dos excluídos. Porém, do meio deles, pode e deve sair uma messe de vocações missionárias. Como sociedades organizadas têm mentalidade universal. Estão convencidos de que representam todas as classes sociais e são imagem da própria sociedade urbana ou nacional. Não percebem os limites da sua consciência. Somente os excluídos podem dizer-lhes que pertencem a um mundo limitado e que são capazes de comunicar-se.
O segundo polo forte da Igreja católica, no qual se concentra a quase totalidade do clero, são as paróquias urbanas. Aí se concentra 80% da população. No mundo urbano, as paróquias reúnem as pessoas do mundo dos incluídos. A cultura paroquial adapta-se melhor a eles. O próprio vigário foi educado na cultura do mundo dos incluídos, sentindo-se mais à vontade aí. Como as atividades paroquiais são numerosas, conseguem ocupar o tempo todo dos melhores vigários. Não sobra tempo para cruzar a fronteira e ir ver o que está acontecendo no “outro país”, que fica no território paroquial. A própria estrutura paroquial favorece essa evolução. Ora, na cidade, a visibilidade das igrejas e capelas paroquiais não é muito grande. Uma família pode morar a 100 metros da capela e ignorar a sua presença, assim como os católicos fiéis ignoram as igrejas pentecostais que estão na mesma rua.
3. E as CEBs não são a presença da Igreja no e do mundo dos excluídos na Igreja?
Em primeiro lugar elas não têm mais, na Igreja, a importância que já tiveram. Basta lembrar que, no documento Ecclesia in America, nem sequer são mencionadas. Na dinâmica das dioceses, seu espaço é muito limitado.
Em segundo lugar, uma grande parte das CEBs está situada nas comunidades rurais afastadas das matrizes. Este mundo rural conta cada vez menos no conjunto do país. Mesmo tendo aparecido os assentamentos, a presença da Igreja católica é mínima neles. No mundo urbano, as CEBs não se multiplicaram, apesar do imenso crescimento do mundo dos excluídos. São como ilhas num mar imenso. Além disso, muitas foram integradas no sistema paroquial, reproduzindo o sistema da paróquia e funcionando como órgão de transmissão da pastoral paroquial. Dedicam muito tempo à preparação dos sacramentos e às celebrações de estilo mais ou menos tradicional. Tudo isso já é bem conhecido.
Em terceiro lugar, as próprias comunidades são agentes de promoção social. Quem participa tem muito mais possibilidade de ascensão social, porque vai adquirindo capacidades que habilitam para entrar no mundo dos incluídos.
A participação nas CEBs confere um desenvolvimento humano que prepara para saber atuar no mundo superior, ainda que em posições modestas. Acontece a mesma coisa com os sindicatos, os partidos políticos populares ou os movimentos populares. Os dirigentes saem do mundo dos excluídos porque já se capacitaram e entram em comunicação com o mundo dos incluídos.
Ainda há uma parte das CEBs que são a Igreja no mundo dos excluídos. Mas essa parte quase não conta na Igreja atual — na vida das dioceses, paróquias e “movimentos”. Por outro lado, a existência delas não constitui presença significativa da Igreja católica. Quantos sacerdotes e religiosas dedicam-se a esse mundo? Qual é a parte dos recursos financeiros da Igreja dedicada à missão no mundo dos excluídos? Insignificante.
O desafio é a presença da Igreja no mundo dos excluídos. Não basta condenar o sistema neoliberal em vigor — que aumenta o número dos excluídos. É necessário condenar, mas não basta — porque nada vai mudar por causa disso. A influência da Igreja na sociedade é mínima — para não dizer inexistente. O que se espera da Igreja é que legitime o sistema e dê alguns remédios de consolo às vítimas. Se ela se dedica a isso terá um lugar privilegiado. Se não fizer assim, será marginalizada.
Também não basta anunciar uma utopia de nova sociedade ou civilização do amor. À utopia é necessária para manter a esperança e, a espera de outro mundo. Porém, não basta porque o anúncio do evangelho é anúncio do Reino de Deus no mundo presente. Trata-se da presença de Deus e da ação a partir do Reino neste mundo que existe. Pois anunciar o futuro é muito cômodo e pouco exigente. Pode-se, estar no mundo dos incluídos e esperar mudança de sociedade que vai demorar pelo menos um século. O consolo do mundo futuro não basta. As ideologias socialistas prometeram um mundo futuro que nunca chegou. O que nos preocupa, objeto da evangelização, é o mundo presente tal como é. O que dizer e o que fazer em relação a este mundo presente?
Em primeiro lugar, para poder agir, é preciso estar presente. Já lembramos que todo grupo de Igreja tende a subir socialmente e, ao mesmo tempo, a se separar do mundo dos excluídos. Forma um grupo que se integra. Assim aconteceu com os monges antigos. Assim foi com as primeiras comunidades cristãs e com todas as fundações religiosas no decorrer dos tempos. Começam com a presença no mundo dos pobres e, depois de um século, passam para o mundo dos ricos.
Assim está acontecendo também com as CEBs. Começa-se pelos excluídos e, pouco a pouco, vão diferenciando-se, subindo socialmente. É preciso recomeçar. É improvável que uma comunidade que começou no meio dos pobres e se emancipou, tornando-se incluída, volte às origens — retornando aos excluídos.
Da evolução atual das CEBs alguns tiraram a conclusão que elas já tiveram o seu tempo, e estão sendo substituídas por outras formas de pastoral. Muitos acham que não respondem mais às situações novas e estão desaparecendo. Ora, a evolução atual das CEBs não quer dizer que estão superadas. Quer dizer que, como todas as instituições de Igreja, elas devem passar pelo que tradicionalmente se chama reforma.
O que é reforma na Igreja?
Trata-se de volta às origens, uma vez que houve afastamento delas. Esse afastamento sempre é o mesmo: sair da pobreza, entrar no mundo da segurança, da propriedade e da cultura dominante. O conjunto de uma instituição não volta às origens. Podem não faltar boas intenções, mas uma vez que uma instituição vive no meio de garantias e na cultura dominante, não é mais capaz de perceber que mudou e se afastou das suas origens. O discurso impede a tomada de consciência, escondendo a realidade quando pensa que a está revelando. É assim que a maior parte dos religiosos ainda pensam que são pobres porque fazem o chamado voto de pobreza, cuja finalidade é esconder a falta de pobreza.
Toda reforma vem de pessoas novas, que estavam nas estruturas e resolvem libertar-se delas para voltar às origens. Saem da instituição para ser mais fiéis a ela. Assim acontece agora com as CEBs. Longe de serem superadas, são mais atuais e mais necessárias do que nunca — mas não aquelas que aí estão. São necessárias outras, novas, que nasçam dos verdadeiros excluídos. As CEBs, como todas as instituições de Igreja, precisam ser fundadas de novo para ser fiéis ao seu programa. Fundadas por novas pessoas, com novos membros que pertençam realmente aos novos excluídos — e não aos que eram excluídos, mas já não o são.
4. A presença no mundo dos excluídos
Em primeiro lugar está claro que não há presença que não seja física. Trata-se de estar materialmente presente, compartilhando a vida do mundo dos excluídos. A vizinhança física é imprescindível. Assim como não se evangeliza o povo chinês permanecendo na Paraíba, não se evangeliza os excluídos vivendo no mundo dos incluídos.
Porém, a pura presença física não basta — porque, por si mesma, não fala. É apenas condição para poder falar. Qual será a mensagem? Em primeiro lugar a palavra será o testemunho de vida. Para ter credibilidade precisa dar o testemunho de uma vida em Cristo. Testemunhar que o Reino de Deus já está aqui presente: na alegria de viver num mundo novo, apesar de todas as circunstâncias exteriores; uma vida de ressuscitados, apesar dos sinais de morte. Essa vida de ressuscitados é aberta aos outros. Não está preocupada em fazer proselitismo. Preocupa-se em mostrar com fatos, antes que com palavras, o que é vida de cristão.
A mensagem cristã é que, por meio de Jesus, Deus veio a este mundo tal como é, para estar neste mundo de misérias, desespero, crimes, sujeira. Deus desceu do pedestal do seu poder para ir morar numa favela. Ninguém acredita se não o vê na realidade de homens e mulheres que representam esta presença de Jesus.
Nas situações de pior miséria física ou moral, espera-se a vinda de Deus. Pessoas que assim vivem, acham que estão longe de Deus porque são rejeitadas pelos homens. Todavia, quem mais quem menos, esperam. Aí está o sinal da presença do Espírito Santo. Tal atitude assemelha-se à do povo de Israel à espera de um Salvador.
Por isso, o anúncio do Reino de Deus presente em algumas pessoas não é completa novidade. Uma vez que ele se torna presente, logo há pessoas que o reconhecem e identificam porque estavam sonhando com ele. O Novo Testamento já mostrava como o evangelho não se proclama a pessoas que o ignoram completamente e sim a pessoas que o estão esperando sem saber exatamente como será. Trata-se de mostrar a resposta a uma espera. Por isso mesmo não é preciso muitas palavras, porque a identificação não é difícil.
Não se pode esperar que a Igreja toda faça essa viagem missionária até o mundo dos excluídos. Porém, alguns têm vocação para essa viagem, e a Igreja deve apoiar, reconhecer-se nessa vanguarda e confiar nas obras do Espírito Santo.
Ao redor desses missionários, alguns grupinhos vão surgir. Se se pretende que se vinculem logo com uma comunidade ou CEB preexistente, ou com uma paróquia, o caminho ficará interrompido. Precisa reconhecer a autonomia dos pobres para viver e crescer na sua cultura de pobres. Tudo o que se falou outrora das CEBs e não se encontra mais na realidade, vale para esses grupos novos realmente situados no mundo dos excluídos.
5. Conhecer a cultura
Quem penetra numa cultura desconhecida logo fica perturbado pelos seus vícios e imperfeições. A primeira coisa que se percebe são os defeitos. Foi isso que aconteceu no passado, quando missionários alcançaram a América, a Ásia e a África. Ficaram chocados com os vícios e com a miséria corporal, moral e espiritual dos povos que pretendiam evangelizar.
Imediatamente acham que devem corrigir os vícios ou vencer as misérias. Acham-se capacitados e vocacionados para isso. Naturalmente fracassam, mas atribuem o seu fracasso ou ao diabo, que resiste, ou à má vontade dos povos, o que confirma a sua condição de miséria. Fracassam porque não conhecem a cultura e não sabem como entrar no mundo dessa cultura.
Hoje, entrando no mundo dos excluídos, o que chama a atenção primeiramente é a miséria física. A completa falta do mínimo para o desenvolvimento normal da vida humana — fome, carências e insegurança. Depois vem a miséria moral: quadrilhas, roubo, violência, drogas, prostituição, estupro, crianças abandonadas. Condenar ou denunciar não adianta. Esse gesto poderá ser um desabafo dos missionários, porém sem resultado algum.
É necessário aprender a conhecer. Não há somente o negativo, o crime, a sujeira, o mal. Deus está aí também e o Espírito atua nesse ambiente. É preciso descobrir essa presença, uma vez que a atuação do missionário parte dessas sementes de salvação aí existentes. O missionário não pode ir com a sua cultura, isto é, com os seus programas de pastoral e propostas já concebidas. Deve chegar com pobreza total de ideias e projetos. O que se fará será dito pelos próprios excluídos e pelos sinais da presença de Deus aí presentes.
Conhecer a cultura é saber como um povo de excluídos consegue viver humanamente na situação em que está, e por que de fato consegue. Nós pensamos que não conseguiríamos, mas eles conseguem. A cultura é a maneira de viver com o que se tem — mesmo sendo muito pouco. Sem conhecer a cultura, podem-se implantar novidades, instituições, programas. Nada será assimilado, nada funcionará, nada sobreviverá à saída dos promotores, se não se integrou na cultura dós excluídos. Isso quer dizer que o que se pode fazer é sempre menos do que o que se queria fazer. A realidade não permite projetos grandiosos desde o início.
A ideologia das CEBs, como toda a ideologia, serviu também para ocultar a realidade. A gente pensa que conhece a cultura dos excluídos porque projeta sobre ela uma ideologia. Sempre é preciso desfazer-se de ideologias e conhecer por contato direto, imediato, vendo e, sobretudo, escutando. A experiência de outros serve pouco. Ela serve, sobretudo para criar ou reforçar uma ideologia. Cada um deve aprender de novo a partir do começo.
6. O que fazer?
Essa foi a famosa pergunta que percorreu e estimulou todo o século XX, desde que Lenin publicou o seu famoso panfleto com esse título. A pergunta dominou o século: o Ocidente acha que deve e pode “fazer”. Não está errado. Foi o cristianismo que introduziu nos mais distantes lugares do mundo essa paixão pelo “fazer”. No entanto, nem tudo se pode fazer. Não se pode realizar tal utopia, e o drama grandioso e patético do século XX foi o de ter sustentado o sonho do socialismo — e o dramático fracasso das experiências concretas dele. A causa foi a vontade de realizar, na prática, tal utopia com todos os meios disponíveis.
“O que fazer?” manifesta-se pelo contexto, pelas circunstâncias, pela situação em que se acha quem se faz a pergunta. Será sempre algo limitado e destinado a ser corrigido numa fase ulterior da história. A completa realização nunca se dará. Sempre haverá aspectos positivos e negativos. Sempre suscitará a oposição dos conservadores e dos utopistas, por ser realista e atrevido ao mesmo tempo.
No início aparecem pequenos grupos liderados por pessoas dotadas de carisma especial. São as novas comunidades de base, bem diferentes das atuais CEBs, justamente pela sua pobreza, carência de meios e simplicidade. Ainda não têm estruturas. Assim foram as CEBs no início.
Hoje, o mundo dos excluídos está esmagado por um sistema tão forte, tão seguro de si mesmo, que pode dar-se ao luxo de nem sequer perceber a existência dos excluídos — salvo nos discurses oficiais, para dar a impressão de boa consciência. Porém, na hora das decisões, os pobres não são contemplados. Isso nos lembra a situação dos cristãos no império romano, antes de Constantino. A força do império era total, e a distância entre a classe dirigente romana e a massa dos povos subjugados era infinita. Uns tinham todos os poderes, e outros nenhum. A metade dos habitantes era de escravos ou libertos ainda dependentes dos antigos senhores.
Durante 250 anos as comunidades cristãs pobres tiveram de aguentar o peso de uma sociedade que era o contrário de tudo o que estava no evangelho. Conseguiram sobreviver. Criaram um pequeno mundo de paz, justiça e fraternidade entre eles — ilhas de vida evangélica no ventre do monstro.
Hoje estamos entrando num monstro semelhante. O império atual é tão cruel quanto o império romano, e talvez até mais. À frente não há mais um imperador, mas a finança internacional, o dinheiro-rei. O dinheiro quer crescer e crescer sem fim — mesmo tendo de esmagar a imensa maioria da humanidade. Alegra-se porque cresce. À medida que a miséria aumenta no mundo, mais o dinheiro multiplica-se nas bolsas de valores. Os donos do império estão triunfando porque o seu império cresce a cada dia. São de uma arrogância total.
O pior é que, entre os donos do império, há muitas pessoas que se dizem cristãs. Por exemplo, nos Estados Unidos, onde há Igrejas de várias denominações cristãs celebrando as vitórias do império como vitórias de Deus. São cristãos oprimindo outros cristãos — e cristãos oprimindo os excluídos do mundo. Isso não havia no império romano. Ou, pelo menos, se sabia que o império era emanação de Satanás — como consta no livro do Apocalipse.
Mesmo assim, as antigas comunidades cristãs conseguiram revelar o Reino de Deus pela sua vida e resistência. Hoje, comunidades semelhantes podem manter a fé, a esperança e a verdadeira fraternidade.
Na vida de cada dia é quase impossível fugir da colaboração com o sistema. Muitos são empregados do sistema e dele vivem. Cada caso tem sua especificidade, e cada qual precisa examinar até onde chega sua colaboração. Os primeiros cristãos tinham definido certos limites: não podiam ser soldados nem magistrados públicos, pois isso exigia profissão de subordinação aos deuses do império. Quais são os limites hoje? O que um cristão não pode aceitar? Com o que não pode colaborar de modo algum? Questões abertas para a consciência cristã.
Alguns exemplos: Na participação do sistema financeiro há limites que uma consciência cristã não pode aceitar, mesmo que tenha de sofrer o martírio como os primeiros cristãos. No funcionamento das multinacionais, na indústria e no Comércio há limites de atuação para o cristão. No exercício da vida pública há limites que o cristão não pode ultrapassar.
Sob as ditaduras explícitas era mais fácil descobrir os limites. Hoje, no sistema econômico em que estamos, a publicidade do sistema está muito mais bem organizada para esconder o que está acontecendo. Os responsáveis estão escondidos e a responsabilidade é distribuída entre muitos, de tal modo que todos se sentem inocentes.
É possível agir no meio dos excluídos? Sim, pois nenhum sistema é tão fechado que não deixe brechas. O sistema não pode nem precisa controlar tudo. Há espaços que movimentos sociais podem ocupar, dependendo dos países. Em alguns há menos espaço para os movimentos populares. Em outros mais. Nunca haverá espaço suficiente para poder ameaçar seriamente o sistema. Quando aparece o perigo, o sistema fecha-se sobre si mesmo.
Assim mesmo, há espaços abertos. Por exemplo: no Brasil o latifúndio é campo aberto. Trata-se de fenômeno arcaico que não pertence ao sistema. O sistema não precisa do latifúndio e funciona até melhor sem ele. Acontece que as antigas elites rurais ainda são politicamente fortes, embora economicamente fracas. A terra não dá mais lucro, mas dá poder. No entanto, o sistema pode muito bem tolerar o MST. Não o ameaça e até pode ser uma ajuda.
Também há outros setores que não ameaçam o sistema, como cooperativas industriais e comerciais. Os trabalhadores da cidade poderiam organizar-se e atuar nessas áreas. Sempre que uma empresa começa a enfrentar dificuldades, e deixar de dar lucro suficiente aos acionistas, os trabalhadores poderiam conquistá-la mediante negociação e pressão.
No campo da ação social também pode-se conseguir melhoras, através dos serviços públicos de maior abrangência aos mais necessitados. Todavia, nada disso virá espontaneamente, sem uma ação social vigorosa e perseverante. E tudo isso não traz ameaça ao sistema, havendo, pois, tolerância a esse tipo de ação.
O que não se pode fazer é mudar o sistema. Isso será para mais tarde, quando o sistema estiver enfraquecido. O que se pode fazer hoje parece paliativo. No entanto, esse paliativo pode melhorar muito a vida dos excluídos e é preciso lutar para conquistá-lo.
Na Igreja de hoje há imensa carência de pessoas comprometidas e engajadas nas lutas sociais para a emancipação dos excluídos (mesmo dentro dos limites já assinalados). A ausência maior é sobretudo dos que detêm o poder na Igreja: os padres.
Contentar-se em dizer que essa é tarefa dos leigos é hipocrisia. Os padres conservam o poder. Aos leigos não é facultada iniciativa de relevo no agir social da Igreja. Se os leigos tivessem maior poder, assumiriam. No entanto, até agora, os leigos quase nunca agiram representando a Igreja. Como não têm poder, se não há compromisso dos padres, nada acontece de relevante.
Na atualidade, há um tremendo pecado de omissão. Pois, nesta época de transição, os padres ainda são a Igreja na mente do povo — e também na deles. Quando esses não agem, os leigos também sentem-se dispensados de agir. Não basta exortar os leigos por meio de discursos. Tais exortações soam hipocrisia. Hoje — e ao longo de todo o século XXI — se os padres não se põem na frente da luta, ninguém na Igreja se move.
Na geração passada, grande número de bispos, padres, religiosos e religiosas tinham entendido isso e se comprometeram — alguns até o martírio de sangue e outros em meio a muita perseguição. Ora, hoje a situação dos excluídos é bem pior e requer dedicação maior. Todavia, acontece o contrário: tudo funciona como se os excluídos estivessem tão longe, que nem mesmo o clero consegue descobrir sua existência. Desaparecem até da consciência dos padres. São lembrados na hora dos documentos oficiais, mas desaparecem na hora da vida diária. A Igreja funciona como se eles não existissem.
As paróquias funcionam muito bem e multiplicam as atividades. O mesmo se dá nas dioceses, que multiplicam as comissões e as pastorais. Muito esforço é dispensado na organização. Todavia, os excluídos estão fora dessas atividades. A Igreja está situada num outro mundo — ainda que proclame nos documentos ser a Igreja dos pobres.
Graças a Deus, porém, há membros do clero que se comprometem — ainda que sejam minoria. O número é suficiente para que, mais tarde, se possa dizer: “Naquele tempo a Igreja estava presente”.
Do mesmo modo como se afirma que a Igreja pode dizer ter estado presente na hora das grandes fábricas, contrapondo-se à condição desumana dos operários, por haver alguns sacerdotes — condenados pelos demais — que se desgastavam em meio às lutas operárias, mais tarde se dirá: nas horas trágicas das lutas operárias, a Igreja estava presente. Estava presente, mas contra a vontade da maior parte dos superiores, que, depois, se atribuem a glória dos feitos alheios.
Hoje de novo a hora é trágica nas grandes cidades. Se o clero não assumir positivamente novas lutas sociais, os excluídos ficarão desamparados, sem capacidade de agir realmente na sociedade. Por exemplo: a violência vem crescendo, tendo sido um grande fenômeno social dos anos 90, e continuando a ser desafio urgente para que a vida não seja angústia permanente. São poucas as resistências e iniciativas para organizar a reação. Não basta condenar. É preciso agir. Organizar a vontade de paz dos habitantes da cidade. A maioria deles está sem ânimo, sem coragem, sem dinamismo. Esperam a vinda de um líder para catalisar as energias e organizar a ação.
Esse é apenas um setor. Quantos outros ficam à espera de alguém para liderar. Não adianta dizer que essa é tarefa dos leigos. Sabe-se que liderança entre os leigos é muito excepcional, porque nunca foram preparados para ser líderes. Basta comparar os recursos e energias que a Igreja põe à disposição da formação do clero com aquilo que gasta para a formação de líderes leigos. No melhor dos casos a proporção será de cem por um. Depois disso é possível querer impor aos leigos tarefas impossíveis deixando os padres na tranquilidade da paróquia?
Os tempos não podiam ser mais claros. Mas quem reconhece os sinais dos tempos?
Pe. José Comblin