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Publicado em número 261 - (pp. 3-11)

A Conferência Episcopal de Aparecida e a teologia da libertação: um fogo que arde embaixo da terra

Por Prof. Renold Blank

1. A sobrevivência teimosa de uma teologia já muitas vezes declarada morta

“A importância decisiva da Igreja latino-americana e da sua teologia libertadora já passou” — profetizaram todos aqueles que pretendiam conhecer a situação. Consequentemente, compreenderam a 5ª Conferência Episcopal Latino-Americana, em primeiro lugar, como confirmação e continuação daquilo que, em 1992, tinha sucedido em Santo Domingo.

Mas os intérpretes da conjuntura teológica se enganaram. E a já tantas vezes enterrada teologia da libertação se revelou outra vez bem mais viva do que muitos esperavam. Seus enfoques incômodos e questionadores, em vez de desaparecer, mostraram de novo sua vitalidade, baseada na força e na energia de uma mensagem que, do início ao fim, está enraizada na revelação bíblica de um Deus que incomoda e questiona.

A pequena Virgem de Aparecida, em cujo santuário a reunião dos 162 bispos da América Latina e do Caribe se realizou, mostrou mais uma vez sua capacidade de realizar coisas extraordinárias. Os milhares de representantes das diversas organizações pastorais, desde o início da conferência, mantiveram essa esperança e não foram decepcionados.

Influenciados pela fé dinâmica e esperançosa da Igreja de baixo e inspirados pelo Espírito que guia sua Igreja, os bispos da 5ª Conferência formularam um documento que contradiz todas as previsões pessimistas. De um lado, é verdade, seu texto reflete as profundas rachaduras que marcam a realidade eclesial da América Latina. De outro, porém, o documento, com espírito corajoso e profético, põe-se, de maneira clara e consciente, em continuidade com as grandes linhas das Conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979).

 

2. A Conferência Episcopal de Aparecida confirmou de maneira explícita a opção preferencial pelos pobres

A Conferência de Aparecida confirmou e até reforçou em muito a opção preferencial pelos pobres, introduzida na teologia e na pastoral das Igrejas latino-americanas por Medellín e Puebla. O texto do documento atual lembra, nas palavras do próprio papa, que essa opção “está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós” (n. 392).

De maneira bem mais acentuada do que se verificou na Conferência de Santo Domingo — em grande parte marcada pela predominância de uma atitude conservadora —, o texto de Aparecida, com voz profética, claramente toma posição. Assim se pode ler, por exemplo, nos números 391-398:

 

Dentro dessa ampla preocupação pela dignidade humana, situa-se nossa angústia pelos milhões de latino-americanos e latino-americanas que não podem levar uma vida que corresponda a essa dignidade. A opção preferencial pelos pobres é uma das peculiaridades que marcam a fisionomia da Igreja latino-americana e caribenha (n. 391).

(...) a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica daquele Deus que se fez pobre por nós (…) (n. 392).

Os cristãos (…) são chamados a contemplar, nos rostos sofredores de nossos irmãos, o rosto de Cristo, que nos chama a servi-lo neles (…). Eles desafiam o núcleo do trabalho da Igreja (…). Tudo o que tenha relação com Cristo tem relação com os pobres (…) (n. 393).

(A solidariedade) há de se manifestar em opções e gestos visíveis, principalmente na defesa da vida e dos direitos dos mais vulneráveis e excluídos (n. 394).

(…) a Igreja está convocada a ser “advogada da justiça e defensora dos pobres” diante das “intoleráveis desigualdades sociais e econômicas” que “clamam ao céu” (n. 395).

Comprometemo-nos a trabalhar para que a nossa Igreja latino-americana e caribenha continue sendo, com maior afinco, companheira de caminho de nossos irmãos mais pobres (…). Hoje queremos ratificar e potencializar a opção preferencial pelos pobres feita nas conferências anteriores (n. 396; destaques nossos).

 

Nesse claro reforço da opção preferencial pelos pobres, encontramos a mais acentuada continuação daquela teologia tipicamente latino-americana, conhecida geralmente sob o nome de teologia da libertação. E, como se trata de algo que se sabe profundamente enraizado na tradição bíblica de um Deus que se revela como o Deus dos oprimidos, todas as tentativas de erradicar e reprimir essa teologia profundamente alimentada pela fé logram, na realidade, apenas o contrário: fortalecê-la, torná-la mais intensa em sua fé e mais dinâmica em sua esperança. Tal esperança se fundamenta no fato de que se conseguiu levar para a consciência geral das pessoas algo que, trinta anos atrás, ainda era considerado como o postulado teológico de uma teologia extremada. Uma geração inteira de cristãos e cristãs engajados e teologicamente conscientizados reivindica hoje a mudança exatamente daquelas estruturas que, já naqueles anos, foram reconhecidas pela teologia da libertação como contraditórias ao programa de Jesus Cristo. O que foi estigmatizado na época como postulado exagerado é atualmente considerado uma exigência bem-aceita para a criação de uma sociedade melhor. No Documento de Aparecida, tal exigência é confirmada e aprofundada sobretudo nas exortações sobre os discípulos missionários (nn. 184-224).

Nesse sentido, o fogo incentivado por essa teologia não permaneceu, de modo algum, somente embaixo da terra. Espalhou-se e cresceu para além do nível teológico, produzindo atuação consciente e fundamentada na fé. As perguntas que os teólogos começaram a levantar são hoje discutidas por leigos e leigas, tanto mais quanto um número sempre maior deles já não é leigo em teologia. Muitos se formaram em cursos teológicos de vários anos oferecidos em cada diocese em diferentes versões, dos quais participam cada ano dezenas de milhares de cristãos e cristãs. Eles continuam divulgando os pensamentos de uma teologia do reino de Deus, embasada em Jesus Cristo, e suas perguntas inquietam — pois não brotam da dúvida acerca da Igreja ou da negação da sua doutrina, mas, antes, de um amor pela Igreja que não conhece restrições e de uma esperança fundamentada numa fé profunda e viva que não se curva diante de nenhuma objeção. O consequente engajamento pelo melhoramento da situação dos pobres e excluídos em nada se inspira numa ideologia da esquerda. Em vez disso, alimenta-se e mantém-se pelo encontro vivo com o evangelho, pela descoberta de que o seguimento de Jesus não significa limitar-se ao nível espiritual, mas inclui atos concretos em favor daqueles aos quais também Jesus dedicou sua presença plena: aqueles que sofreram e ainda hoje sofrem injustiças.

Ao mesmo tempo, porém, o pensamento de solidariedade despertado pela teologia da libertação abrange a consciência de que não basta apenas cuidar das vítimas: trata-se também da atitude de procurar caminhos para evitar que surjam novos excluídos; trata-se da missão profundamente cristã de criar um novo mundo, do jeito como Deus o quer. Um mundo onde os povos, nas palavras da penúltima Conferência Episcopal Latino-Americana em Santo Domingo, “são libertados dos poderes da morte” (SD 13; cf. também 9; 26; 219; 235). Um mundo onde governam solidariedade e amor, em vez de egoísmo, sede de dominação, injustiça e guerra.

Essa atitude, até seu cerne mais íntimo orientada pelo evangelho, já não pode ser freada, porque ela busca sua força exatamente naquele evangelho ao qual recorre a Igreja.

Por ser divino, o fogo aceso pela teologia da libertação arde, em fidelidade às palavras daquele que é o parâmetro dessa teologia: “Eu vim para lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso!” (Lc 12,49). Também o Documento de Aparecida, apesar de todas as suas contradições, se apresenta como exemplo disso.

 

3. O fogo de uma teologia libertadora não se encontra somente no Documento de Aparecida, mas tem se estendido há tempo em todo o âmbito da Igreja e para além dele

O fogo incômodo de uma teologia libertadora e engajada não se encontra apenas em textos e documentos. Ele já se estendeu, apesar de todas as previsões pessimistas, para muito além do âmbito da Igreja. Hoje, é levado por imenso número de representantes de ONGs, de grupos de leigos e de grupos de ação pastoral — em suma, por toda uma geração de base eclesial que aprendeu a pensar e a agir de modo cristão, dentro e fora da Igreja. Sua efetividade já não se destaca de modo tão facilmente visível como no tempo em que todos os meios de comunicação falavam da teologia da libertação e todos os bispos a confessavam publicamente. Mas seus resultados existem e continuam se propagando, de modo profético e crítico. A exigência da superação das “culturas da morte” e de sua substituição por uma “cultura da vida” continua existindo e se aprofundou mais ainda (cf. SD). O questionamento profético de estruturas de poder é compreendido à luz daquilo que Jesus Cristo empreendeu em seu tempo. A noção de que a Igreja, no seguimento de Jesus, deveria ser servidora continua de pé e adquire sua força exatamente do amor por essa Igreja. O convite — constantemente renovado em nome de Jesus — à mudança da perspectiva dos governantes para aquela dos governados não pode ser reprimido, porque recorre ao próprio Deus.

Desse modo, o fato de que Deus mesmo se postou ao lado dos vencidos e excluídos é sempre de novo trazido à memória de maneira tão incômoda e exigente como Jesus o fez na sua época.

Ao mesmo tempo, a ampliação das perspectivas da teologia da libertação colaborou essencialmente para o surgimento de uma consciência dentro da Igreja, de uma nova e feliz solidariedade mútua. Essa solidariedade se mostra não só em grande número de grupos de ação social, mas também na expressão libertadora de uma religiosidade de festa e de vitória. Assim, a teologia da libertação continua sendo uma voz profética na Igreja que não pode ser ignorada, e isso justamente quando ela já não se dirige ao exterior de modo triunfal, mas compartilha o destino daqueles a quem representa, dos excluídos e esquecidos pelo poder.

Nesse sentido, também o Documento da Conferência de Aparecida, em todo o seu espírito, sempre de novo lembra que quem se compromete com o reino de Deus está constantemente diante do desafio de substituir todas as estruturas contrárias a esse reino por estruturas que correspondam aos critérios dele: “Nosso serviço pastoral à vida plena (…) exige que anunciemos Jesus Cristo e a boa-nova do reino de Deus, denunciemos as situações de pecado, as estruturas de morte, a violência e as injustiças internas e externas” (n. 95).

Tal agir, exigido pelo documento em nome de Deus, significa:

•   que dentro e fora da Igreja todos os mecanismos opressores de dominação devem ser transformados em estruturas de serviço;

•   que estruturas causadoras de injustiça e morte devem tornar-se estruturas que garantam justiça para todas as pessoas;

•   criar fundamentos que possibilitem vida para todos, que promovam a paz, e não a guerra;

•   criar atitudes de fraternidade e solidariedade em todos os níveis: privado, político-social, econômico e também eclesial.

 

A Conferência de Aparecida lembra que o reino de Deus significa misericórdia em vez de legalismo, servir em vez de dominar — em uma palavra, significa conversão, no que diz respeito tanto à relação privada com Deus quanto às estruturas do mundo e da sociedade. Contudo, quem hoje em dia reivindica semelhante conversão incomoda — e incomoda tanto quanto Jesus incomodou no tempo dele.

 

4. Dos anos 1970 para cá, o contexto da teologia da libertação mudou, e essa mudança se reflete também no Documento de Aparecida

Na formulação de suas exigências, a teologia da libertação, assim como o Documento de Aparecida, tem plena consciência de que a situação não é a mesma da época das Conferências de Medellín e Puebla.

Hoje, a teoria da dependência é ultrapassada. O colapso da antiga ordem econômica e o surgimento do neoliberalismo modificaram as premissas. A globalização e a idade da informática deslocaram as perspectivas. Dificuldades adicionais são provocadas pelo desaparecimento do interesse social, conjuntura típica da sociedade pós-moderna.

Além do contexto sociopolítico, mudou o contexto eclesial e, com ele, o tipo das comunidades eclesiais de base.

Mas o que permaneceu é o problema fundamental, e disso a Conferência de Aparecida tinha plena consciência. Num dos seus livros recentes, o jesuíta João Batista Libanio analisa claramente o problema. Diz ele que, com a disseminação desenfreada do sistema neoliberal nas sociedades da América Latina, muito pouco protegidas por mecanismos sociais,

 

os pobres ficaram ainda mais sós. O desemprego assume proporções alarmantes, não de maneira passageira, mas estrutural, por causa do tipo de desenvolvimento que se está impondo: valorização do capital (…). Ao fator econômico associa-se (…) a ideologia do mais forte, do mais sadio, do mais capaz (…). Daí surgem as multidões de pobres e derrotados em todos os níveis (…). São filhos do sistema. São aqueles que estão próximos da morte, em todos os sentidos.[1]

 

Diante dessa situação, a teologia da libertação apresenta, sempre de novo e com a mesma urgência, a pergunta bíblica: “Onde dormirão os pobres?” (cf. Ex 22,26). E lembra que Deus mesmo se fez o advogado daqueles pobres. Portanto, também os que se chamam seus discípulos devem imitá-lo.

Tanto hoje como ontem vale a tarefa dos cristãos e da Igreja de construir, em nome de Deus, um mundo mais justo; um mundo sem fome, sem guerra, sem pobreza nem marginalização; um mundo que declara como princípio mais alto não a maximização do lucro, mas a preocupação com a pessoa; um mundo que eleva a pessoa, com todas as suas relações sociais, humanas e religiosas, para uma vida que corresponda à vontade de Deus.

 

No fiel cumprimento de sua vocação batismal, o discípulo deve levar em consideração os desafios que o mundo de hoje apresenta (…): o êxodo de fiéis para seitas (…); as correntes culturais contrárias a Cristo (…); a desmotivação de sacerdotes (…); o fenômeno da globalização (…); os graves problemas de violência, pobreza e injustiça; a crescente cultura da morte que afeta a vida (n. 185).

 

Entretanto, para que semelhante atuação em favor da vida seja possível, deve-se mudar, em nível individual e estrutural, tudo o que não corresponde aos critérios de Deus. E é justamente isso que o Documento de Aparecida exige, como sempre o fez a teologia da libertação (cf. nn. 29; 95; 121; 185; 409; 439; 505; 550). Nessa exigência, aliás, tal teologia, nos últimos anos, ampliou e aprofundou muito os fundamentos bíblicos da sua concepção. Também na cristologia está sendo realizada sistematicamente uma mudança de paradigmas, rumo a uma “cristologia desde baixo”. Nela reflete-se e aplica-se de forma nova a kénosis ressaltada por Paulo em Fl 2,7. Aquele Jesus de Nazaré não só vivia uma opção pelos pobres, mas ele mesmo era pobre (Lc 2,6-7; 2Cor 8,9) — ideia, aliás, retomada pelo próprio papa por ocasião de seu discurso inaugural em Aparecida (cf. n. 392, nota 219).

Nesse contexto, a teologia da libertação lembra também que Deus se tem revelado em Jesus Cristo como um Deus humilde, servidor, que — com sua opção pelas vítimas e pelos perdedores — questionou não apenas o sistema vigente, mas toda a teologia de dominação das instituições religiosas de seu tempo. O Documento de Aparecida, por sua vez, reflete em todo o seu espírito exatamente esse esforço de uma Igreja que realmente toma a sério o desafio de ser servidora.

Ao lado da reflexão teológica, em nosso país já está sendo promovida, em grande escala, aquela outra atividade igualmente acentuada por Aparecida: a formação teológica do povo e a leitura da Bíblia ligada com a vida (cf. nn. 214; 238; 276; 295-300). O protagonismo dos leigos, reivindicado na penúltima Conferência do Episcopado Latino-Americano em Santo Domingo, é levado a sério e praticado. O modelo teológico de uma Igreja como povo de Deus é compreendido como chamado para a colaboração pessoal de cada um. Assim, a consciência de estar a caminho juntos confere a cada qual uma tarefa e um sentido em que é superado qualquer individualismo religioso. Isso permanece como marca da Igreja latino-americana e brasileira, mesmo diante da progressiva expansão do pentecostalismo e apesar da crescente emigração silenciosa de muitos católicos. Com a consciência de que “somos Igreja e, por isso, corresponsáveis”, cresceu, a partir de Medellín e Puebla, nova mentalidade entre os cristãos, a qual está sendo reevocada pelo Documento de Aparecida (cf. nn. 209-215; 505; 506). Permanece a compreensão de uma Igreja em que os fiéis não esperam passivamente, mas levam reivindicações à instituição e aos que nela são portadores de cargos oficiais, de modo que leigos e clero se engajem juntos na construção de um mundo melhor. É por conta dessa conjuntura que a exortação por uma campanha missionária continental, formulada pela Conferência de Aparecida, pode contar com uma resposta positiva e engajada do povo de Deus.

A teologia da libertação, assim, preparou o campo para que os membros da Igreja, hoje, em sua maior parte, se compreendam como Igreja a serviço. Seu serviço, quase exclusivamente não pago, orienta-se pelo princípio de que cada um deve realizar sua vocação pessoal com base em seus dons específicos, seus carismas. Aqui é importante a consciência de que se trata da missão de criar juntos um mundo melhor para todos, e não primariamente do esforço de ganhar a salvação da própria alma. Sobre o pano de fundo dessa nova consciência verificou-se uma reestruturação dos serviços pastorais e da vida eclesial. A Igreja se tornou uma Igreja viva e servidora na qual se reza e trabalha junto. Nela são levadas a sério tanto a conversão quanto a criação de estruturas sociais justas que possibilitem uma vida abundante para cada um. Por conseguinte, o leque de grupos de trabalho pastoral é também muito amplo e abrangente. Na atualidade, dificilmente existe uma paróquia onde não estão ativos pelo menos alguns grupos de ação pastoral.

A experiência de solidariedade e responsabilidade feita nas pastorais se estendeu para além dos círculos eclesiais. Desse modo, formou-se, na sociedade, nova consciência de responsabilidade humana que reflete, no mundo profano atual, os postulados formulados pela teologia da libertação e confirmados pela Conferência de Aparecida. Revela-se, portanto, sempre de novo a mesma coisa: a teologia da libertação está viva, enraizada na Igreja, é amada e combatida, mas realizada por uma base eclesial que se sabe profundamente segura na fé e em seu amor pela Igreja.

 

5. A Conferência de Aparecida, da mesma maneira que a teologia da libertação, abre o enfoque para os novos desafios do século XXI

A abertura rumo a novas perspectivas não se observa só na teologia da libertação. Também o documento mais recente dos bispos latino-americanos retoma vários dos novos enfoques dessa teologia. Tendo em vista as mudanças nas constelações, a conferência ampliou o seu olhar para novas categorias de pobres, dos quais no passado nem sequer se falava. Ela, além disso, menciona como causa das novas pobrezas o fenômeno da globalização e com isso, indiretamente, também o neoliberalismo, sistema econômico que se encontra na base da globalização (nn. 34; 43; 60; 61; 402; 407-430). Da globalização, a conferência diz que é um “processo promotor de iniquidades e injustiças múltiplas” (n. 61).

 

A globalização faz emergir, em nossos povos, novos rostos pobres (…) fixamos nosso olhar nos novos excluídos: os migrantes, as vítimas da violência, os deslocados e refugiados, as vítimas do tráfico de pessoas e sequestros, os desaparecidos, os enfermos de HIV e de enfermidades endêmicas, os tóxico-dependentes, idosos, meninos e meninas que são vítimas da prostituição, pornografia e violência ou do trabalho infantil, mulheres maltratadas, vítimas da exclusão e do tráfico para a exploração sexual, pessoas com capacidades diferentes, grandes grupos de desempregados/as, os excluídos pelo analfabetismo tecnológico, as pessoas que vivem na rua das grandes cidades, os indígenas e afro-americanos, agricultores sem terra e os mineiros (n. 402).

 

Com relação às injustiças estruturais, os bispos exigem, além disso, sempre de novo, maior justiça e solidariedade internacional (n. 406).

Mas as reflexões do Documento de Aparecida não se restringem a essas temáticas sociais. Elas, bem ao contrário, ampliam a tarefa da evangelização também para as áreas dos problemas ambientais, da problemática de uma indústria mundial de comunicação e da questão do papel da mulher na Igreja e na sociedade.

Esses e muitos outros temas estão sendo analisados pela perspectiva de um trabalho missionário da comunidade eclesial inteira, trabalho esse ao qual o documento exorta com voz urgente e profética. E todas essas tarefas estão sendo planejadas de novo com base no método “ver-julgar-agir”, com o qual a teologia da libertação tinha começado a realizar os seus postulados e que a conferência anterior de Santo Domingo tinha abandonado. Agora, ele volta com renovado vigor.

 

6. Aparecida reconfirma o método “ver-julgar-agir” promovido pela teologia da libertação

Na Conferência de Santo Domingo, em 1992, sob pressão de Roma, havia-se abandonado, no documento oficial, o método pastoral “ver-julgar-agir”. A Conferência de Aparecida o retoma de maneira acentuada e específica (n. 19).

É por causa disso — e também pelo fato de que muitos cristãos e cristãs já nem conhecem esse método tão enfatizado por Medellín e Puebla —, que nos parece válido retomar pelo menos as grandes linhas do método agora reconfirmado pela Conferência de Aparecida.

 

O VER

O ponto de partida é o seguinte: para poder falar teologicamente de determinada situação, precisamos primeiro conhecê-la em todos os seus aspectos. É preciso ver.

Para ver a situação, quer dizer, conhecê-la exatamente, é preciso analisá-la — e isso requer um método cientificamente reconhecido. Esse método, em geral, encontra-se nas ciências sociais, assim como elas hoje estão sendo desenvolvidas nas universidades.

 

O JULGAR

À situação assim compreendida se aplicam os critérios do reino de Deus propagado por Jesus Cristo. A pergunta fundamental é esta: a situação, assim como se apresenta, corresponde aos critérios do reino de Deus ou não? Podemos constatar, nas estruturas vigentes, os componentes de justiça e serviço, fraternidade e solidariedade, paz e verdade, que correspondem ao reino de Deus — ou existem estruturas de poder econômicas, financeiras, culturais ou religiosas que contradizem as ideias de Deus de um mundo justo? Essas são as novas perguntas feitas pela teologia da libertação, que, com elas, superou uma visão dualista do mundo que impediu por tanto tempo a Igreja e os cristãos de se preocupar com as estruturas concretas da sociedade. Até hoje, a teologia da libertação nos lembra que Jesus teve exatamente essa preocupação. Os estudos exegético-históricos em torno da redescoberta do “Jesus histórico” o demonstraram com grande clareza.

A pergunta — em que medida as estruturas existentes correspondem aos critérios de Deus? — é aquele segundo passo, conhecido como julgar, do método da teologia da libertação.

 

O AGIR

Ao passo do “julgar” segue um terceiro: se percebemos que determinadas situações, estruturas ou mecanismos não correspondem ao reino de Deus, é nossa tarefa, como cristãos e como Igreja, mudá-los, e isso significa começar a agir em nome de Deus.

Entretanto, esse agir precisa corresponder àquele ao qual se refere: a Jesus Cristo e à sua proposta de uma convivência humana na qual todos têm a oportunidade de viver plenamente, na qual ninguém é excluído e cujos mecanismos não criam mais pobreza, mas eliminam a pobreza existente. Se um olhar sobre a situação mostra que os mecanismos existentes não funcionam segundo esses critérios, então os seguidores de Jesus — os cristãos e sua Igreja — são chamados, como instrumentos de Deus, para transformar o mundo, a fim de que se conforme ao reino de Deus. O chamado de Jesus: “Venha e siga-me” significa, essencialmente: “Faça o mesmo que fez Jesus!”

Jesus, entretanto, realizou o reino de Deus de forma concreta. Exigiu dos poderes estruturais do seu tempo conversão para os critérios do reino. É exatamente isso que os cristãos devem fazer hoje e é a isso que a Conferência de Aparecida os exorta. Seu agir deve ser marcado por aquela opção que já marcou a ação de Jesus Cristo: opção em favor daqueles que, em primeiro lugar, estão em perigo e ameaçados em sua vida. E esses são os pobres.

A opção preferencial pelos pobres, que, por meio da teologia da libertação, voltou à consciência geral dos cristãos, era apoiada, aliás, até pela Instrução sobre alguns aspectos da teologia da libertação, publicada em 1984 pelo Vaticano. Nela se pode ler: “Mais do que nunca é preciso que muitos cristãos, a partir de uma fé esclarecida e da decisão de viver a vida cristã em sua integralidade, se engajem por amor aos seus irmãos empobrecidos, oprimidos e perseguidos na luta por justiça, liberdade e dignidade humana”[2].

 

Com a opção da Conferência de Aparecida de retomar o método pastoral “ver-julgar-agir”, a Igreja da América Latina mais uma vez se orienta para a transformação do mundo conforme os critérios do reino de Deus.

 

7. As comunidades eclesiais de base, exemplo da vitalidade de uma fé enraizada na Igreja e inspirada nos princípios da teologia da libertação, voltam a ser mencionadas de maneira explícita pela Conferência de Aparecida

Que as opções da teologia da libertação estão sendo defendidas e vividas hoje em dia — e isso em nome da fé e com raízes no amor pela Igreja — se constata também pela vitalidade sempre atual das CEBs. Em todo o País, podem existir em torno de 100 mil dessas comunidades, não o sabemos exatamente. Mas, nos seus encontros pan-brasileiros, há sempre de novo milhares de representantes para refletir e discutir sobre os desafios de ser cristão no mundo atual. Nesses encontros, eles têm reafirmado, “à luz da palavra de Deus, a opção evangélica pelos excluídos” e sua convicção de ser, com isso, Igreja no sentido verdadeiro. O documento final do Intereclesial de 2005 formulou essa opção em palavras muito expressivas, reafirmando “uma espiritualidade inserida na vida dos pobres, marcada pela experiência de Deus, buscando a libertação da pessoa, da história e de toda a criação”.

Uma pesquisa realizada em 2003 chega à conclusão de que “as comunidades eclesiais de base continuam sendo vitais e ativas, embora elas passem atualmente por uma modificação da maneira de seu agir e ser” (Religião e Sociedade 24, 1/2004, p. 148).

Torna-se, pois, cada vez mais claro que a nova maneira de ser Igreja, tal como está sendo vivida e praticada nas CEBs, realmente é um caminho para responder aos desafios da nova mentalidade em formação. Mentalidade essa que se distancia cada vez mais das antigas estruturas paroquiais e hierárquicas, de modo que José Comblin pode dizer que as CEBs “correspondem à evolução cultural e social das massas populares” que buscam “uma comunidade feita de relações horizontais”[3].

O documento da conferência dos bispos em Aparecida também mostra que aumentou a consciência sobre a importância dessa maneira de ser Igreja. O documento destaca as comunidades eclesiais de base e valoriza as suas atividades. Ademais, ressalte-se que até a noção de “libertação”, banida durante certo tempo dos textos oficiais, voltou a aparecer (nn. 385; 399).

Não obstante, as comunidades eclesiais de base, depois da Conferência de Aparecida, continuaram a ser o tema das discussões mais conflituosas. Isso porque desapareceram da versão original, aprovada pelos bispos na 4ª Sessão, muitos dos textos positivos com os quais tinham reforçado e encorajado essas comunidades.

Uma vez que, porém, em tantos outros parágrafos do Documento de Aparecida ainda se fala de maneira muito positiva das CEBs, não se conseguiu apagar a impressão geral de plena aprovação e encorajamento. Permanecem no texto sentenças como as seguintes, nas quais se avalia e se reconfirma a atuação, a atitude e o efeito das CEBs de maneira totalmente positiva:

 

(…) as comunidades eclesiais de base têm sido escolas que têm ajudado a formar cristãos comprometidos com a sua fé, discípulos e missionários do Senhor, como o testemunha a entrega generosa, até derramar o sangue, de muitos de seus membros (…). Medellín reconheceu nelas uma célula inicial de estruturação eclesial e foco de fé e evangelização (n. 178).

As comunidades eclesiais de base (…) [d]emonstram seu compromisso evangelizador e missionário entre os mais simples e afastados, e são expressão visível da opção preferencial pelos pobres. (…) as CEBs se convertem em sinal de vitalidade na Igreja particular (n. 179).

 

A discussão em torno das modificações posteriores do texto, aliás, tem mostrado, muito claramente, que os bispos latino-americanos já não formam aquela unidade uma vez existente. Também se constata, de maneira eloquente, que a influência e o poder de forças conservadoras e restaurativas aumentaram.

Mas, independentemente de tudo isso, o fogo daquela teologia que chamam de “libertadora” continua ardendo, resistindo a todas as tentativas de extingui-lo. Esse é provavelmente o sinal mais forte de que se trata de algo mais do que meramente invenção humana. “Porque, se o projeto ou atividade deles é de origem humana, será destruído; mas, se vem de Deus, vocês não conseguirão aniquilá-los” (At 5,38-39).

 

8. O chamado profético para a conversão num mundo de reestruturação social

Os muitos ataques contra a teologia da libertação conseguiram diminuir seus efeitos. No entanto, como a última Conferência Episcopal de novo o demonstrou, não conseguiram extinguir o seu fogo, que, em última análise, tem sua base em Deus.

Num mundo de crescente reestruturação social, que — apesar e justamente por causa de seus modelos neoliberais e neoconservadores — apenas reforça antagonismos sociais, a teologia da libertação atua hoje dentro e fora da Igreja como um chamado profético à conversão. “Convertam-se, mudem as suas estruturas, repensem sua imagem de Deus, voltem para aqueles inícios nos quais Deus, na pessoa de Jesus Cristo, viveu” — essas são algumas das constantes lembranças que tal teologia formula, as quais, de forma variada, encontramos igualmente no texto de Aparecida. Sob a forma de sinais e como modelo, são quatro decisões fundamentais que a teologia da libertação detectou em Jesus e não para de exigir, em nome dele, também de nós:

• a opção pelos pobres;

• a opção pela atitude de servir e contra a atitude de dominar;

• a opção pela misericórdia e contra qualquer legalismo;

• a opção em favor da vida.

 

Nesse contexto, é sintomático que o documento da 5ª Conferência Episcopal Latino-Americana retome aspectos importantes do Documento de Puebla, mas abra, ao mesmo tempo, o enfoque para um dos desafios mais urgentes da atualidade, a missão.

 

9. A opção pela ação missionária continental, formulada pela V Conferência, torna-se novo e urgente desafio também para a teologia da libertação

O maior e provavelmente mais importante efeito da Conferência Episcopal de Aparecida é a sua concentração corajosa e profética numa ação missionária continental. Contra uma história eclesial de séculos, em que a Igreja se preocupou sempre, em primeiro lugar, com a manutenção e a preservação das suas estruturas, a conferência tem a coragem de evocar novo Pentecostes, um êxodo para fora das estruturas cimentadas e por dentro de um mundo que precisa urgentemente de nova ação missionária e transformadora.

Necessitamos de um novo Pentecostes! (…) Não podemos ficar tranquilos em espera passiva em nossos templos, mas é urgente ir em todas as direções para proclamar que o mal e a morte não têm a última palavra, que o amor é mais forte, que fomos libertos e salvos pela vitória pascal do Senhor da História, que ele nos convoca em Igreja e quer multiplicar o número de seus discípulos na construção de seu Reino em nosso continente! (n. 548)

 

Esse “despertar missionário” (n. 551), decidido em Aparecida, pode provavelmente ser denominado o passo mais significativo e mais revolucionário desde a concentração na opção preferencial pelos pobres decidida em Medellín. Ele transformará de novo o rosto da Igreja latino-americana, porque suas consequências se farão sentir em todos os níveis. A condição para isso, porém, será a realização concreta daquilo que o documento formula.

A reação da base eclesial ao seu programa revela que ela tem clara consciência da urgência do projeto formulado pelos bispos. Ao mesmo tempo, porém, torna-se visível que nessa base se realizou, nos dez anos passados, enorme processo de conscientização e de mudança de mentalidade. O eixo principal dessa mudança consiste numa atitude muito mais autônoma dos fiéis com relação a documentos eclesiais. O texto produzido pela Conferência de Aparecida está sendo aceito hoje com atitude bem mais crítica do que aquela dedicada a documentos eclesiais no passado. As modificações efetuadas por “mãos desconhecidas” depois da votação do texto pelos bispos só reforçaram tal atitude.

Apesar disso, estão sendo aceitos os novos impulsos positivos com muita alegria e imensa boa vontade. Esta se fundamenta na práxis de uma fé vivida de maneira bem concreta e, ao mesmo tempo, numa teologia chamada de libertadora, que por sua vez se inspirou muito nessa práxis e nessa fé de uma Igreja estruturada desde baixo. Essa Igreja, baseada na sua fé sincera e forte, está pronta para aceitar os novos impulsos vindos de Aparecida e vai desenvolvê-los de maneira autônoma e criativa, confiando na força transformadora do Espírito Santo, que na sua Igreja age onde quer.



[1] João Batista Libanio. Olhando para o futuro. São Paulo: Loyola, 2003, p. 162.

[2] Cf. a versão publicada por Ed. Paulinas, pp. 7ss.

[3] José Comblin. A vida: em busca da liberdade. São Paulo: Paulus, 2007, p. 72.

Prof. Renold Blank