Artigos

Publicado em número 243 - (pp. 23-28)

Concílio Vaticano II: os anos que se seguiram

Por Pe. João Batista Libanio

O Concílio Vaticano II foi um evento histórico datado. Teve início a 11 de outubro de 1962 e concluiu a 8 de dezembro de 1965. Pertence à história. Pesquisas e pesquisas se farão sobre os seus textos, estudando-lhes o processo de redação com as inúmeras emendas até sua forma final, as intervenções escritas e orais, o jogo interno das tendências teológicas, pastorais e burocráticas, enfim, tantos e tantos elementos que o constituíram como magno evento da Igreja católica.

Encerrado na sua realização como acontecimento pontual, começa um novo movimento de sua história, que propriamente não terá fim, com maior ou menor influência sobre a realidade que se lhe seguirá. É o tempo da recepção. Expressão teológica que traduz, em termos sociais, a metáfora humana de assimilação dos alimentos externos de que todo corpo necessita para continuar vivendo.

Aqui se nos abre enorme espaço de consideração. O Vaticano II continua marcando a vida eclesial, e para além dela, por meio da teologia de seus documentos, pelas instituições que diretamente criou, pelo espírito que gerou, pelos contínuos resgates possíveis de sua riqueza, pelas reações favoráveis ou opostas que ainda provoca, pela força simbólica que significa. Na brevidade do artigo, escolheremos quatro pontos.

 

1. Teologia do Concílio

Desde a convocação do Concílio, com a criação das comissões preparatórias, até a aprovação do último documento, inúmeras pessoas dedicaram-se com denodo ao ingente trabalho de redação dos textos. Obra coletiva, embora se consiga perceber influências marcantes de certas tendências teológicas, de grupos de teólogos ou até mesmo de um teólogo em concreto. No entanto, cada texto foi submetido às críticas de todos os membros do Concílio e de todas as pessoas que quiseram oferecer sugestões. Verdadeira colmeia na fabricação do mel teológico-pastoral dos documentos.

Qualquer estudo sério sobre algum documento conciliar necessita refazer o percurso de sua gestação desde o esquema preparatório, as primeiras críticas e as diversas redações com as emendas, assumidas ou rejeitadas, até a última votação, onde se teve o cuidado de indicar as razões da aceitação ou não das sugestões. Por meio desse procedimento consegue-se obter maior clareza sobre o verdadeiro sentido do texto aprovado.

As leituras e interpretações que se seguirão vão debruçar-se sobre esse tecido variegado e retirar linhas de cores diversas. Sobre detalhes teológicos, sempre haverá divergências de interpretação. No entanto, parece absolutamente claro que a teologia depois do Concílio já não é a mesma. Enterrou-se definitivamente a neoescolástica, que reinava nas escolas teológicas onde se formava o clero católico. Ruiu esse sistema bem estruturado, rigoroso e extremamente formal, ensinado em latim, que apresentava um conjunto completo de perguntas e respostas fechadas, gerando uma sensação de totalidade, de segurança, clareza e rigor. As últimas gerações formadas nessa escola estão desaparecendo, deixando atrás de si uma quase total ignorância do que foi essa pirâmide teológica que enfrentou impávida o embate de séculos.

A problemática moderna que vinha sendo levantada havia séculos era apenas contemplada no interior desse edifício tridentino. No entanto, foi-lhe lentamente minando os fundamentos. A implosão se fez em poucos anos, sendo a teologia neoescolástica substituída por uma teologia plural, diversificada, menos estruturada e pouco sistematizada. Ganhou-se em atualidade, em variedade de temas e de abordagem, em diálogo com as ciências modernas, em alcance existencial, em repercussão pastoral e força querigmática. As tendências que mais influenciaram o Concílio, até então recessivas no interior da Igreja católica, se fizeram hegemônicas. Os livros escritos antes do Concílio, assim como a abundante literatura posterior, que secundavam a linha de diálogo com a modernidade ocuparam o lugar dos clássicos manuais escolares da teologia neoescolástica.

Uma primeira geração pós-conciliar mergulhou nas águas novas dessa teologia e produziu profunda renovação na pregação, na catequese, no ensino da teologia, na pastoral. Como o tema mais importante do Concílio foi a eclesiologia, começou-se por aí. Paulo VI, no início da segunda sessão, tinha confiado especialmente aos Padres conciliares a tarefa de responder à pergunta sobre a consciência da Igreja, no fundo, sobre o que ela diz de si mesma.

A virada se deu na linha da concepção da Igreja como povo de Deus, como sinal e sacramento do Reino de Deus, na valorização de sua base batismal, laical e na sua vocação de presença significativa da graça vitoriosa do Cristo ressuscitado no mundo, na história. Trata-se de uma Igreja que, internamente, se entende mais consciente de sua igualdade fundamental em contraposição à organização clerical e que, externamente, age na atitude humilde de serviço ao mundo. Valoriza-se a Igreja particular em nova relação com a Igreja universal, garantindo a comunhão entre elas pelo espírito colegial.

Mas imediatamente a eclesiologia provocou profunda transformação na cristologia, em sempre crescente valorização do Jesus palestinense, diferentemente de uma dogmática centrada na união hipostática. Surgirá excelente série de cristologias, na Europa, nos EUA e na América Latina. Na compreensão da Trindade vai prevalecer a intuição rahneriana de que a Trindade imanente, das relações entre as pessoas divinas, é a Trindade econômica, de sua presença na história da salvação. A teologia sacramental se enriquece da compreensão da liturgia como celebração do mistério pascal, do significado profundo do símbolo, do princípio de inteligibilidade dos ritos e sinais, do incentivo à participação dos fiéis. O Vaticano II impulsiona, com sua eclesiologia, a teologia ecumênica, a do diálogo inter-religioso e com os não crentes. Desloca-se de uma teologia objetiva e objetal, dogmatista e doutrinal, para uma existencial, hermenêutica e dialogal.

Até hoje nos nutrimos de teólogos que estiveram na gestação do Concílio, que lhe continuaram as intuições fundamentais e avançaram para além de seus ensinamentos, impulsionados por seu espírito de abertura.

No entanto, a onda montante da teologia pós-Vaticano não irrigou todos os rincões da Igreja. Arrefeceu sua força penetrante diante da vaga carismática que vem deslocando o interesse para experiências espirituais carentes de uma reflexão teológica ou até resistentes a ela. Produz-se uma literatura de consolo, de autoajuda, centrada na subjetividade e na emoção. Eis aí um limite do processo teológico dos anos que se estão seguindo ao Concílio.

Sendo o Concílio fruto de compromisso entre tendências divergentes — fundamentadas no Concílio de Trento e no Vaticano I e, por outro lado, na nova teologia emergente —, não foi difícil a setores tradicionais resgatar dos documentos do Vaticano II elementos teológicos tradicionais, sobretudo no campo da eclesiologia. Assim estamos de novo diante de conflitos teológicos semelhantes aos dos tempos conciliares, com a diferença da inversão dos sinais. Lá a teologia moderna era hegemônica e marcou fundamentalmente os documentos conciliares, enquanto hoje ela se rarefaz e, em seu lugar, se fortalece uma eclesiologia de cunho centralizador e institucional. Em parte isso se fez possível porque a eclesiologia do Vaticano II não conseguiu ser traduzida em instituições permanentes. Em termos jurídicos modernos, ela comportou-se como belos princípios de uma constituição, mas sem regulamentação e, portanto, sem efetivação real e concreta. Todo brasileiro conhece perfeitamente tal tensão. Na Constituição brasileira consta o direito de todos à habitação, alimentação, escola e trabalho, mas há milhões de sem-casa, sem-teto, sem-pão, sem-escola e sem-emprego. Essa é a realidade. Assim o Vaticano II teve princípios e sonhos que não conseguiram entrar no leito do rio jurídico e secaram sob o sol do tempo.

 

2. O sínodo dos bispos e a colegialidade

A principal instituição eclesiástica pós-conciliar, o sínodo, como expressão da colegialidade, ficou a meio caminho. Exprimiu já um sinal de comunhão dos bispos com a Sé romana, mas se restringiu a simples papel consultivo. Os seus resultados permanecem em nível confidencial e terminam num documento de autoria pessoal do Papa, que tem a liberdade de trabalhar, a seu modo, as sugestões recebidas. Com isso, desaparece a colegialidade no sentido mais pleno e de novo predomina o polo central.

As conferências episcopais precederam as direções conciliares e lhes sucederam. Já existiam antes do Concílio, mas assumem depois dele um caráter de universalidade. É o lado positivo de continuação do Concílio. Porém, mais uma vez nos defrontamos com a tensão interna existente nos documentos conciliares e na sua efetivação. Aos poucos, conferências que já gozavam de autonomia, criatividade, vitalidade interna e externa sofreram restrições e regressões lentas e continuadas. E as mais novas nunca conheceram um tempo de liberdade e autonomia suficientes para configurar verdadeira consciência grupal, colegial. Os bispos são sacramentalmente ordenados no espírito colegial, mas juridicamente pensados para serem autárquicos e assim escolhidos. Criar entre eles uma colegialidade não é algo natural e espontâneo. Supõe esforço continuado e alimentado por uma teologia consistente.

À medida que os bispos que estiveram no Concílio — e que lá beberam o espírito, a vivência e a prática colegiais — foram saindo de cena, seja pela morte, seja pela renúncia, substitui-os uma nova geração que não fez tal experiência. Estes facilmente se adaptam a uma visão de Igreja menos colegial e mais diretamente centrada no polo romano e na autonomia de cada bispo. Assim a colegialidade modifica sua forma de atuação. Inverte-se o movimento que ia na direção de uma liberdade crescente e de uma inculturação consistente das Igrejas particulares e dos conjuntos regionais para uma relação direta entre cada Igreja, valorizada na sua singularidade própria, e o centro romano. Mantém-se a unidade próxima da uniformidade em vez da diversidade e originalidade locais.

No espírito colegial, agilizaram-se conselhos presbiterais, pastorais e órgãos semelhantes nas Igrejas particulares. Algumas ensaiaram a experiência da assembleia do povo de Deus, com maior liberdade e agilidade canônica, em lugar dos sínodos diocesanos, previstos e armados de legislação própria. Talvez desponte aí uma luz nova para a maior participação dos leigos e das leigas na vida interna da Igreja particular até o nível das decisões fundamentais.

 

3. Espírito do Concílio: sua força simbólica

O Concílio Vaticano II é mais do que os documentos por ele produzidos, do que o evento histórico encerrado. Trata-se de um espírito, de um novo símbolo da Igreja católica. Cria um imaginário eclesial que adquire força própria e autônoma até mesmo em confronto com alguns textos conciliares. O imaginário seleciona e configura uma representação da realidade em questão.

O imaginário foi uma das maiores construções do Concílio Vaticano II. Assim como Trento tinha criado um espírito, uma mentalidade, um imaginário, assim o Concílio Vaticano II o fez. E os imaginários firmam-se melhor quando se contrapõem a outros imaginários diferentes. O imaginário do Vaticano II se exprime na sua relação com o de Trento, com o das Igrejas evangélicas, com o das religiões e com o do mundo moderno em toda a sua extensão até as formas de ateísmo.

Para entender a riqueza do imaginário do Vaticano II, necessitamos perceber a oposição a Trento e a tomada de posição em relação às Igrejas da Reforma, às tradições religiosas e à modernidade.

O imaginário tridentino primou pela afirmação da identidade católica em oposição às Igrejas nascidas da Reforma e aos princípios e práticas da modernidade. Destarte a Igreja católica provocou dentro de si maior coesão interna em tornode três elementos visíveis: o batismo, a confissão externa do conjunto da fé cristã e a obediência à hierarquia e, de modo especial, ao romano pontífice. A Reforma introduzia elementos diferentes em sua identidade: sola fide (a fé fíducial), sola gratia (a graça atribuída pelos méritos de Cristo) e sola scriptura (a Escritura lida pelo fiel sob a ação do Espírito). A modernidade postulava a autonomia absoluta do sujeito, uma prática transformadora numa perspectiva de criar, dentro do horizonte histórico, a plenitude da realidade social humana sem nenhuma Transcendência.

A clareza dos opositores permitia também maior consciência e nitidez da identidade tridentina. Assim ela criou o imaginário eclesial que alimentou a Igreja católica durante quatro séculos.

O Concílio Vaticano II entra no processo de dissolução desse imaginário já em andamento, de modo lento, gradual e progressivo, por obra de fatores que penetravam a Igreja, sobretudo a ação católica, os movimentos bíblico, litúrgico, social, querigmático, missionário, artístico e catequético e uma teologia renovada. O Concílio Vaticano II entrou na onda de tais movimentos, assumindo-os em seus documentos, tanto no seu teor teórico quanto no prático-histórico. Assim ele começou a construir outro imaginário teológico-pastoral.

Viveram-se os anos conciliares e os primeiros pós-conciliares em clima de novidade, de liberdade, de experiências diferentes, de busca de diálogo com as Igrejas, as religiões e a modernidade. Ambiente de muita esperança e euforia, mas também de ousadia desmedida. Tudo parecia possível naqueles anos. O pé da história pisava no acelerador e a instituição eclesial entrava em movimento rápido de mudança. Logo em seguida, surgiram temores, uns fundados, outros imaginados, que levaram a mudar a posição do pé do acelerador para o do freio.

Já faz décadas que o clima de novidade e de experiências dos anos seguintes ao Concílio esfriou, sendo substituído por um processo de triagem e enquadramento de algumas experiências selecionadas e sancionadas pela burocracia eclesiástica. Com isso estamos, no momento, à espera de novos surtos de experiências e tentativas de modelos diferentes.

Os anos de liberdade e iniciativas inovadoras deixaram marca positiva em muitos espaços eclesiais, apesar de alguns refluxos. As celebrações litúrgicas ganharam em vida, em participação, em beleza, em espontaneidade e em criatividade. Com a emergência do fenômeno carismático, essa tendência acentuou-se, em alguns casos, até os extremos de recursos midiáticos de pura exterioridade e aparência.

O fiel médio adquiriu uma autonomia interior diante de normas e preceitos eclesiásticos que beira o “cisma branco” de um silêncio indiferente sem protestos, mas também sem cumprimento das normas, transgredindo-as com sã consciência até em pontos que a instituição eclesial considera graves. Há crescente e tranquila liberdade de consciência a que a autoridade eclesiástica não tem acesso com suas prescrições e exigências de confissão. No entanto, certos novos movimentos eclesiais reagem fortemente contra tal clima, impondo de novo a gravidade e o rigor de prescrições da Igreja no campo moral — pessoal e familiar — e sacramental. Experimentamos momento de choque entre essas duas tendências. Uma silenciosa, por isso menos perceptível, outra mais barulhenta e de manifestações visíveis.

A formação do clero passou por vários estágios. Num primeiro, os cursos de Filosofia e Teologia inseriram-se em universidades, possibilitando aos seminaristas um contato diversificado cultural e humanamente. Era o espírito de abertura do Vaticano II entrando pelas portas dos seminários. Depois houve uma volta ao antigo estilo de vida mais reclusa, como instituição total. Puxava o refluxo da onda para o espaço anterior. Essa é a situação em muitos casos, embora surja no horizonte a possibilidade de transformar a Teologia num curso reconhecido pelo MEC. Isso trará modificações cujo alcance ainda não temos possibilidade de prever.

Mais consistentes parecem as transformações da vida consagrada por força do espírito do Concílio. As vidas religiosas ativas despojaram-se de sua veste monacal e assumiram características secularizadas, encontrando na América Latina expressões radicais de inserção no meio popular, com profunda transformação de forma de oração, de trajes, de teor de vida comunitária, de prática pastoral. Também aqui existem movimentações numa linha diferente, que conjuga a novidade de formas externas e institucionais com traços tradicionais na pedagogia e na disciplina religiosa. São novas formas de vida consagrada que nascem no interior dos movimentos eclesiais de renovação, os quais se fortaleceram nas últimas décadas. Em termos altamente positivos, o Concílio permitiu que muitas congregações redescobrissem o carisma fundacional no meio de uma indeterminação religiosa criada pelos cânones eclesiásticos.

 

4. Recepção na América Latina

Já é lugar-comum entre teólogos da América Latina dizer que Medellín foi a recepção original do Concílio Vaticano II. A Conferência surgira, por desejo de Paulo VI, com a finalidade de afinar a Igreja da América Latina com a teologia e a pastoral do Vaticano II e terminou dando um salto qualitativo para além da concepção centro-europeia desse Concílio.

Em vários pontos, Medellín prosseguiu criativamente intuições, não muito desenvolvidas, do Concílio. Tanto João XXIII como os Padres conciliares, que se exprimiram na voz do cardeal Lercaro, pensavam um Concílio em que os pobres ocupassem papel importante e a Igreja se transformasse numa Igreja preferentemente dos pobres. No entanto, o que aparece na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, o texto mais afim a esse desiderato, não corresponde nem de longe a esses sonhos evangélicos.

Medellín navega nesse riacho pequenino, transformando-o depois em Amazonas pela explícita opção pelos pobres, para que as Igrejas do continente latino-americano nele voguem seguramente. O que no Vaticano II eram antes desejos e sonhos, em Medellín se fez realidade e decisão firme. Lá se lançavam as sementes de uma Igreja mais popular, aqui nascem as primeiras comunidades eclesiais de base, que encarnam a Igreja dos pobres.

O Vaticano II apontou para uma abertura diante do mundo moderno. Este significava, naquele momento, um neocapitalismo com traços sociais, no aspecto econômico, uma democracia de tintura cristã, no aspecto político, e uma ciência menos arrogante e mais dialogante, no aspecto cultural. Até o ateísmo mostrava-se sensível a um diálogo com a fé cristã.

Em nosso continente, imperavam um capitalismo selvagem, regimes militares autoritários, uma cultura burguesa dita católica, sem a verdadeira seiva profético-cristã. Portanto o diálogo não podia vestir-se da inocência nem da suavidade do diálogo europeu. Teve de tomar um caráter virulento de embate com forças de opressão. Tanto mais difícil foi a vivência do Concílio Vaticano II nessa conjuntura, em que se invocavam precisamente ensinamentos seus de tolerância para combater a agressividade crítica da Igreja da libertação. Na Europa, o ateísmo dialogava com a fé cristã. Aqui a dominação, com túnica católica, não entendia como dialogar com correntes teológico-pastorais da libertação que lhe negavam a verdade cristã.

A recepção latino-americana do Vaticano II conflitou com uma recepção dita católica, mas que excluía a dimensão de libertação. Punha reparos numa consideração demasiado otimista e tolerante diante da modernidade, que escondia sua face econômica de dominação e só ostentava o lado sorridente da democracia e da cultura pluralista, dialogal.

A interpretação libertadora do Concílio Vaticano II fez história na América Latina em termos de teologia, de estruturas de Igreja, de práticas pastorais. A teologia chamou-se da libertação, as estruturas eclesiais foram as comunidades de base, as práticas pastorais se desenvolveram no campo da leitura militante da Escritura, com os círculos bíblicos, e nas pastorais sociais, no interior de movimentos de luta e reivindicação populares.

A teologia da libertação só se tornou possível porque houve a virada teológico-antropocêntrica da teologia e o método ver-julgar-agir consagrado pela Gaudium et Spes. Sem esses dois pilares, nunca se construiria uma teologia da libertação. Ela é filha do Vaticano II, com a originalidade de inserir mais fortemente os pobres na compreensão do ser humano e na articulação do método ver-julgar-agir. Estava em questão um ser humano entendido não só à luz do Iluminismo europeu, na sua liberdade e consciência, mas também como um ser despojado, excluído e pobre, fazendo ressaltar mais claramente ainda o humano universal. Era o único que lhe restava, depois que o desvestiram de todos os atributos conferidos pela proclamação solene dos direitos humanos como fruto da modernidade liberal.

 

5. Conclusão

O Concílio Vaticano II explica os avanços e os retrocessos do momento atual. Os avanços buscaram colher-lhe a força inspiradora. Acreditaram na sua novidade, na força do Espírito Santo. Realizaram a intuição profética de João XXIII de um novo pentecostes para a Igreja. Semearam por todas as partes elementos de vida, de consciência, de liberdade, de pluralismo, de participação, de igualdade, de compromisso social com os marginalizados e excluídos do sistema. Despojaram a Igreja do triunfalismo, do clericalismo, do juridicismo, de sua concepção autárquica e autossuficiente para fazê-la simples, humilde, pobre, consciente de seus pecados, arrependida, servidora, disposta a dialogar e cooperar com toda força viva e libertadora da sociedade humana.

Os retrocessos revelam os temores diante do dinamismo propulsor que está a dissolver muitas estruturas emperradas e incapazes de responder à sua vitalidade. Freiam as iniciativas, retornam ao centralismo tricêntrico do polo romano, diocesano e paroquial, controlam as doutrinas, dificultam a comunhão com outras Igrejas cristãs, temem a perda da identidade cristã no oceano das religiões, restringem os espaços de liberdade e participação dos leigos, especialmente da mulher, vigiam mais de perto o alinhamento doutrinal e pastoral dos bispos tanto nas escolhas como no exercício de suas atribuições, cerceiam voos mais altos das conferências episcopais, receando rupturas da unidade católica, insistem na visibilidade midiática da Igreja em resposta à onda neopentecostal evangélica, na esperança de estancar a sangria de seus membros para aquelas Igrejas.

O momento atual caracteriza-se por um compasso de espera, já que se encontram, numa mesma arena, os avanços e os retrocessos do Vaticano II. O futuro, a curto prazo, não parece claro. Embora se aposte, a longo prazo, no vigor do espírito inicial do Vaticano II, as reações de reordenamento e redirecionamento têm força e consistência.

De um lado, o espírito do Vaticano II, em busca de novas experiências, de responder melhor à contemporaneidade dos problemas prossegue seu caminho. Há inúmeros sinais que apontamos. O Concílio Vaticano II capitalizou um acúmulo de forças inovadoras de pelo menos dois séculos. E tal correnteza não se detém com simples tabique rústico.

Doutro lado, crescem temores de que a Igreja católica perca a identidade, se esfacele, rebaixe as exigências cristãs, assumindo o “espírito do mundo” no sentido joanino. Sem chegar ao paroxismo do bispo francês Lefebvre, para quem o Concílio Vaticano II foi uma traição teológica, assumindo o espírito da Revolução Francesa, de J.-J. Rousseau, circulam opiniões de que o pós-Vaticano II frustrou os sonhos de João XXIII e de Paulo VI, encaminhando a Igreja por vias erradias de um humanismo horizontalista, sem transcendência.

Em 2004 recordamos, com muita gratidão, Karl Rahner no centenário de seu nascimento. Ele foi um dos teólogos de maior influência na tessitura dos textos conciliares. No entanto, no final do Concílio, numa de suas primeiras conferências, comparava toda a atividade da Igreja, com seu gigantesco aparato, ao esforço de retirar 0,14 grama de rádio de uma tonelada de minério de urânio. Não obstante, valia a pena fazer tal esforço. É esse rádio da fé, esperança e amor que queremos, ao descartar a ganga impura de pedras. O mesmo teólogo continuava dizendo que tudo na Igreja só existe para despertar no coração dos fiéis a fé, a esperança e a caridade. Em outro momento, nos premunia do risco de engessar e fossilizar rapidamente os documentos, não permitindo que sinalizassem um caminho a ser percorrido e a ser criado.

Neste ano de comemorações do 40º aniversário da conclusão do Concílio Ecumênico Vaticano II, a atenção deveria voltar-se para além dos textos, na captação do espírito que ele quis criar no interior da Igreja: espírito de liberdade, de enfrentamento dos problemas que estão sempre a surgir, de experiências novas e criativas, de participação e comunhão, de busca de comunhão com os irmãos das Igrejas evangélicas, das tradições religiosas, de outras visões ideológicas em torno de valores éticos universais. O espírito do Vaticano II prepara-nos para viver num mundo pluralista, de diálogo, de tolerância, de respeito à autonomia das pessoas.

Em resumo, o Concílio Vaticano II é, ao mesmo tempo, término de longo processo de diálogo da Igreja católica com as da Reforma e com o mundo moderno e o começo de nova caminhada para tempos de uma humanidade de mentalidade universal e cósmica. Estamos nos inícios desse novo paradigma. Que o Espírito nos acompanhe nessa nova viagem, na qual não faltarão riscos e belezas, medos e destemor, dores e alegria. Sobretudo é o momento de anunciar a esperança e de espreitar a nova aurora que surge, na poética expressão de Jean Delumeau: “Não há noite tão longa que não termine no amanhecer”.

 

 

 

ADEUS AO VATICANO II

Não se trata de atualizar, mas de mudar

José María Vigil**

 

Tendo já passado 40 anos do Concílio Vaticano II, a situação atual do cristianismo está transitando por uma inflexão histórica tão notável, que o Concílio está começando a deixar de ser a referência obrigatória que até agora foi. Expressarei isso em alguns pontos.

 

1. O Vaticano II foi o acontecimento mais importante do cristianismo católico no século XX.

O Concílio não criou os problemas da Igreja católica, simplesmente os reconheceu e possibilitou com isso enfrentá-los.

A crise pós-conciliar a que deu origem foi uma crise de crescimento, de vitalidade, vinda à luz do dia após longo período de sufocamento e hibernação — e que queria dar o melhor de si mesma para fazer surgir um cristianismo adequado aos novos tempos.

Apesar de tudo, o Concílio chegava tarde — muito tarde. Iniciou o diálogo com uma modernidade que já estava começando a desaparecer nas areias da pós-modernidade.

 

2. O segundo grande acontecimento histórico da Igreja no século XX — possibilitado pelo primeiro — foi a teologia da libertação, que deu um passo a mais e abriu o diálogo com o mundo no campo da segunda ilustração: no social e no político, no encontro com os pobres e na práxis histórica de transformação social. Essa teologia desatou também uma explosão de vitalidade e de mística, cuja manifestação maior foi a multidão de comunidades de base espalhadas pela geografia universal e uma plêiade de mártires literalmente “jesuânicos” segundo o modelo de Jesus.

O erro maior da Igreja católica nesse mesmo século foi o medo à dinâmica de vida e de recuperação histórica que o Vaticano II e a teologia da libertação despertaram, medo que se cristalizou nos últimos 25 anos.

 

3. Visto com perspectiva histórica, o esforço por conter e reverter o Concílio fracassou, produzindo uma situação de mal-estar generalizado, uma atrofia centralista e uma crispação persecutória e paralisante, em tempos de mudança vertiginosa da sociedade e do mundo que exigiriam por parte da Igreja redobrado esforço de diálogo e atualização. O salto de consciência que o Concílio supôs presente na maioria dos cristãos é irreversível. A tentativa de reinterpretá-lo e revertê-lo parece historicamente um caso clamoroso de magistério rechaçado (non receptus), imposto só por via autoritária contra o sentir do povo de Deus.

O déficit resultante para a Igreja oficial é expressivo: notável perda de autoridade e de relevância diante da sociedade civil e da inteligência, crise sem precedentes quanto aos abandonos, autoexílio e indiferença em seu ambiente mais antigo e avançado, o europeu. (Também há realidades muito positivas no cristianismo católico de hoje, porém não é esse o tema que abordo neste momento.)

 

4. Tudo isso pareceria abonar a tese da necessidade, e até da urgência, de um novo Concílio, que recuperasse e relançasse o Vaticano II. Mas as coisas mudaram substancialmente nos últimos anos.

Pode-se dizer que, embora o Vaticano II tivesse chegado muito tarde, mesmo assim conseguiu iniciar o diálogo com a modernidade. A pós-modernidade e a transformação epocal da religiosidade das sociedades avançadas situam-nos hoje num cenário totalmente diferente. As respostas corretas do Vaticano II — que não nos foi possível aplicar nestes 40 anos, pelo bloqueio do medo oficial — já se tornaram obsoletas. Hoje as questões são outras. Por isso, o Vaticano II deixou de ser essa utopia pendente que até agora foi nossa referência principal. O pendente hoje já não é o “pôr em dia” ou aggiornamento, mas a “mudança” que nos invade e desconcerta. A humanidade já ingressou em novo umbral civilizacional, e as formas religiosas anteriores — Concílio incluído — permanecem apenas alguns momentos e se desprendem, caindo no esquecimento. Hoje, a tarefa é outra: tratar de entender e acompanhar a profunda mudança cultural em curso, a qual não se rege por modelos do passado, mas por algo novo que está nascendo e que devemos acolher sem medo.

 

Quarenta anos depois, outro Concílio, simples reunião de bispos, seria um instrumento demasiadamente doméstico para enfrentar questões que transcendem o patrimônio simbólico de qualquer religião concreta. A problemática atual é de tal envergadura, que qualquer crente lúcido já não poderia mais se conformar apenas com propostas intracristãs ou, muito menos, simplesmente oficiais. A hora dos Concílios passou. A ágora está em outro lugar e a temática já não é mais católica, nem religiosa, mas suprarreligiosa e epocalmente humana.

Nesta conjuntura histórica torna-se evidente que o Vaticano II ficou para trás, desapareceu sob o horizonte. As novas questões vitais para a religiosidade da humanidade emigraram para outro campo, e a Igreja oficial, enquanto se prolongar a situação atual, é incapaz de percebê-las. Por isso, quem quiser manter-se lúcido e plenamente responsável de si mesmo saberá que chegou a hora de participar ativamente da metamorfose atual, em comunidade com os que não têm medo, sem olhar para trás. Adeus, Vaticano II!



** Endereço do autor: <[email protected]>.

Pe. João Batista Libanio