Publicado em número 232 - (pp. 9-14)
Catequese renovada e Bíblia na catequese
Por Therezinha Motta Lima da Cruz
1. Vinte anos… e a renovação tem de continuar
Nossa Igreja elabora muitos documentos. Poucos desses documentos terão sido tão divulgados quanto Catequese Renovada. Não basta atentar para as suas muitas edições (mais de 30!). Um documento pode ser adquirido e não ser lido, pode ser lido e não fazer efeito. Catequese Renovada foi um documento com um itinerário singular. Caiu literalmente nos braços do povo, foi transportado em procissão, apareceu em faixas, camisetas, virou “carteira de identidade” de certo tipo de catequistas. Isso não aconteceu apenas pela qualidade do texto em si. Dois fatores foram fundamentais nesse processo de recepção: o trabalho dos assessores e grupos de reflexão da Dimensão Bíblico-Catequética da CNBB, em diversos níveis, e a própria índole da catequese, com sua organização, com a vontade dos catequistas de aprender.
É claro que a reação não foi uniforme nem a absorção foi total. Por exemplo, foi mais fácil assimilar o vocabulário novo que o documento trazia do que de fato pôr em prática o que esse vocabulário significava. Expressões como “encontro” (em vez de aula), “interação entre fé e vida”, “Bíblia — livro da catequese por excelência” tornaram-se comuns e até eram um sinal que mais ou menos identificava quem estava atualizado. Nem sempre, na prática, se sabia muito bem como aplicar esses princípios. Talvez por isso houve enorme procura por cursos e encontros que tratassem de metodologia.
Os bispos, ao estimularem a produção do documento, estavam mais preocupados com uma orientação sobre os conteúdos da catequese. Era a terceira parte do texto: “Temas fundamentais para uma catequese renovada”. Mas as catequistas, que tinham nas mãos o problema concreto de ser educadoras — muitas vezes sem ter sido preparadas para isso —, queriam saber mais de “como” transmitir.
O método teve prioridade. Acontece que, em educação, o método faz parte do conteúdo. A interação entre fé e vida criou aquela figura tão difundida do catequista com a Bíblia em uma das mãos e o jornal na outra. A realidade como conteúdo foi exigência do método que operacionalizou a famosa declaração de Medellín: “As situações históricas e as aspirações autenticamente humanas são parte indispensável do conteúdo da catequese”. Cada palavra dessa frase foi explicada, exemplificada e anunciada como lema de uma desejada revolução, que não aconteceu da mesma forma em todos os lugares, mas esteve no fundo dos materiais e reflexões produzidos nos regionais da CNBB.
Um marco na divulgação do documento e na compreensão da evolução que veio depois foi a 1ª Semana Brasileira de Catequese, realizada em 1986. A intenção era envolver o máximo possível de catequistas – não só os que iriam a Itaici para participar do evento.
Os assessores nacionais prepararam um instrumento de trabalho com oito teses, com perguntas que estimulavam o conhecimento do documento. Nessa época eu era coordenadora paroquial e participava de um grupo de reflexão, para ajudar os assessores da Dimensão Bíblico-Catequética, o GRECAT. Li essas oito teses. Percebi tratar-se de algo que poderia ser útil a outras lideranças da comunidade, que trabalhavam na educação da fé de alguma maneira, mas não usavam o rótulo de catequistas. Telefonei para o padre da minha paróquia e pedi licença para ampliar o trabalho que ia fazer com os catequistas, envolvendo outros agentes. Resposta do vigário: “Você vai fazer o quê? Discutir documentos da CNBB? Se já chamou os catequistas, vá em frente, mas não precisa chamar mais ninguém. Esses documentos são teoria vaga; o povo não precisa disso, não”…
Nestes últimos 20 anos, sem dúvida algo mudou entre os agentes de pastoral que atuam na catequese. O documento Catequese Renovada frequentemente foi mais valorizado pelos catequistas leigos, que viram nele um apoio para a construção da sua identidade.
Há 20 anos, poucos agentes de pastoral sabiam se Medellín era nome de gente ou de lugar. Anos mais tarde verificamos que o documento de Santo Domingo teve maior procura em um ano do que Puebla e Medellín em 13 anos. Solidificou-se aí a tendência de os leigos começarem a querer saber o que a Igreja estava dizendo nos documentos que os padres mencionavam. Isso é muito significativo como índice de uma postura mais adulta do laicato atuante. De fato, fica difícil ser sujeito da ação pastoral sem conhecer as orientações gerais da Igreja em cada período. Não adiantaria dar ênfase à catequese de adultos — como fazia a Catequese Renovada — se os próprios catequistas não crescessem na Igreja como adultos, capazes de ter voz bem informada para partilhar da tomada de decisões com competência. Como a rotatividade é fenômeno sempre presente no grupo de catequistas, a maioria das comunidades tem hoje muita gente que não foi apresentada ao documento Catequese Renovada. Se a comunidade for ativa e “antenada” às orientações da CNBB, os conteúdos do documento estarão presentes de alguma forma no jeito de agir, mesmo que explicitamente não seja mencionado. Por outro lado, há também em andamento na Igreja uma religiosidade de retorno a formas intimistas e devocionistas, possivelmente como reação a certa insegurança diante da perda de referenciais num mundo com excesso de informações e opções, em mudança acelerada.
Nos anos 80, a Igreja no Brasil tinha um rosto bem específico, facilmente identificável, com sinais bem concretos. Na Semana Brasileira de Catequese de 86, alguns desses sinais criaram situações de encontro e desencontro e mostraram indícios do que viria depois. Ao chegar, os catequistas foram saudados com uma faixa em que se lia: CEBs, o novo jeito de toda a Igreja ser. Já aí alguns reclamaram da expressão “toda a Igreja”. Um novo jeito de ser Igreja parecia bom, CEBs eram algo ótimo, mas “toda a Igreja” parecia deixar de fora uma quantidade enorme de catequistas urbanos, centrados na paróquia comum de classe média. Ninguém era contra a opção pelos pobres nem contra as CEBs — marcos na vida da Igreja no Brasil. A questão da justiça social era inegociável, compreendida como exigência fundamental do evangelho. Mas havia no ar uma sensação de que poderia haver enorme variedade de modos de evangelizar, priorizando os interesses dos pobres e incluindo outros destinatários. Houve, pelos corredores, quem dissesse que a CNBB tinha agora um “bebê novo” e estava deixando de lado outros filhos. O mal-estar exigiu que se pedisse ao Pe. Wolfgang Gruen que improvisasse um grupo de trabalho sobre Pastoral Urbana, para dar espaço a quem não estava vendo a sua realidade contemplada no clima geral e no que tinha sido planejado.
Outro dado interessante foi a presença, já prevista no planejamento, com bastante destaque, de uma palestra sobre a questão da cultura. Mas, como era próprio da leitura da realidade feita nessa época, previa-se o crescimento do indiferentismo religioso e não se pressentiu suficientemente a explosão do chamado “sagrado alternativo” que viria depois. No entanto, começava a ganhar corpo a valorização da religiosidade popular, que teria seu ponto alto mais tarde em 1991, no V Encontro Nacional, voltado para o tema da inculturação.
Inculturação era uma postura que casava muito bem com duas orientações fortes do documento Catequese Renovada: a interação entre fé e vida e a importância da comunidade, considerada em si mesma como catequizadora. Compreendia-se, portanto, a catequese como algo que acontecia numa cultura maior mediatizada por uma comunidade que, ao viver os valores do evangelho, se tornava, ela própria, conteúdo da catequese. A primeira forma de pôr em prática esses princípios deu-se por meio da presença de símbolos da cultura nos encontros e celebrações. Era um começo. Logo foi ficando claro que era mais fácil, para a Igreja, inculturar-se com base nos dados da cultura rural. A história da Igreja traz séculos de identificação com o rural. A maior parte dos padres e religiosas vem do campo ou de cidades pequenas. A própria Bíblia é fruto do ambiente rural ou de um urbano de tempos antigos, com uma configuração que não tem sintonia com a vida trepidante dos grandes centros atuais. Muitos são os agentes que vão para a cidade com a nostalgia de outros ambientes. Estudam, usam recursos modernos — e continuam com a mentalidade do campo. Por exemplo: não é raro encontrar textos redigidos em computador de última geração falando mal do mundo moderno!
Mas a fidelidade ao espírito do documento Catequese Renovada foi exigindo a reflexão sobre novos aspectos da realidade e sua incorporação ao trabalho catequético. Esse documento valorizava a pessoa do catequista, seu carisma, suas aspirações, o toque pessoal indispensável, que nenhum recurso audiovisual pode substituir. Esse catequista, visto inicialmente como um militante da causa do evangelho, foi sendo cada vez mais contemplado como ser humano integral, com emoções, necessidades afetivas, carências a ser supridas, história de vida a ser considerada. O catequizando também foi sendo percebido assim. Palavras como afetividade e acolhimento aparecem cada vez mais na formação dos catequistas e no discurso geral da Igreja. A individualidade, tão cara ao mundo moderno, vai sendo aos poucos valorizada, distanciando-se, ainda que devagar, do conceito negativo do individualismo egoísta que impede a solidariedade comunitária e o empenho pelo bem comum. Essa passagem não foi fácil para uma Igreja acostumada a falar em rebanho, muitas vezes até inconscientemente saudosa da cristandade uniforme. Individualidade implica originalidade, criatividade, indispensáveis para dar conta dos desafios do mundo moderno. Até as empresas, que só pensam em lucro, não querem mais o operário somente bem treinado, e sim o funcionário flexível, capaz de aprender, de se adaptar a novas situações, de ter ideias originais.
Ainda temos muito “muro das lamentações” quando se fala de individualidade. Liga-se isso ao fato de as pessoas não herdarem mais em bloco a religião da família. Elas escolhem e — mais do que isso — constroem seu modelo particular de religião. É um comportamento bem ambíguo: ao mesmo tempo que as pessoas se deixam massificar pela propaganda consumista, em relação às autoridades instituídas não querem saber de heteronomia, tudo passa pelo crivo pessoal. O pluralismo amplia o leque de escolhas e gera insegurança em quem estava acostumado a se apoiar na autoridade da Igreja hegemônica e de postura mais uniforme. É compreensível a inquietação, mas talvez fosse interessante perguntar: só sabemos trabalhar com estereótipos, modelos prontos? Temos medo de gente que pensa? Somos capazes de perceber — para além dos nossos medos de relativização da fé — que essa apropriação pessoal da mensagem abre possibilidades imensas ao enriquecimento da percepção das múltiplas possibilidades de viver o mistério cristão? Só vemos ameaças, não vemos um possível novo sopro do Espírito? Hoje até as crianças fazem perguntas “incômodas”, dão opinião, recebem informações de variadas fontes.
Mas o documento Catequese Renovada destaca outro tipo de destinatário: “A catequese comunitária de adultos, longe de ser apêndice ou complemento, deve ser o modelo ideal e referência, a que se devem subordinar todas as outras formas da atividade catequética. Ela deve receber uma atenção prioritária em toda paróquia e comunidade eclesial de base” (CR 120).
De lá para cá, passamos a falar de catequese com adultos, em vez de catequese de adultos, acentuando a necessidade de os adultos serem tratados como sujeitos e considerados parceiros, tanto no processo de iniciação como na formação permanente. Hoje se percebe, até mais claramente do que há 20 anos, que isso significa valorizar, respeitar a individualidade do adulto que busca a catequese. Não se trata apenas de evangelizar os adultos, mas também de evangelizá-los como adultos e de querer depois que eles atuem na comunidade como adultos, e não como criancinhas obedientes que ficam inseguras se não receberem todas as instruções sobre o que devem fazer ou pensar (nem as crianças hoje são mais assim!).
O mundo onde esses adultos vivem é plural, em todos os aspectos: na cultura, na religião, nas maneiras de viver. O pluralismo é estimulante, cheio de possibilidades muito boas. Já disse um conhecido humorista: “Quando todo o mundo pensa igual, é sinal de que ninguém está pensando grande coisa”.
Temos receio de que essa pluralidade desoriente, conduza a uma relativização esfaceladora. Procuramos balizas orientadoras. Algumas já estavam no documento Catequese Renovada. Ele recomenda cuidado com quatro aspectos interligados, que garantem a fidelidade da mensagem:
a) Cristo, centro da mensagem
“Cristo deve aparecer como a chave, o centro e o fim do homem, bem como de toda a história humana” (CR 96). Jesus e seu projeto de vida são o centro da proposta catequética. São também o ponto de encontro das diferenças. Mantida a fidelidade essencial a Jesus e a seu projeto, as contribuições originais tornam mais interessante o conjunto da prática cristã.
b) Integridade
Os cristãos têm direito de receber a Palavra da fé plena e integral. Isso não significa que temos de ensinar tudo o que existe para ser ensinado, e sim que não deve estar faltando nenhum aspecto importante, cuja ausência promova uma descaracterização da mensagem. Um desses aspectos, durante muito tempo deixado na sombra, é a dimensão do diálogo ecumênico e inter-religioso. Os recentes projetos evangelizadores (PRNM e SINM) deram bom destaque a esses pontos, que também fazem parte da doutrina e se mostram indispensáveis no pluralismo que cada cristão vive na família, na vizinhança e no trabalho.
c) Hierarquia das verdades
O catequista deve saber distinguir o que é fundamental, essencial, para dar a cada parte da mensagem o lugar correto dentro do conjunto. Entre os muitos conceitos verdadeiros que se ligam à fé, alguns são mais importantes; essa importância maior deve ser destacada.
d) Adaptação
“Adaptação significa levar em conta as condições históricas e culturais dos catequizandos. A integridade do conteúdo pode e deve ser comunicada numa linguagem adequada aos homens de hoje” (CR 101). Assim o catequista é chamado a conhecer bem tanto o conteúdo como o destinatário. Adaptação é como tradução: só sai bem-feita se o tradutor estiver à vontade, tanto com a língua original como com o idioma do destinatário. Muitos dos chamados “católicos afastados” têm problemas com a formulação de algumas verdades de fé, que mais oculta do que deixa transparecer a relevância humana do conteúdo. Os catequistas percebem que, para adaptar em vez de repetir, precisam de um conhecimento mais sólido. É grande o clamor por formação. Não basta fazer um curso a mais. É necessário esse curso ser, por si só, uma experiência de catequese com adultos, o próprio catequista ser aí tratado com o mesmo espírito que ele deveria ter ao lidar com os adultos que vão contar com a sua ajuda para crescer na fé.
A catequese com adultos vai se tornar cada vez mais necessária à medida que se deixa de ter religião herdada ou por pressão social, para se ter identificação com o rótulo religioso da maioria. As análises do último censo, interpretando a queda do número de católicos, levantam a suspeita de que nem sempre se trata de haver mais gente praticando outras religiões, ou nem tendo religião alguma, mas sim de gente que, agora, tem mais coragem para assumir essa situação. Isso acontece até nas famílias dos catequistas. Não é raro que filhos de catequistas se afastem da Igreja ao se aproximarem da idade adulta. Por este Brasil afora, percebe-se o interesse de muitos quando se toca abertamente no problema, sem ficar insinuando que isso acontece porque “não souberam dar testemunho”.
Muita coisa acontece entre a primeira instrução religiosa, mesmo que tenha sido boa, e a opção que se faz — ou não — pela Igreja em idade adulta. A resposta simplista “tudo depende do exemplo da família” não funciona mais. Na verdade, tudo depende de muita coisa: da qualidade da vida da comunidade de fé, das influências de vários grupos além da família, da história de vida e da decisão pessoal (livre-arbítrio, dado por Deus!) de cada um.
O fato é que se percebe, cada vez mais, a necessidade de evangelizar — ou reevangelizar — os adultos. E aí, a Catequese Renovada de novo aponta caminhos. Ao dar ênfase à comunidade catequizadora, acentua a necessidade de haver um ambiente paroquial que seja, por si só, sinal dos valores evangélicos. Ao encontrar gente que queria segui-lo, Jesus convida: “Vinde e vede” (Jo 1,39). A comunidade precisa passar no teste do “vinde e vede”: quem vem e vê precisa se encantar e ter vontade de ficar. Isso se torna particularmente relevante nas grandes cidades, que não oferecem condições para a vizinhança ser um espaço natural de laços comunitários e onde a família nuclear é mais comum do que as extensas redes familiares do ambiente rural. A comunidade eclesial, além de ser um grupo de vivência da fé, torna-se importante fonte de socialização, um espaço gregário, se for capaz de fornecer gratificante rede de relações humanas.
2. Sagrada Escritura e Tradição, fontes da catequese
Outro caminho indicado pelo documento Catequese Renovada advém do destaque dado à Sagrada Escritura e à Tradição, entre as fontes da catequese: “Não se trata simplesmente de tirar da Sagrada Escritura e da Tradição elementos fragmentários, a serem inseridos numa Catequese de orientação diferente, mas de respeitar a natureza e o espírito da Revelação bíblica” (CR 86).
A natureza e o espírito da Escritura (e da Tradição onde ela nasceu e foi reconhecida como Palavra de Deus) nos encaminham para os adultos de várias maneiras. Em primeiro lugar, a Bíblia é um livro de adultos e para adultos. Crianças podem ser apresentadas aos objetivos gerais da História da Salvação, podem refletir com proveito sobre muitas passagens bem escolhidas. Mas a compreensão de texto e contexto, com todas as suas implicações e sem simplificações fundamentalistas ou infantilizantes, é tarefa para adultos. Aliás, muitos problemas que os adultos têm com o texto bíblico se originam em passagens usadas com as crianças, sem a devida consideração da verdadeira natureza do conteúdo.
Se a Bíblia tem de ser, também no trabalho com adultos, o “livro de catequese por excelência” (CR 154), é urgente dar aos catequistas formação bíblica mais qualificada. Como há muitos fatores entrelaçados, essa exigência demandaria uma reformulação nos critérios de admissão à própria tarefa catequética. Os catequistas merecem todos os louvores: são pessoas generosas, dedicadas, gratuitamente interessadas em servir. Mas não podemos fingir ignorar o fato de, em grande parte das paróquias, qualquer um com um mínimo de boa vontade ser aceito como catequista e depois se exigir dele uma tarefa que ele não tem condições de executar com qualidade. Não se trata de rejeitar ninguém. Toda vontade de servir deve ser acolhida e festejada. O que queremos dizer é que a formação deveria ser um direito de quem se candidata a ser catequista, para poder viver a alegria de sentir que a sua generosidade deu bons frutos.
A iniciação à Bíblia é um meio essencial para preparar catequistas. Um curso de Bíblia com boa metodologia oferece, ao mesmo tempo, o ensinamento da Sagrada Escritura e a metodologia. A experiência mostra que a intimidade com a Bíblia é a força mais eficiente na transformação de uma comunidade.
A Bíblia nos ajuda até por meio daquilo que ela tem de mais desconcertante. Quando um texto bíblico, por exemplo, diz o contrário de outro (e ambos são Palavra de Deus), somos convidados a lembrar que situações e histórias de vida diferentes pedem respostas diferenciadas. Isso pode ser bom antídoto para a mania de achar que religião é uma bela coleção de respostas prontas que servem para tudo. Os adultos certamente lucrariam muito com esse tipo de reflexão.
Outra característica bíblica repleta de possibilidades é o fato de termos uma Revelação que acontece na História. É um dado que se casa muito bem com o princípio de interação entre fé e vida: a Bíblia é um resultado bem concreto dessa interação. Não nasceu no gabinete dos teólogos, mas é o registro da experiência vivida, confrontada com a fé, e da fé interpelada pelos fatos da vida, num processo de mútua alimentação. Aí somos levados a nos perguntar o que a História de hoje está dizendo, que apelos de Deus os sinais do nosso tempo nos trazem.
A Bíblia, lida de forma adequada, mostra-nos também que não funciona querer uma mensagem “pura”, dissociada da cultura por intermédio da qual ela se comunica. Falamos em inculturação e pensamos em traduzir a mensagem bíblica para a nossa cultura. Acontece que a própria Bíblia será um escândalo, se não nos dermos conta dos efeitos da mediação da cultura em que cada texto nasceu. Temos de inculturar uma Bíblia que é, ela mesma, enculturada, ou seja, marcada pela cultura do povo que a escreveu.
Essa constatação abre imensas possibilidades para a reflexão dos adultos sobre a Bíblia e sobre as exigências da nossa realidade. Os textos bíblicos não têm uma teologia uniforme, mas são respostas diferentes a situações e apelos diferentes da História. Se a própria Palavra de Deus mostra uma Revelação que evolui à medida que a vida faz perguntas, como ficar em respostas teológicas definitivas e uniformes para todas as questões que hoje inquietam os filhos e filhas de Deus?
Na questão bíblica, como nos variados campos da teologia, ainda há uma defasagem entre as conquistas e descobertas dos estudiosos e o que é de fato transmitido na pastoral. Não estamos falando aqui de opiniões avançadas deste ou daquele biblista, mas de teses bem-aceitas oficialmente, polêmicas já resolvidas, interpretações ensinadas sem problema nos bons institutos de formação bíblico-teológica. Em outros tempos, era possível um adulto ignorar certas questões mais delicadas e passar a vida inteira feliz com as explicações mais ou menos ultrapassadas que lhe eram oferecidas. Hoje, informações de todo tipo se socializam rapidamente. Um programa de TV, um site de internet, o jornal, as revistas podem levantar (e frequentemente levantam) questões que antigamente não chegariam a um cristão de nível médio. Nem sempre essas informações são confiáveis. Às vezes se apresenta como “novidade” algo que todo estudante de Bíblia de bom nível vem aprendendo há décadas, com plena autorização da Igreja. Mas a pessoa que não recebeu essa informação pode se sentir desorientada ou até ressentida, por se julgar enganada. Se a Palavra de Deus, por ser o que é, merece ser divulgada, estudada, entendida, hoje essa necessidade é ainda maior, porque saber pouco sobre tal assunto comporta novos riscos para a fé.
Preocupada com isso, a Dimensão Bíblico-Catequética da CNBB produziu um texto de orientação. É o volume 86 da coleção Estudos da CNBB e tem como título Crescer na leitura da Bíblia. Muitos especialistas em catequese e Bíblia contribuíram para a redação desse texto. Não é um documento daqueles que têm de ser aprovados pelos bispos reunidos na Assembleia Geral. Mas tem a força do respaldo da CNBB; não é a opinião pessoal de um biblista ou de uma corrente de pensamento bíblico-teológico. O objetivo é dar apoio a quem organiza a formação bíblica dos catequistas e também de outros agentes. Quem já tentou fazer um grupo dar um salto de qualidade na leitura bíblica sabe que, às vezes, as pessoas têm medo da hermenêutica a que estão sendo apresentadas. Muitos de nós passamos por crises, de variadas intensidades, no processo de aperfeiçoar o entendimento da Palavra de Deus. Ter um texto assinado pela Dimensão Bíblico-Catequética da CNBB pode tranquilizar quem anima e quem participa de um estudo bíblico.
Ultimamente tenho usado, para indicar um tipo de renovação necessária na Igreja, um termo que, talvez por não ser usual, costuma ficar na memória de quem ouve: a subversão legal. É uma mudança impactante (subversão) efetuada mediante o cumprimento das orientações da própria Igreja — ou seja, mudança estritamente dentro da lei, daquilo que é, mais do que permitido, até recomendado pela instituição, embora não tenha ainda sido consistentemente posto em prática com todas as suas possibilidades. Ao divulgar o teor do Estudo 86 da CNBB num grupo de animadores de pastoral bíblica, alguém comentou: “Isso aí é mais um instrumento da sua subversão legal”. Trata-se de um modo de comunicar orientações que estão nos diferentes documentos da Igreja e nem sempre são levadas em conta. Há grande destaque, por exemplo, para as afirmações da Dei Verbum, a ponto de algumas traduções da Bíblia costumarem trazer o texto dessa constituição do Vaticano II. Apesar disso, mesmo as pessoas que se servem dessas traduções raramente leram esse texto. Por outro lado, verifica-se que a leitura desse e de outros textos do Magistério nem sempre produz o efeito desejado. Há necessidade de aprender a ler cada parágrafo e fazer a pergunta fundamental: “O que mudaria na pastoral se isso que acabei de ler fosse totalmente posto em prática?” Os adultos precisam urgentemente se acostumar a fazer tal tipo de pergunta — e depois cobrar da Igreja que ela corresponda ao que escreve, que passe a mostrar o rosto que ela já declarou querer ter.
O texto da série Estudos da CNBB nº 86, Crescer na leitura da Bíblia, além de orientar para uma leitura contextualizada, dá destaque a alguns aspectos que fazem parte da orientação da Igreja e muitas vezes não são levados em conta: a Bíblia como instrumento de diálogo ecumênico (não como arma para combater outras Igrejas), o respeito ao povo judeu e os cuidados para não criar antissemitismo com base nas polêmicas de Jesus com algumas autoridades judaicas, a necessidade de facilitar acesso qualificado à Escritura para todos os fiéis, as indicações práticas para a animação bíblica na vida da Igreja, com ênfase na importância do envolvimento adulto, com criação de equipes e assembleias paroquiais que possibilitem intercâmbio de ideias e planejamento participativo.
A história do processo desenvolvido a partir da Catequese Renovada mostra que a trajetória desse documento foi bem o que deveria ser: provocou mudanças, deu um apoio à identidade dos catequistas, mas não se tornou um texto tão absoluto que bloqueasse a novidade na caminhada. Foram 20 anos de construção de caminho, de estímulo à renovação de práticas e atitudes, mantendo a fidelidade às fontes. Quem de fato fez parte dessa história sabe que precisa continuar crescendo, descobrindo, inovando. Um catequista bem formado e informado, sólido na fé e, ao mesmo tempo, flexível, aberto ao diálogo e ao novo, original, é o melhor fruto que se pode esperar desses 20 anos de trabalho e reflexão.
Therezinha Motta Lima da Cruz