Publicado em março-abril de 2014 - ano 55 - número 295
O sentido da condenação e morte de Jesus
Por Paulo César Nodari
O projeto de Jesus se completa na sua morte, sinal de amor até o fim. Mesmo diante da dor extrema, Jesus não se desvia do desígnio do Reino de Deus. Ele assume a cruz com liberdade e revela seu amor incondicional por nós. Pelo seu sangue é selada a nova aliança e são desmascaradas as artimanhas da mentira e do poder opressor que se opõe ao Reino de Deus. A cruz, que significava destruição, torna-se reconstrução da condição humana.
1. INTRODUÇÃO
Para compreender o tema em sua amplitude, “condenação e morte de Jesus”, é preciso ter, diante dos olhos, alguns aspectos que por ora se podem denominar introdutórios, os quais, nesta reflexão, não têm o sentido de ser preliminares, mas, antes, exigência para a compreensão mais abrangente das razões da “condenação e morte de Jesus”.
Jesus é o dom gratuito do Pai
Sendo de condição divina, Jesus Cristo fez-se totalmente humano, esvaziou-se da condição divina para viver conosco (Fl 2,6-8). Deus revela-se como Deus muito humano. Nada do que é humano é indiferente a Deus. A grande Revelação de Deus é a humanidade. A humanidade de Jesus marca definitivamente a abertura e o acesso à vida de Deus. Agora, o encontro com Deus se dá não necessariamente no Templo, mas em Jesus Cristo. “Ninguém vai ao Pai senão por mim”, diz Jesus (Jo 14,6). Deus se faz carne e vem habitar entre nós. Jesus Cristo se faz humano e servidor, manifestação da graça de Deus. O Pai vem ao encontro da humanidade pelo seu Filho e convoca todos para o seguimento de seu Filho, Jesus Cristo, a partir do anúncio e concretização do Reino de Deus. Por meio de sua pessoa e seu testemunho, Jesus é a irrupção do Reino de Deus em palavras e ações, nas dimensões do dom e tarefa, na perspectiva do “já” e “ainda-não”. O presente inaugura a plenitude de salvação futura, e o futuro penetra e esclarece o presente como tempo de decisão para alcançá-lo por meio da libertação dos males que oprimem os seres humanos.
Jesus vem em nome do Pai para fazer a vontade do Pai
Em Jesus Cristo se dá a irrupção do Reino de Deus. É o divino que invade a história. Jesus não prega a si mesmo, mas algo distinto de si mesmo, o Reino de Deus. Jesus foi fiel servidor do Reino. Ele é “servo de Deus”. Toda a sua vida deve ser compreendida à luz do Reino e este, por sua vez, só pode ser compreendido à luz da entrega total de Jesus. Em Jesus, portanto, revela-se um Deus descentralizado. Ou seja, tem-se a manifestação de um Deus que vive para fora, isto é, totalmente para o outro. Jesus apresenta-se como radicalmente livre das leis opressoras da época e aponta para o caminho da liberdade, tendo o Reino de Deus como o centro de sua pregação e de sua vida. “O tema do ‘Reino de Deus’ penetra toda a pregação de Jesus. Só podemos compreendê-lo a partir da totalidade da sua pregação” (RATZINGER, 2007, p. 70). É o ponto-chave de compreensão de toda a vida do Filho, dando sentido à missão histórica de Jesus e concretizando-a. Ele assume, na força e presença do Espírito Santo, a radicalidade da pregação do Reino de Deus, pois ele não veio pregar a si mesmo, mas o Reino de Deus, sendo-lhe dadas pelo Espírito Santo energia e autoridade na pregação. No entanto, a sua autoridade não está de acordo com os moldes das autoridades humanas, pois gera conflitos não somente com seus inimigos e adversários, mas também com seus conterrâneos. É autoridade que vem à tona por conta própria, ou seja, impõe-se por si própria. Impõe-se pela verdade. Se a presença do Espírito Santo faz Jesus ser fiel ao Reino de Deus, então, para conhecer Jesus, é preciso fazer a experiência que ele faz do Espírito Santo, pois nele o Espírito Santo desceu, permaneceu, habitou, repousou em plenitude e encontrou-se à vontade como se estivesse em sua própria casa.
Jesus foi fiel à sua opção pelo Reino até o fim
Em Jesus Cristo, Deus se revela plenamente. Assim, não se pode compreender Jesus sem a perspectiva do Reino de Deus, nem o Reino de Deus sem Jesus Cristo. O Reino de Deus revela não só a pessoa de Jesus, que é a personificação do Reino, mas revela também em Jesus a face de Deus. O Deus de Jesus Cristo é o Deus do Reino. O projeto de vida de Jesus é o anúncio do Reino, dom de Deus que vem ao nosso encontro, porque somos pecadores e imperfeitos. “O tempo já se cumpriu, e o Reino de Deus está próximo. Convertam-se e acreditem na Boa Notícia” (Mt 1,15). Jesus resgata a linha mestra dos profetas e estabelece o núcleo em torno da justiça e da vida. “O Espírito Santo está sobre mim, porque ele me consagrou com unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18-19).
Jesus atua como servo (Fl 2,7). Ele testemunha e proclama com fidelidade o Reino. Mostra-o presente por meio de sinais, prodígios e milagres, que não revelam um Jesus “milagreiro”. Eles são sinais concretos que revelam a chegada do Reino de Deus. Evangeliza os pobres e se faz pobre com eles. Jesus quer garantir a vida aos que são incapazes de garanti-la por si mesmos e põem toda a força em Deus. Assim, o Reino de Deus é dos pobres não por privilégio, mas porque é o modo próprio de “ser de Deus”. Toda ação de Jesus é a promoção da solidariedade entre os homens e mulheres, denunciando as estruturas de morte e anunciando a vida que está nele. Jesus anuncia a prática do amor como dimensão protagonizante do Reino de Deus. O serviço de Jesus ao Reino se dá no amor que leva à vida e à comunhão de tudo e de todos em Deus. Sendo assim, por meio de seu sangue, assumido e derramado com liberdade na cruz, Jesus selou a definitiva aliança de amor.
O Filho do homem veio para dar a sua vida em resgate de muitos
Jesus não morrera, mas fora morto, tornando-se, assim, mártir, isto é, testemunha fiel da sua missão como resposta ao desejo de Deus. Jesus dá sua vida, gasta sua vida pelo Reino de Deus, porque é o Filho amado, o Predileto, o Eleito, o Primogênito, o Unigênito, o Enviado, o Administrador plenipotenciário do Pai. Tudo foi entregue às mãos do Filho pelo Pai. O Pai entrega ao Filho a missão do Reino. O Pai confia plenamente no Filho. Tem fé no Filho. Nele o Pai tem todo o seu benquerer. Assim, se o Pai tem fé no Filho, então a fé filial advém da fé paternal. O Filho torna-se companheiro, filho, adulto, amigo. O Filho adere à fé do Pai. Ele aprende a obediência por meio de seus sofrimentos, obediência esta não disciplinar, mas profética. O Pai dá ao Filho a grandeza de revelar o seu amor por toda a humanidade. Então, diz Jesus: “Quem vê o Filho, vê o Pai. Ninguém conhece o Pai senão o Filho e aqueles a quem o Filho der a conhecer” (Jo 14,1-6). O Filho é o revelador do Pai e o Pai é o revelador do Filho. “Meu Pai é vosso Pai e meu Deus é vosso Deus.” Assim, o caminho para o encontro com Deus é seu Filho, isto é, sua condição humana. Já não é preciso, por conseguinte, sair da condição humana para encontrar Deus. Para conhecer Deus, precisa-se conhecer o Filho. Portanto, se Deus se revela no Filho, então Deus, em Jesus Cristo, primeiro se revela como irmão e somente depois se revela como Pai. O encontro com o Pai se dá, pois, no Filho.
2. A CONDENAÇÃO E MORTE DE JESUS
A oração de Jesus
Na oração de Jesus no monte das Oliveiras, Jesus fala com o Pai. Percebe-se na oração de Jesus, primeiro, a experiência primitiva do medo, depois a turvação diante do poder da morte e, também, o pavor perante o abismo do nada, que o faz tremer, ou melhor, suar gotas de sangue (cf. Lc 22,44). Aquele que é vida sente advir sobre si todo o poder de destruição. Em Jesus vê-se o duelo entre luz e trevas, vida e morte. Manifesta-se não apenas uma angústia, mas o verdadeiro drama da escolha que caracteriza a vida humana. “Precisamente porque é o Filho, vê com extrema clareza toda a amplitude da maré imunda do mal, todo o poder da mentira e da soberba, toda a astúcia e atrocidade do mal, que se apresenta como a máscara da vida, mas serve continuamente à destruição do ser, à deturpação e ao aniquilamento da vida” (RATZINGER, 2011, p. 145). A cruz da obediência livre e fiel marca a passagem da vontade do Filho à vontade do Pai:
Assim, a oração “não se faça a minha vontade, mas a tua” (Lc 22,44) é verdadeiramente uma oração do Filho ao Pai, na qual a vontade humana natural foi totalmente arrastada para dentro do eu do Filho, cuja essência se exprime precisamente no “não Eu, mas no Tu”, no abandono total do Eu ao Tu de Deus Pai. Mas este “Eu” acolheu em Si a oposição da humanidade e transformou-a, de tal modo que, agora, na obediência do Filho, estamos presentes todos nós, somos todos arrastados para dentro da condição de filhos. (RATZINGER, 2011, p. 150).
A condenação de Jesus
Jesus é condenado, fundamentalmente, porque atingiu o centro da vida do Templo. A aristocracia do Templo exerce uma liderança sobressalente na condenação de Jesus. O sumo sacerdote que se destaca é Caifás. Os sumos sacerdotes mantinham-se no poder à medida que faziam a vontade de Roma e buscavam manter a ordem. Jesus, com seu gesto no Templo, tumultua a ordem estabelecida. Ele se torna um perigo. “Sua atuação contra o templo é uma ameaça à ordem pública suficientemente preocupante para entregá-lo ao prefeito romano” (PAGOLA, 2011, p. 454). Jesus atreveu-se a desafiar publicamente o sistema do Templo. A ordem pública está em perigo. Não há perigo ao poder do império romano, pois o Reino anunciado por Jesus não é de violência e não dispõe de legião alguma. E, por sua vez, a essência do Reino de Deus é o testemunho da verdade e não o poder. A verdade do Reino de Deus desmascara a promiscuidade entre poder e mentira, a busca de poder e prestígio em nome de Deus que havia na época. O Reino de Deus, pelo contrário, alicerça-se na verdade. Com Jesus, aparece a verdade como essência do Reino de Deus. “O mundo é ‘verdadeiro’ na medida em que reflete Deus, o sentido da criação, a Razão eterna donde brotou. E torna-se tanto mais verdadeiro quanto mais se aproxima de Deus. O homem torna-se verdadeiro, torna-se ele mesmo quando se conforma a Deus” (RATZINGER, 2011, p. 176). Para Jesus, “dar testemunho da verdade” significa realçar a vontade de Deus diante dos interesses do mundo e das potências do mundo:
A razão de fundo é clara. O reino de Deus defendido por Jesus põe em questão ao mesmo tempo toda aquela armação de Roma e do sistema do templo. As autoridades judaicas, fiéis ao Deus do templo, veem-se obrigadas a reagir: Jesus estorva. Invoca Deus para defender a vida dos últimos. Caifás e os seus servos o invocam para defender os interesses do templo. Condenam Jesus em nome de seu Deus, mas, ao fazê-lo, estão condenando o Deus do reino, o único Deus vivo em quem Jesus crê. O mesmo acontece com o Império de Roma. Jesus não vê naquele sistema defendido por Pilatos um mundo organizado segundo o coração de Deus. Ele defende os mais esquecidos do Império; Pilatos protege os interesses de Roma. O Deus de Jesus pensa nos últimos; os deuses do Império protegem a pax romana. Não se pode, ao mesmo tempo, ser amigo de Jesus e de César; não se pode servir a Deus do reino e aos deuses estatais de Roma. As autoridades judaicas e o prefeito romano movimentaram-se para assegurar a ordem e a segurança. No entanto, não é só uma questão de política pragmática. No fundo, Jesus é crucificado porque sua atuação e sua mensagem sacodem pela raiz esse sistema organizado a serviço dos poderosos do Império romano e da religião do templo. É Pilatos quem pronuncia a sentença: “Irás para a cruz”. Mas essa pena de morte está assinada por todos aqueles que, por razões diversas, resistiram ao seu chamado de “entrar no reino de Deus” (PAGOLA, 2011, p. 463).
Os atos que antecedem a crucificação
O centro da mensagem de Jesus é o Reino de Deus. Jesus apresenta a nova realeza. E o centro desta é a verdade. “A instauração dessa realeza como verdadeira libertação do homem é o que interessa” (RATZINGER, 2011, p. 178). Todavia, antes da sentença final, há ainda um interlúdio dramático, dividido em três atos. O primeiro ato é a apresentação que Pilatos faz de Jesus como candidato à anistia pascal. A questão toda é que só receberia a anistia quem fosse condenado por uma situação fatal. E em Jesus Pilatos não encontra nada de que o possa acusar a fim de ele ser condenado. Pilatos não consegue quebrar a lógica e o nexo entre poder e mentira. É incapaz de dizer não ao projeto perverso de opressão do povo pobre e dos que são condenados injusta e inocentemente. O segundo ato é a flagelação de Jesus. A flagelação era a punição alicerçada no código penal romano, infligida como castigo concomitante à condenação à morte (cf. RATZINGER, 2011, p. 180). É um ato que aparece durante o interrogatório, como prerrogativa do prefeito em virtude de seu poder, concedido pelo imperador. E o terceiro ato é a coroação de espinhos. Esta representava, na verdade, a zombaria contra quem quisesse ser rei. Os soldados se comprazem com isso, porque despejam toda a sua raiva contra os poderosos na vítima expiatória. Em Jesus condenado se apresenta o “Ecce homo” (RATZINGER, 2011, p. 182). A condenação com a finalidade de não causar rebuliço na ordem está acima da justiça:
“Ecce homo”: espontaneamente essa expressão adquire uma profundidade que ultrapassa aquele momento. Em Jesus, aparece o ser humano como tal. Nele se manifesta a miséria de todos os prejudicados e arruinados. Na sua miséria, reflete-se a desumanidade do poder humano, que desse modo esmaga o impotente. Nele se reflete aquilo que chamamos “pecado”: aquilo em que se torna o homem quando vira as costas a Deus e, autonomamente, toma em sua mão o governo do mundo.
Mas é verdade também o outro aspecto: não se pode tirar de Jesus sua dignidade íntima. Nele continua presente o Deus escondido. Também o homem açoitado e humilhado permanece imagem de Deus. Desde quando Jesus se deixou açoitar, precisamente os feridos e os açoitados são imagem do Deus que quis sofrer por nós. Assim, Jesus, no meio da sua paixão, é imagem de esperança: Deus está do lado dos que sofrem (RATZINGER, 2011, p. 182).
A morte de cruz caracteriza desprezo e humilhação
A fidelidade de Jesus ao Reino de Deus leva-o à superação de toda tentação de usar o poder do Espírito Santo como apropriação. Segundo Lucas, Jesus toma resolutamente a decisão de ir para Jerusalém. É decisão firme e resoluta (cf. Lc 9,51-52). Para Lucas, cada passo é definitivo e não há regresso. Jesus endureceu o rosto para Jerusalém. É o grande momento da decisão e da fidelidade. Jesus sabia do possível confronto em Jerusalém. Sabia que, por algum pecado ou ofensa religiosa, o profeta seria lapidado. Jesus podia ter esperado a lapidação, mas não a morte por crucificação. Nesse sentido, como consequência, tem-se que Jesus nem sequer é morto com a dignidade de profeta. Morre crucificado. A crucificação era sinal de castigo aos escravos e tinha a intenção de aterrorizar a população e servir, assim, como ato público de exemplo de castigo (cf. PAGOLA, 2011, p. 465). Em outras palavras, Jesus não morre com sentido religioso, pois a cruz lhe tira o sentido religioso da morte. A morte de cruz de Jesus tem caráter de humilhação. A cruz tira o mérito de Jesus como profeta.
Na cruz, Jesus, pelo amor incondicional, prova sua realeza e poder
A cruz não é só o sofrimento do Filho. É a dor do Pai que sofre a morte do Filho em seu amor. O óbvio começa a ser visto. O Filho sofreu a crucificação e morreu. Mas quem sofreu por último sua morte e sua perda foi também o Pai. Na perda do Filho, o Pai perdeu sua paternidade, todo o sentido do seu existir como Pai e como Deus. “A dor do Filho é a ‘dor’ do Pai. Este não é somente aquele que recebe o ato de entrega de Jesus; é ao mesmo tempo aquele que oferece e, em certo sentido, se oferece ao oferecer o Filho ao mundo” (ROCCHETTA, 2002, p. 300). Atingido pela morte, na dor e na perda, o Pai, na presença do Espírito, também conhece e experimenta a morte do Filho amado, segundo a espantosa afirmação da tradição cristã: “Deus morreu”. O sofrimento de Jesus deve ser visto no sofrimento do amor de quem se abre à mortalidade e à dor dos outros. É o sofrimento que engrandece aquele que sofre. Alarga seus ombros e seu regaço, carregando sobre si a mortalidade do outro e sua dor (cf. SUSIN, 1997, p. 111-151). “A morte de Jesus é o ato supremo da sua liberdade e do seu amor. Vive a obediência total em união com o Pai. O Filho do Homem foi levantado para atrair todos a si e ao Pai” (GRUPO FONTE, 2013, p. 154). O amor de Jesus pela criatura humana faz com que ele assuma incondicionalmente a realidade decaída e corrompida da criatura que se afastou do amor para resgatá-la em sua essência e entregá-la ao amor do Pai (cf. GRUPO FONTE, 2012, p. 140). Mesmo diante da dor extrema, Jesus não se desvia do desígnio do Reino de Deus. Vive a entrega à vontade do Pai com plena liberdade e gratuidade. “A cruz testemunha o imenso e eterno amor que flui do coração do Pai” (GRUPO FONTE, 2012, p. 140). O que o Pai quer não é que matem o Filho, mas que o Filho viva o seu amor até as últimas consequências. Jesus morreu como viveu, ou seja, morreu amando até o fim:
Deus não pode evitar a crucifixão, porque para isso deveria destruir a liberdade dos seres humanos e negar-se a si mesmo como Amor. O Pai não quer o sofrimento e o sangue, mas não se detém nem sequer diante da tragédia da cruz e aceita o sacrifício de seu Filho querido unicamente por amor insondável para conosco. Assim é Deus (PAGOLA, 2011, p. 345).
A cruz revela o poder e as forças do mal
Na cruz, perpassa a infidelidade da humanidade ao projeto de Deus. A morte de Jesus realiza a radical experiência humana do abandono. Na cruz, Jesus experimenta o fracasso de seu projeto. Ele sente o abandono, até mesmo daqueles que o acompanharam durante toda a vida. É o escândalo e a humilhação máxima a alguém. Na cruz, Jesus sofre e morre. Para verdadeira compreensão do sofrimento de Jesus, é preciso, no entanto, elaborar algumas considerações a seu respeito: não é um sofrimento como pena, como pagamento de uma culpa por ele merecida ou que estaria a ele reservada, pois poderia atingir o cerne da vida de Deus; não é um sofrimento como castigo pedagógico com vistas ao futuro; não é um sofrimento apenas como constitutivo da finitude humana, uma vez que se poderia cair no perigo do destino trágico; não é apenas como consequência das condições históricas e sociais de injustiça, pois se poderia cair no sofrimento a nós destinado simplesmente pelos outros; não é apenas como o sofrimento do inocente, pois haveria o perigo do exagero na dose do sofrimento, tornando-o monstruosidade, e da inconsequente divinização do sofrimento:
Sem dúvida, a primeira coisa que todos nós descobrimos no Crucificado do Gólgota, torturado injustamente até a morte pelas autoridades religiosas e pelo poder político, é a força destruidora do mal, a crueldade do ódio e o fanatismo da justiça. Mas precisamente ali, nessa vítima inocente, nós, seguidores de Jesus, vemos Deus identificado com todas as vítimas de todos os tempos (PAGOLA, 2011, p. 342).
O sofrimento de Jesus é expiatório
No sofrimento expiatório há a passagem da causa para alguém. Aqui geralmente este alguém é Deus. Esse é o sofrimento que salva, que santifica. É o sofrimento que gera a vida. É o sofrimento desde o outro e para o outro. É o sofrimento que não destrói. Engrandece e constrói. Não há amor sem dor. Ao invés de destruir-nos, resgata-nos. Esse sofrimento é o que nos reconcilia com Deus. Logo, o sofrimento é, em si, desumano, destruidor, angustiante, mas, integrado no amor, é extremamente divinizador. O sofrimento pelo outro, desde o outro e para o outro, é o sofrimento do amor. “O sofrimento e a dor, inerente à vida, fazem intuir que o dia da paixão e morte de Jesus, na cruz, revela o que há de mais profundo no ser humano e de mais belo no coração de Deus” (GRUPO FONTE, 2013, p. 154). Jesus é o Servo Sofredor por excelência. Vive sua liberdade como esvaziamento (Fl 2,6-8), ou seja, esvaziou-se da sua propriedade. Esvaziamento significa dizer que o que é meu passa a ser de outrem, fazer a experiência do ser acolhedor, ser hospitaleiro, entregar tudo, esvaziar-se da propriedade pessoal em vista da presença do outro. “Este ‘fim’, este extremo cumprimento do amar foi alcançado agora, no momento da morte. Jesus foi verdadeiramente até o fim, até o limite e para além do limite. Ele realizou a totalidade do amor, deu-se a si mesmo” (RATZINGER, 2011, p. 202). Na cruz realiza-se a entrega total de Jesus ao projeto do Pai e conduz-se a humanidade a Deus. Na cruz, configura-se nova forma de poder e realeza:
Desse modo é possível uma nova forma de obediência, uma obediência que ultrapassa todo o cumprimento humano dos Mandamentos. O Filho torna-Se Homem e, no seu corpo, reconduz a Deus a humanidade inteira. Só o Verbo feito carne, cujo amor se cumpre na cruz, é a obediência perfeita. Nele, não se tornou definitiva apenas a crítica aos sacrifícios do templo, mas cumpriu-se também o desejo que ainda restava: a sua obediência ‘corpórea’ é o novo sacrifício para dentro do qual ele nos atrai a todos nós e no qual, ao mesmo tempo, a nossa desobediência fica anulada por meio do seu amor (RATZINGER, 2002, p. 212).
Da cruz como destruição à reconstrução da condição humana
A cruz representa destruição e morte violenta. Cruz significa desprezo, castigo e fim de tudo. Porém se, por um lado, a cruz de Jesus é escândalo como sequência histórica da vida de sua vida, é também e, sobretudo, cruz redentora. A cruz em si não é salvadora nem, tampouco, redentora. “A cruz pela cruz não passa de uma maldição. Salvadora é a vida de Jesus” (RUBIO, 1994, p. 87). Em outras palavras, a cruz passou a ser salvadora por causa da vida de Jesus. “A cruz é salvadora porque constitui o resumo e a radicalização máxima da entrega de Jesus, vivida durante toda a sua vida” (RUBIO, 1994, p. 88). Tem-se a revelação de um Deus humilde e paciente, que respeita até as últimas consequências a liberdade humana. Deus não se revela como Deus imutável e majestoso, alheio ao sofrimento humano. Ele se revela como o Deus solidário ao sofrimento humano e às suas angústias. Vê-se, pois, um Deus identificado com todas as vítimas de todos os tempos (cf. PAGOLA, 2012, p. 341). Nesse sentido: “Com a cruz, ou termina nossa fé em Deus ou nos abrimos a uma compreensão nova e surpreendente de um Deus que, encarnado em nosso sofrimento, nos ama de maneira incrível” (PAGOLA, 2012, p. 343). Deus não responde ao mal com o mal. Do mal provém a redenção. A cruz, que significava destruição, torna-se reconstrução da condição humana (GRUPO FONTE, 2013, p. 154). “O mistério da cruz não está simplesmente diante de nós, mas envolve-nos, dando um novo valor à nossa vida” (RATZINGER, 2011, p. 213). Na cruz a morte é vencida, ou seja, a morte é transformada em vida.
A mensagem de Jesus crucificado é muito clara. Deus, que poderia ter aniquilado todas as formas de mal, preferiu entrar nele com a carne do seu Filho, em Jesus, proclamando o perdão e o retorno, e assumindo em si as consequências do mal, para redimi-lo na própria carne crucificada. É a lei da cruz, o princípio segundo o qual o mal não é eliminado, mas transformado em bem pelo exemplo e pela força da morte de Cristo. Deste modo, a cruz se torna a suprema lei do amor, e quem quiser seguir o caminho de regeneração inaugurado por Jesus deve entrar no mal do mundo para dali tirar o bem da fé, da esperança, da caridade, do amor pelos inimigos. A lei da cruz é formidável. Ela tem uma eficácia soberana no reino do espírito e é aplicável a todas as vicissitudes humanas. É o mistério do Reino de Deus, é o mistério do Evangelho. Não é uma lei aceitável pela simples inteligência natural humana. Ela não pode ser demonstrada, caso prescindirmos da pessoa de Cristo. A inteligência natural humana a recusa, não é capaz de entendê-la sem o auxílio da fé (MARTINI, 1998, p. 231).
Jesus é o Cordeiro sacrifical único e eterno
O projeto de Jesus se completa na sua morte, sinal de amor até o fim. Jesus assume a cruz com liberdade e revela seu amor incondicional por nós. Ele é o “Cordeiro que tira o pecado do mundo” (Ap 5,12; Jo 1,29). Pelo seu sangue é selada a nova aliança. Nessa perspectiva, a morte de Jesus faz parte do grande projeto de Deus. “Por acaso não vou beber o cálice que o Pai me deu?” (Jo 18,11). É o grande mistério de, em Cristo, reconciliar todas as criaturas e libertar os seres humanos da escravidão e do pecado. Jesus, em seu amor redentor, assumiu-nos na condição de pecadores, tornando-se solidário a nós. “Deus não poupou seu próprio Filho, mas o entregou a todos nós” (Rm 8,23), a fim de que fôssemos reconciliados com ele pela morte de seu Filho (Rm 5,10). Este é o exemplo de supremo amor de Deus para conosco. Jesus é o “novo Adão”. Por meio dele todos se tornarão justos. Vista na perspectiva da ressurreição, a morte de Jesus é o novo êxodo, o início da nova Páscoa. O último dia de Jesus é o primeiro a partir do qual o mundo foi redimido. Da cruz de Cristo nasce novo mundo, baseado na vitória sobre o pecado, a qual possibilita ao ser humano chamar a Deus de Pai, e sobre a morte, pois este é o caminho para a ressurreição; na libertação da lei, pois esta foi submetida pelo amor, e na ruptura do reinado de Satanás, pois Cristo o venceu. Enfim, a morte de Jesus é o selo da nova aliança. É o sacrifício pascal único da nova aliança. Depois dele, já não são necessários sacrifícios expiatórios, pois Jesus é o verdadeiro Cordeiro pascal. Todos os sacrifícios anteriores chegam à sua plenitude com a morte de Jesus na cruz (Hb 7,26). Na última ceia, Jesus disse que seu corpo seria entregue pelos pecados dos homens, seu sangue seria derramado para o perdão dos pecados e nele surgiria nova aliança (Lc 22,19s; Mc 14,26s). Jesus é a vítima do sacrifício que, com seu sangue, recoloca o ser humano em comunhão com Deus. Portanto, no sangue de Jesus na cruz é selada a nova aliança. Assim como no Antigo Testamento a aliança era concluída com um banquete e com a aspersão do sangue de animais sacrificados, a nova aliança, em Jesus Cristo, é firmada no sangue e realizada na ceia pascal, na qual ele mesmo se oferece como Cordeiro sacrifical único e eterno. O Crucificado desmascara as mentiras, as covardias e as artimanhas do poder opressor. [1] “A partir do silêncio da cruz, ele é o juiz firme e manso do aburguesamento de nossa fé, de nossa acomodação ao bem-estar e de nossa indiferença diante dos que sofrem” (PAGOLA, 2012, p. 347). Assim sendo, a cruz se torna o início da vida nova. “A cruz se torna a prova plena, incompreensível e irrefutável, do amor de Deus Pai pela humanidade” (GRUPO FONTE, 2013, p. 154).
BIBLIOGRAFIA
GRUPO FONTE. Manancial de vida. Exercícios espirituais. Porto Alegre: Pacartes, 2013.
______. O caminho de Jesus. Exercícios espirituais. Porto Alegre: Pacartes, 2012.
MARTINI, Carlo Maria. Reencontrando a si mesmo: há um momento em que devemos parar e procurar. São Paulo: Paulinas, 1998.
PAGOLA, José Antonio. Jesus: aproximação histórica. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
______. O caminho aberto por Jesus. Petrópolis: Vozes, 2012.
RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a ressurreição. São Paulo: Planeta, 2011.
______. Jesus de Nazaré: primeira parte: do batismo no Jordão à transfiguração. São Paulo: Planeta, 2007.
ROCCHETTA, Carlo. Teologia da ternura: um “evangelho” a descobrir. São Paulo: Paulus, 2002.
RUBIO, Alfonso Garcia. O encontro com Jesus Cristo vivo. São Paulo: Paulinas, 1994.
SUSIN, Luiz Carlos. Jesus: Filho de Deus e filho de Maria: ensaio de cristologia narrativa. São Paulo: Paulinas, 1997.
[1]Simplesmente repete a sentença anterior, com suave mudança de perspectiva, achei que poderia ser suprimido. Verificar.
Paulo César Nodari
Padre da Diocese de Caxias do Sul-RS, onde é vigário paroquial da Paróquia São Pelegrino; doutor em Filosofia pela PUC-RS; mestre na mesma área pela UFMG e graduado em Filosofia (UCS) e Teologia (PUC-RS). Atualmente é professor na Universidade de Caxias do Sul.E-mail: [email protected]