Por que muitos brasileiros mudam de religião? Por que surgem “seitas” e novos movimentos religiosos? O que a Igreja católica pode aprender, em busca de respostas a estas e outras perguntas?
De alguns anos para cá, os católicos (e especialmente os “agentes de pastoral”, os padres, os bispos, até a Santa Sé) voltaram a refletir sobre o sentido das mudanças religiosas no Brasil e da emergência de novos movimentos religiosos. Tendo acompanhado alguns desses debates e lido um número considerável de pesquisas sociológicas sobre o assunto, posso tentar aqui explicitar algumas das questões que os católicos se põem e esboçar algumas pistas, na procura de compreensão e de respostas. Tenho consciência de que estamos longe de poder formular respostas exaustivas! Os estudos sobre o fenômeno não são poucos, mas ainda devem ser aprofundados e completados. E, principalmente, poucos tentaram extrair dos dados já disponíveis conclusões mais amplas, aplicáveis à ação pastoral da Igreja. Vou fazer então minha tentativa. Não pretendo convencer o leitor. Bastar-me-ia fazê-lo refletir e levá-lo a confrontar minhas teses com sua própria experiência.
O ponto de vista em que nos colocamos — o ponto de vista católico — não implica desprezo ou desrespeito dos outros. Antes, em certo sentido, a nossa intenção é reconhecer os valores dos não católicos e, correlativamente, nossos defeitos. Porque, embora convencidos da verdade da doutrina católica, reconhecemos que na prática há falhas na vivência do catolicismo e, de outro lado, nas “seitas”, junto com os que nós julgamos erros, há expressões religiosas autênticas.
1. É correto falar em “seitas”?
Na linguagem da Igreja católica, mesmo em documentos de alto nível, recorre ainda o termo “seitas”. Também este número de VIDA PASTORAL foi pensado como um número sobre “seitas”. Mas é correto falar assim?
Creio que o termo seita não seja muito feliz. Ele traz consigo uma conotação depreciativa. As seitas seriam algo de inferior. Menosprezar as “seitas” era quase natural na Igreja ou em outras grandes religiões, pois consideravam os grupos separatistas como um fenômeno anormal, um desvio, um engano. Na realidade, adotar esse ponto de vista negativo impediria de ver muitas coisas, talvez as mais importantes que acontecem com a religião e seu dinamismo, suas transformações. É preferível, portanto, não procurar identificar as “seitas”, mas perguntar-se pelas mudanças da religião em geral. Se quisermos mesmo um termo substitutivo de “seitas”, podemos usar “movimentos religiosos autônomos”. É um pouco mais longo e pedante, mas é mais objetivo, ao menos para os sociólogos de hoje. A sociologia atual, de fato, renunciou ao uso da tipologia seita x Igreja, estabelecida por algumas obras clássicas (Max Weber, Troeltsch, Niebuhr) no início do século ou pouco depois. Além de outros argumentos, um último foi decisivo contra essa tipologia: é que se percebeu que as características atribuídas à “seita” (por exemplo: adesão voluntária e exclusiva, liderança carismática, forte identificação com o grupo e consciência de constituir uma elite, os “escolhidos”) encontram-se também em grupos que continuam dentro da Igreja, que não se separaram dela. Também no caso do Brasil seria difícil classificar como “seitas” muitos dos atuais movimentos religiosos. É mais correto, pois, reconhecer que traços “sectários” estão espalhados em muitos movimentos religiosos e influenciam mesmo as “igrejas” tradicionais. Por isso, logo adiante, procuraremos dar um quadro (relativamente) completo dos movimentos religiosos no Brasil.
2. O número das “seitas” e de seus membros está aumentando rapidamente?
Renunciando a utilizar o conceito de “seita”, vamos tentar medir — quanto possível, porque as estatísticas são escassas e fragmentárias — o crescimento dos movimentos religiosos não católicos. Como ponto de partida, podemos tomar os dados do Censo oficial. Na época da Independência, o Brasil é totalmente católico. Logo depois, o Império estimula a entrada de imigrantes europeus, entre os quais há protestantes (principalmente luteranos alemães). No Censo de 1890, no início da República, os católicos apareciam como 98,9%; os protestantes, como 1%; e 0,1% não estavam classificados. Desde então temos um progressivo aumento das outras religiões e uma diminuição dos católicos, que parece ter-se acelerado nas últimas décadas (católicos: 95%, em 1940; 93,5%, em 1950; 91,8%, em 1970; 89,1%, em 1980). Esta aceleração do fenômeno nas últimas décadas parece confirmada pelo levantamento feito pelo Setor de Ecumenismo da CNBB, em 1982. Apesar de muito incompletos, podemos considerar significativos seus resultados globais. Das 4.077 igrejas ou grupos religiosos que recenseou 16% foram fundados antes de 1950, 32% foram fundados entre 1950 e 1970, 52% eram posteriores a 1970.
Para interpretar corretamente esses dados, contudo, importa não esquecer o aumento global da população brasileira no período (52 milhões em 1950; 94, em 1970; 125, em 1982), nem o fato de que muitas dessas igrejas e desses grupos têm vida curta e são substituídos por outros. Além disso, evidentemente, seria necessário aprofundar as relações entre o momento político e eclesial brasileiro de 1964-1984 e a expansão das “seitas”.
O que é certo é que o fenômeno não começa em 1964, ou após as reformas conciliares na Igreja Católica. Sem suas raízes históricas, seria incompreensível. Brevemente, vamos ver a evolução das três grandes correntes religiosas que no Brasil do século XX competem com o catolicismo.
A mais consistente das três é o protestantismo. Segundo o Censo de 1980, alcançaria mais de 6,5% da população. Dentro dela devemos distinguir o protestantismo de imigração (constituído, basicamente, de luteranos descendentes dos imigrantes alemães e muito identificados com suas origens étnicas; nunca fez proselitismo, ou seja, nunca atraiu católicos), o protestantismo de conversão (nascido das missões norte-americanas da segunda metade do século passado — especialmente de presbiterianos, batistas e metodistas; hoje, com os luteranos, alcançaria um pouco mais de 3% da população brasileira ou 4 milhões de fiéis) e o pentecostalismo.
Segundo o Censo de 1980, os pentecostais eram um pouco mais numerosos do que os protestantes tradicionais, superando os 4 milhões de fiéis (cerca de 3,36% da população). Outras estimativas os dão como mais numerosos. Entre os pentecostais, podemos distinguir:
a) as Igrejas mais antigas (fundadas no Brasil por volta de 1910), que são também as mais numerosas: a Assembleia de Deus e a Congregação Cristã do Brasil;
b) a Igreja do Evangelho Quadrangular, de origem americana, e “Brasil para Cristo”, inteiramente nacional, que se difundiram na década de 1950 e apresentam características diferentes das primeiras;
c) as igrejas mais recentes, numerosas e mal definidas doutrinariamente, que dão ênfase à “cura divina”.
Ao lado dos protestantes propriamente ditos, devemos também mencionar as seitas milenaristas que se afastaram do cristianismo em muitos pontos, mas ainda usam a Bíblia (Mórmons, Testemunhas de Jeová etc.).
Outra grande corrente religiosa brasileira é aquela que os sociólogos chamam “mediúnica” e o povo, mais simplesmente, espiritismo. Dentro dela há dois polos bem distintos: de um lado, o espiritismo kardecista, que é uma religião “erudita”, com aparência científica; de outro, geralmente com raízes populares, os cultos afro-brasileiros, bastante diversificados (uns mais voltados para a preservação da memória africana, outros mais infiltrados pelo espiritismo ocidental, ou mais degradados em formas de magia). Entre os dois extremos, situa-se o grupo mais numeroso, o da Umbanda que realiza — embora de formas muito variadas — uma síntese brasileira de espiritismo, de tradições africanas e até de elementos católicos ou outros. Em termos de números, o Censo de 1980 encontrou menos de um milhão de kardecistas (cerca de 0,8% da população brasileira; porcentagem sensivelmente inferior à do Censo de 1950, quando atingiram 1,6%) e apenas 680.000 umbandistas e afro-brasileiros declarados (0,57%). Estima-se que alguns milhões de brasileiros frequentam, embora nem sempre assiduamente, a Umbanda, sem deixar de ser — a seu modo — “católicos”.
Finalmente, num terceiro grupo podemos colocar as outras religiões. Somando todos (budistas, israelitas, “seitas” de origem japonesa etc.), não passam de 1,15% da população (menos de um milhão e meio de brasileiros). Ao lado deles, porém, existe também um grupo mais numeroso (1,55% = 1.854.000, em 1980) que se declara sem religião.
Dentro desse quadro geral, é possível discernir efetivamente as tendências mais recentes?
3. Aumentam as “seitas” ou cresce a “privatização” da religião?
A “seita” das definições clássicas da sociologia (baseadas principalmente nas seitas cristãs nascidas do protestantismo anglo-saxão e norte-americano) são caracterizadas por uma forte identificação dos membros com o grupo da própria seita, que passa a representar um novo modelo de sociedade, a ser adotado integralmente pelos fiéis. Não se admite que participe do grupo alguém que não assuma radical e exclusivamente suas opções; se fraquejar, será expulso. A solidariedade, e mesmo a coerção social entre os membros do grupo, é forte. Muitas das seitas cristãs típicas iam além: em oposição à hierarquia da Igreja e a suas conexões com a riqueza e o poder, procuravam a igualdade entre os membros e mesmo formas de “comunismo” (comunhão de bens, vida em comunidades autossuficientes etc.).
Este modelo de “seita” se encontra, no Brasil, com uma ou outra modificação, nas Igrejas Pentecostais mais antigas, como Assembleia de Deus e Congregação Cristã. Também pode ser reconhecido naqueles grupos milenaristas que estão à margem do cristianismo, embora apelem em certa medida para a autoridade da Bíblia (Testemunhas de Jeová e Mórmons ou “Santos dos últimos dias”).
Mas não se poderia dizer o mesmo da Umbanda, nem dos grupos pentecostais mais recentes. Apesar de alguma tentativa de organização mais ampla e consistente, a Umbanda continua constituída basicamente por “terreiros” autônomos, com fracas vinculações entre si, e que não criam ao redor de si grupos de pertença no estilo da “seita” ou de comunidades. A Umbanda trabalha mais como uma prestação de serviços (terapêuticos e mágicos) a clientes individuais, que procuram o terreiro na hora de um “aperto”, de uma “crise”, de uma “doença”.
Mais impressionante que na Umbanda é a transformação que aparece nos grupos pentecostais (ou afins) mais recentes. Eles também valorizam extremamente o líder carismático que os fundou (como a Umbanda vive toda ao redor do “pai” ou da “mãe de santo”). Eles também enfatizam sobretudo a “cura divina”. Não exigem mais (como exigiria a Assembleia de Deus) um rigoroso comportamento moral, puritano, legalista. No fundo, mais do que fiéis, procuram “clientes” que — em troca de dinheiro (dado “espontaneamente” nas coletas ou no dízimo) — encontrarão cura, consolo, exorcismos, talvez um ou outro milagre. Eles preferem, à pequena “comunidade de irmãos” estritamente solidária, as grandes massas que podem ser reunidas nos estádios ou o público anônimo do rádio e da televisão.
Parece indubitável que estamos aqui diante de nítida influência da atual economia, da “sociedade de consumo”, sobre a “religião popular”. Também a religião (as suas músicas, as suas mensagens, sobretudo seus milagres, suas bênçãos, seus sinais tangíveis de proteção ou de consolo) se torna objeto de um comércio desenfreado, onde aquele que deveria ser o pastor se tornou o empresário (ou mercenário?) e aquele que deveria ser o fiel se tornou o cliente. Segundo a lógica do comércio de hoje em dia, os “templos” (com os relativos programas rádio-televisivos) se tornam supermercados, onde se misturam “produtos” religiosos de “marcas” diferentes. Recentemente, na catolicíssima Minas, observamos uma imitação de “padre”, usando batina, pregar “missões católicas”, num santuário de Bom Jesus, prometendo milagres e fazendo exorcismos, dentro de um culto de inspiração pentecostal, e chegando a vender “hóstias consagradas” (e milagrosas!), mesmo pelo correio. Embora o caso seja extremo e escandaloso, parece representativo de uma tendência, que com perspicácia — já faz anos — o prof. Duglas T. Monteiro apontava como “ecumenismo popular”, isto é, como uma tendência — ao nível da população atraída por esses cultos — a misturar pacificamente elementos religiosos de origem católica, protestante e espírita.
Duas observações ainda:
1) Os pentecostais, principalmente os de formação mais recente, geralmente negam qualquer aproximação do espiritismo e da “macumba”, que condenam violentamente. Na prática, porém, prometendo ao povo curar o mau-olhado, levantar o “encosto”, expulsar os demônios ou os espíritos maus, reforçam — conscientemente ou não — as crenças do povo no espiritismo e nos cultos esotéricos, mágicos.
2) O problema da fragmentação e comercialização da religião deve ser colocado dentro do problema mais amplo da cultura popular, de sua fragmentação e dominação pelo sistema econômico vigente, bem como da sua resistência e de sua luta para preservar valores autênticos do povo.
Enfim, seria preciso — mas aqui não é o momento — examinar esses fenômenos em conexão com um fenômeno mais geral, que atinge também o próprio catolicismo, de “privatização” da religião. Fenômeno mais desafiador, também no próximo futuro, para a Igreja, do que as “seitas” estritamente consideradas…
4. Quais os fatores que provocam o crescimento das “seitas”?
A resposta a esta pergunta é particularmente difícil e complexa. Vamos por partes.
1) Tradicionalmente tende-se a associar a multiplicação das seitas ao protestantismo. No Brasil, calcula-se que haja pelo menos uma centena de Igrejas pentecostais, além das principais denominações protestantes (na África, já anos atrás, calculava-se em 6.000 o número das pequenas igrejas independentes, quase todas nascidas das missões protestantes ou, pelo menos, de inspiração bíblica). É também bastante comum interpretar isso como fruto da própria estrutura religiosa do protestantismo; princípio da livre interpretação da Escritura, valorização dos leigos, tolerância para com os outros grupos. Contudo, esta interpretação arrisca ser simplista e superficial. No Brasil, Rubem Alves defende brilhantemente uma tese oposta: o protestantismo se divide, não porque é tolerante, mas — ao contrário — porque é extremamente rígido no plano doutrinário. Quem não aceita integralmente a doutrina e a prática da sua igreja (ou da “seita”), deve sair. Só lhe resta começar outra igreja, outra seita. O catolicismo, ao contrário — e é esta a observação de muitos sociólogos —, sabe manter uma unidade simbólica no meio da diversidade; diversos tipos de catolicismo convivem juntos, apesar das diferenças, na mesma Igreja. Mesmo as divergências doutrinárias são mais toleradas, pelo menos geralmente, com a exceção talvez de alguns períodos de rigorismo.
2) “Os países que sofrem um profundo reajuste social em nosso mundo moderno — como o Japão ou o Brasil — oferecem uma situação que conduz à proliferação das seitas”. “A afirmação deque as seitas se formam numa situação de mudança social vem a ser como um axioma”. Estas afirmações de um especialista, Bryan Wilson, são compartilhadas por muitos sociólogos. Não haveria formação de “seitas” numa sociedade estável. As mudanças sociais, as crises existenciais que delas decorrem para muitas pessoas, a necessidade de repensar a própria posição na sociedade, a resistência ou a revolta contra a nova ordem social (ou, inversamente, a chance de se revoltar contra a velha ordem, repressiva ou frustrante) estariam na origem da formação das seitas. Mais exatamente, diríamos que as mudanças sociais geralmente oferecem condições favoráveis à formação de novos movimentos religiosos, mas não são suficientes para constituí-los, nem os determinam totalmente. A mudança social oferece uma oportunidade. Se surgirá uma seita, e de que tipo, ou outro movimento religioso, depende de outros fatores, inclusive e particularmente da situação anterior da religião. Assim, já vimos, regiões protestantes têm produzido mais seitas que os países católicos. Também não se deve pensar que as “seitas” sejam um produto imediato da urbanização ou da industrialização. No Brasil, há “seitas” também que nascem no campo, até no interior da floresta amazônica. E muitas vezes em busca de uma vivência religiosa mais intensa, mais autêntica.
3) No caso do Brasil, os fatores da situação religiosa atual e da formação de tantos grupos religiosos diversos devem ser procurados também, embora não exclusivamente, na história do catolicismo popular. Sobre esta história, ainda pouco conhecida, começam a ser elaboradas algumas reflexões sociológicas, que podem iluminar o nosso assunto. Por exemplo, parece bastante claro que o catolicismo rural tradicional (o de mais de 90% dos brasileiros até o início deste século!) é uma religião com “muita reza, pouca Missa; muito santo, pouco padre”. O que significa: bastante distante da religião “oficial”, de seus ritos, de sua doutrina; mas bastante autossuficiente, de modo que os leigos saibam, eles sozinhos, praticar sua religião. Além disso, parece ter havido um conflito — ao menos latente — entre o catolicismo do padre e o catolicismo da roça. Conflito que se tornou mais agudo quando foi realizado (sobretudo a partir dos últimos anos do Império) o grande esforço pastoral, com a ajuda das congregações religiosas estrangeiras, de “tridentinizar” ou “romanizar” o catolicismo popular. Esse catolicismo popular, que ainda hoje constitui o quadro de referência da maioria da população, seria o terreno fértil onde as “seitas” podem semear e crescer. Vários sociólogos têm ressaltado o fato de que populações de origem rural encontram, particularmente no pentecostalismo, uma forma de realizar um “modelo ideal” de religião implícito no catolicismo tradicional. Sem dúvida, aderir ao pentecostalismo é uma ruptura com a “lei dos pais” (a religião da família), mas é uma ruptura que visa sair de uma vivência mais “relaxada” da religião para a conversão a uma vida mais santa, mais próxima da vontade de Deus.
Afirmações semelhantes poderiam ser feitas com relação aos cultos afro-brasileiros. Eles assimilaram elementos do catolicismo, no contexto de um conflito, de uma dominação violenta da sociedade branca sobre a população de origem negra. Como, no contexto da sociedade atual, isso não levaria a formas de religião “autônomas” com relação à Igreja, embora mantendo muitas vinculações com o próprio catolicismo?
A questão dos fatores ou das causas do crescimento das “seitas” exigiria também a análise dos fatores psicossociais e sociopolíticos, mas disso ocupar-se-ão os demais artigos, a seguir. Resta, pois, tirar algumas conclusões.
5. Que podemos concluir? Que podemos aprender?
O quadro que traçamos até agora, embora bastante simplificado, procura não esconder a complexidade da situação. Há diversos movimentos religiosos, mudanças de vários tipos, sob a influência de múltiplos fatores. Também a resposta pastoral da Igreja a esta situação só pode ser articulada, diversificada. Parece-me que podemos distinguir três níveis:
1º) A Igreja católica deve continuar a trabalhar por uma sociedade mais justa e mais humana. Antes de tudo, porque isso é uma exigência do Evangelho e um imperativo de justiça (como ressaltou, ultimamente, também a Instrução “Libertatis Conscientia”,sobre libertação e liberdade cristã). Mas também porque as seitas são fruto ou reflexo de uma sociedade profundamente desigual, em mudança rápida e traumática, que agride violentamente a cultura popular e leva, muitas vezes, à busca de soluções simbólicas porque impede a participação política e a satisfação efetiva das necessidades elementares.
2º) Na situação atual e no processo, provavelmente demorado, de transformação da sociedade, a Igreja deve também intensificar sua atenção às pessoas e às necessidades individuais. Não se trata apenas de oferecer formas de amparo ou de alívio a pessoas que estão famintas, doentes, desempregadas ou simplesmente angustiadas, mal ajustadas, frustradas no plano afetivo (mesmo quando dispõem de razoável situação financeira). Isto pode e deve ser feito, embora sem perder de vista o caráter de “emergência”, de “pronto-socorro”, que isso tem. Trata-se especialmente (e isto, na tradição católica moderna, é muito mais difícil) de oferecer uma prática religiosa mais atenta aos valores subjetivos, pessoais. A liturgia e a catequese devem se aproximar mais da experiência das pessoas e da linguagem e cultura com que a interpretam e exprimem.
3º) Entre os dois extremos — a problemática pessoal e subjetiva de um lado e as reformas ou mudanças da sociedade, de outro — situa-se um nível intermediário, o das comunidades menores em que as pessoas estão inseridas (família, comunidade de base, paróquia, ou também pró-fissão, sindicato, partido etc.). Neste nível, muito diferenciado e complexo para ser analisado aqui, a Igreja é chamada a modificar bastante profundamente sua linha de ação e suas estruturas. A igreja deve se tornar mais comunitária e mais participativa (Puebla, ao menos de forma genérica, já apontou este caminho. Mas talvez falte mais coragem de inovar, de transformar…). Vou dar com dois exemplos. Os fatos falam mais que as palavras.
• Em Belo Horizonte (MG), a Igreja católica, segundo o Catálogo da própria Arquidiocese (1985), possui 158 paróquias e 409 padres residentes (167 diocesanos e 242 religiosos) para cerca de 3 milhões de fiéis. Na mesma cidade, a Assembleia de Deus possui 347 templos, 40 pastores, e cerca de 1.500 presbíteros e 2.500 diáconos para 58.000 membros.
• No levantamento do Setor de Ecumenismo da CNBB (1982), respondido por 690 paróquias, à pergunta sobre os métodos usados pelos grupos religiosos não católicos para fazer adeptos, foram dadas as seguintes respostas:
— convites pessoais e visitas domiciliares 1.470
— pregação e culto ao ar livre 1.060
— cultos e orações em casas 317
— distribuição de folhetos 284
— as outras respostas — cursos bíblicos, promessas de cura, uso da rádio e TV — são muito menos numerosas, geralmente menos de 100 respostas; o número das respostas se refere ao número de grupos não católicos que usam os meios citados.
Diante de um fato, não se pode generalizar. Mas sabemos que estes fatos são muitos. Não é exagerado afirmar que há falta de ministros católicos e de maior dinamismo dos católicos nos contatos pessoais, visitas às casas, apostolado leigo.
Talvez, nas poucas linhas que me restam, se possa descrever a situação através de uma comparação tirada do mundo econômico (espero que o leitor faça as devidas distinções e não esqueça que se trata de mera comparação, de uma imagem ou de uma parábola). De um lado, há uma grande empresa, que até há pouco mantinha o monopólio do mercado; ou seja, ela sozinha fornecia 100% dos “produtos” em matéria de religião. Do outro lado, há várias firmas pequenas, que começaram a vender seu produto e hoje ocupam um pouco mais de 10% do mercado. Estas últimas são agressivas em sua propaganda, porque sabem que de outra forma não poderiam conquistar “clientes”. A empresa mais velha, acostumada por muito tempo (muitos séculos!) a não ter concorrentes, continua simplesmente a desfrutar do antigo prestígio e se limita a procurar conservar o que tem. Não estará, porém, na hora de se dar conta de que poderia rever sua estratégia de ação? Ou, ainda melhor, não está na hora de melhorar a qualidade de seus produtos e de seus serviços?
Bibliografia
Em lugar de uma longa lista de livros (que, aliás, já publiquei, a partir de uma sugestão do ISER, com acréscimos meus e uma introdução, no nº 181/182, janeiro-fevereiro de 1985, da revista Atualização, pp. 3-16), prefiro indicar algumas obras, que me parecem estimulantes para compreender o mundo das “seitas” e das novas tendências religiosas. Trata-se de obras de antropólogos e sociólogos, às vezes não católicos, que oferecem um ponto de vista complementar àqueles que estão acostumados a ler e ouvir apenas o ponto de vista oficial da Igreja:
— para uma visão de conjunto das religiões numa cidade do interior de São Paulo (Itapira), suas características próprias e suas relações, é extremamente interessante (e de leitura agradável) o livro de Carlos Rodrigues Brandão (Os deuses do povo. São Paulo: Brasiliense, 1980);
— o mesmo autor descreve a história religiosa de Itapira no 1º capítulo do livro Memória do sagrado. Estudos de religião e ritual (São Paulo: Paulinas, 1985), que reúne outros quatro capítulos sobre catolicismo popular;
— sobre a “inserção do protestantismo no Brasil” é esclarecedor e de grande interesse o livro de Antônio Gouvêa Mendonça, O celeste porvir (São Paulo: Paulinas, 1984);
— sobre os Pentecostais, além da obra clássica (e sempre útil por suas informações) de Beatriz Muniz de Souza, A experiência da salvação (São Paulo: Duas Cidades, 1969), é particularmente interessante a tese de Regina Reyes Novaes, “Os escolhidos de Deus” (Cadernos ISER, 19. São Paulo: Marco Zero, 1985); sem esquecer os artigos de Francisco Cartaxo Rolim in REB de 1973, 1981 e 1982…
— sobre a Umbanda, além do mais antigo e erudito livro de Renato Ortiz, A morte branca do feiticeiro negro (Petrópolis: Vozes, 1978), recomendaria o ágil e agudo livrinho de Patrícia Birman, O que é Umbanda (São Paulo: Brasiliense, 1983. Coleção “Primeiros passos”);
— sobre o chamado “ecumenismo popular” e as tendências mais recentes da religiosidade popular é indispensável o breve estudo de Duglas Teixeira Monteiro, “Igreja, seitas e agências”, publicado no volume coletivo A cultura do povo (São Paulo: Cortez & Moraes/Educ, 1979, pp. 81-111);
— sobre a história do catolicismo popular (na região de Campinas, São Paulo), num enfoque original e crítico, é particularmente significativo o livro de Luiz Roberto Benedetti, Os santos nômades e o Deus estabelecido (São Paulo: Paulinas, 1984);
— enfim, quem quisesse uma obra só sobre tudo isso, aconselharia o pequeno livro de Ruben César Fernandes (um antropólogo de origem protestante), Os Cavaleiros do Bom Jesus. Uma introdução às religiões populares (São Paulo: Brasiliense, 1982. Coleção “Primeiros voos”), que, na primeira parte relata a experiência de uma romaria de cavaleiros e, na segunda, descreve os traços essenciais de catolicismo, protestantismo e cultos afro-brasileiros na percepção do povo.
Pe. Alberto Antoniazzi