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Publicado em número 245 - (pp. 7 – 14)

Vida e morte: uma questão de dignidade

Por Pe. Leo Pessini

Introdução

A morte nunca deixa de ser atual e de nos provocar. Ela sempre nos visita, mansamente, por meio da perda de entes queridos, obrigando-nos a refletir sobre nossa própria vida finita, ou, então, de situações inusitadas e inesperadas que nos amedrontam.

Na arte, na literatura e na mídia, temos o reflexo imediato dessa realidade. Os filmes mais premiados de Hollywood com o Oscar no ano de 2005 — Mar Adentro, melhor filme estrangeiro (mostra o drama de Ramom Sampedro — Espanha), e Menina de Ouro — apresentam a eutanásia como solução ante uma vida marcada pela dependência e pelo sofrimento. Começam a surgir as primeiras políticas públicas relacionadas com essa prática. Por exemplo, em 2002, Holanda e Bélgica legalizaram a eutanásia. Em março de 2005, o caso norte-americano Terry Schiavo mobilizou não apenas os Estados Unidos, mas, via mídia, a opinião pública mundial — Terry morreu de inanição (31 de março). Naqueles mesmos dias, o Papa João Paulo II se despedia da humanidade (2 de abril), após exposição de sua agonia em praça pública, gerando desconforto em muita gente. No fim, sabiamente, o Papa recusou-se a voltar para o hospital e optou por ficar, nos últimos momentos de sua vida, em seus próprios aposentos. Ao mesmo tempo, no Iraque, a guerra continuava, com inúmeros atentados diários, com dezenas de mortes, sem provocar nenhuma comoção na mídia, por serem pessoas “sem nome”, identificadas simplesmente como civis ou soldados. Contrastes e contradições. O presidente Bush declara-se defensor da “cultura da vida”, ao se posicionar no caso Terry Schiavo, mas, ao mesmo tempo, é o promotor da guerra no Iraque!

Com esses fatos de fundo, apresentamos aqui algumas reflexões em torno da dignidade do morrer. Iniciando com uma reflexão ética em torno do caso Terry Schiavo, levantamos algumas questões a propósito dos doentes em estado vegetativo (EV). A seguir, discorremos sobre a importância dos cuidados paliativos, sua origem, conceito e filosofia. Ao final, perguntamos o que significa dizer adeus à vida com dignidade e elegância. Nessa trilha ética sublinhamos a importância do cuidado, quando estamos diante de pacientes fora das possibilidades terapêuticas.

 

1. O caso Terry Schiavo

Um caso dramático mobilizou a opinião pública norte-americana e mundial no início de 2005. Trata-se do caso Terry Schiavo, que faleceu em 31 de março de 2005, aos 41 anos, e nos últimos 15 anos permaneceu em EV, causado por dano cerebral em 1990. Um duro conflito familiar eclodiu entre o marido e os pais de Terry, envolvendo a Justiça do Estado da Flórida, o governador, a mídia e a pergunta acerca de como lidar com essa situação médica. O marido, Michael Schiavo, solicitou permissão à Justiça para remover os tubos de alimentação, na certeza de que sua esposa não mais se recuperaria. Em 2003, a Justiça determinou que fosse cumprida a solicitação de descontinuar o tratamento feita por Michael Schiavo. Os pais de Terry, desde o início, opuseram-se a essa decisão. Em outubro de 2003, a pedido do governador Jeb Bush (irmão do presidente Bush), a Justiça da Flórida aprovou uma lei dando poderes ao governador de bloquear a ordem judicial de remoção do tubo de alimentação de Terry. Em 18 de março de 2005 a Justiça ordenou que o tubo de alimentação de Terry fosse removido. Desta vez o caso se torna nacional, envolvendo o Senado americano, que, perante o clamor público, se reúne extraordinariamente num domingo. O presidente Bush volta mais cedo de seu descanso semanal no Texas e assina lei que passa o caso para a Justiça federal. Os pais de Terry entram com novo recurso para reconectar o tubo da alimentação. Perdem em todas as instâncias jurídicas e Terry morre de inanição. A princípio um drama familiar, médico e ético, o fato transforma-se numa questão pública e política.

Faz-se necessário retificar algumas informações errôneas, então veiculadas na mídia, dando conta de que estaria com morte cerebral e ligada a aparelhos. Na verdade Terry se mantinha viva, respirando sem a ajuda de aparelhos e estando somente conectada a um tubo de alimentação, o qual evitava que morresse de inanição. Nesse caso existem fatos e questões difíceis, que precisam ser discutidos para além da simples pesquisa de opinião sobre ser “a favor” ou “contra” e para os quais não se encontrou solução até hoje.

Eis alguns:

1) Em termos de diagnóstico e prognóstico: Terry estava realmente em EV? Três neurologistas, um indicado pela Justiça e dois escolhidos por Michael Schiavo, concluíram que o estado clínico da mulher atendia aos critérios de EV. Um neurologista e um radiologista escolhidos pelos pais de Terry afirmaram que a condição dela era menos severa que a de um paciente em EV e sustentaram que se deveriam fazer mais testes para avaliação de suas capacidades atuais.

O prognóstico tornou-se outro ponto de discussão. Os médicos atestaram que Terry estava em “estado vegetativo persistente”, definitivo e irreversível — parecer compartilhado pela Academia Americana de Neurologia. A princípio, os médicos do lado dos pais afirmavam que determinadas intervenções, tais como terapia hiperbárica ou terapia vasodilatadora, a ajudariam. Mas nenhum desses procedimentos pôde ser comprovado cientificamente.

 

2) Que tratamento essa paciente escolheria, caso estivesse em condições de optar? Michael Schiavo, o tutor legal, insistia que sua ex-esposa (ele constituiu outra família e tem dois filhos) escolheria remover o tubo de alimentação e dizia ter ouvido dela que não desejaria viver nessas condições — comentava-se, no entanto, que ele ganharia boa soma de dólares do seguro com a morte de Terry. Para os pais, a filha certamente desejava que os cuidados continuassem. Nas palavras da mãe: “Ela está viva e suplica que não lhe seja negada a alimentação”. Além disso, eles não acreditavam que a filha tivesse desejado o que o marido afirmava; apontavam para a inexistência de documento nesse sentido e criam na possibilidade de melhora da condição clínica.

 

3) Qual é o valor da vida nessas condições? O marido pensava que a vida da ex-esposa, na situação em que se encontrava não tinha valor e que seria mais respeitoso renunciar aos tratamentos e permitir que ela descansasse em paz, pois esse teria sido seu desejo. Contrariamente, seus pais viam que a continuação da vida era um benefício para a filha. Nutrição e hidratação seriam cuidados ordinários ou extraordinários? Michael Schiavo considerava o tubo de alimentação uma intervenção médica, similar à ressuscitação cardíaca e à administração de antibióticos. Por outro lado, para os pais de Terry, o tubo de alimentação não era um instrumento significativamente diferente dos utilizados na alimentação ordinária; tratar-se-ia de um cuidado humano básico, e não de intervenção médica, e, portanto, deveria ser mantido.

 

4) Os acontecimentos em torno do caso Schiavo apontam para dilemas e conflitos éticos de difícil decisão perante situações de pacientes inconscientes. Esse caso é frequentemente citado para demonstrar a importância de elaborar diretrizes avançadas de vida. A questão está em saber se, caso Terry tivesse expressado comprovadamente sua vontade em relação a tratamentos de manutenção da vida, teria sido evitado o terrível conflito familiar.

Esse caso mostra também a necessidade urgente de elaborar diretrizes éticas e políticas públicas que norteiem decisões de final de vida respeitadoras da dignidade humana. Situações como a de Terry serão muito mais frequentes num futuro próximo, com o aumento da população de pessoas portadoras de doenças crônico-degenerativas, e exigirão atenção redobrada em termos de cuidados de saúde especializados e da reflexão bioética.

 

2. Doentes em estado vegetativo persistente: o que pensar e fazer?

Assusta-nos a afirmação técnica, com sérias consequências éticas, de que um paciente em estado vegetativo persistente (EVP) é um “quebra-cabeça sem solução”. A Federação Mundial de Associações Médicas Católicas e a Pontifícia Academia da Vida organizaram, em março de 2004, em Roma, importante Congresso Internacional sobre Tratamentos de Manutenção de Vida e Estado Vegetativo: Avanços Científicos e Dilemas Éticos. Das conclusões, podemos resgatar algumas afirmações importantes que nos ajudam a avaliar eticamente o caso Terry Schiavo, bem como o dos doentes que se encontram em EVP.

O que se entende por EV? Trata-se de “um estado de não reação, atualmente definido como uma condição caracterizada pelo estado de vigilância, alternância de ciclos sono/vigília, ausência aparente da consciência de si e do ambiente circunstante, falta de respostas comportamentais aos estímulos ambientais, conservação das funções autônomas e de outras funções cerebrais”. O EV deve ser claramente distinto da morte encefálica ou do coma. Em geral, o doente em EV não precisa de apoios tecnológicos para a manutenção das suas funções vitais e não pode ser considerado um doente terminal; ademais, a sua condição pode se prolongar estável e indefinidamente por muitos anos. Nenhum dos métodos de pesquisa atuais pode prever, em cada um dos casos, se os doentes em EV se restabelecerão ou não.

Reconhece-se que cada ser humano possui a dignidade de pessoa, sem discriminação de raça, cultura, religião, estado de saúde ou condições socioeconômicas. Essa dignidade constitui um valor imutável e intangível, que não pode depender das circunstâncias existenciais concretas nem ser subordinado ao juízo de ninguém. Embora se proclame como dever próprio da medicina, bem como da sociedade, a busca de uma qualidade de vida melhor para qualquer ser humano, a medicina não pode e não deve constituir o critério definitivo de juízo sobre o valor da vida humana.

Reconhece-se que a dignidade de cada pessoa também pode exprimir-se mediante a realização de opções autônomas; contudo, a autonomia pessoal nunca pode chegar a justificar decisões ou atos contra a vida humana própria ou de outrem — de fato, sem vida não há liberdade! O doente em EV é pessoa humana e, como tal, merece respeito nos seus direitos fundamentais, dos quais o primeiro é o direito à vida e à tutela da saúde. Em especial, o paciente em EV tem direito a correta e aprofundada avaliação, a fim de serem evitados possíveis erros e intervenções de reabilitação serem devidamente orientadas; a uma assistência de base, que inclua hidratação, nutrição, aquecimento e higiene; à prevenção das possíveis complicações e ao controle de qualquer eventual sinal de restabelecimento; a um processo adequado de reabilitação, que favoreça a recuperação e a manutenção dos objetivos alcançados; a ser tratado como qualquer outro doente em termos de cuidado.

O documento apresentado por esse congresso traz importante afirmação: “A eventual decisão de suspender a alimentação e a hidratação, cuja administração no doente em EV é necessariamente assistida, tem como consequência inevitável e direta a morte do doente. Por conseguinte, ela configura-se como um verdadeiro e próprio ato de eutanásia por omissão, moralmente inaceitável (grifo nosso). O documento conclui dizendo que o doente em EV não pode ser considerado como um “peso” para a sociedade; ao contrário, deve ser reconhecido como um apelo à realização de “modelos novos e mais eficazes de assistência e de solidariedade social”.

Infelizmente Terry foi vítima de um “complô de interesses”. Foi vítima de um conflito familiar, do uso político de sua situação e de equivocada decisão final da Justiça. Situações como essa deveriam ser resolvidas não em praça pública, mas no âmbito científico-médico, ético e familiar. Qual a sorte dos pacientes em EV, quando se lhes nega água e comida? Ao negar água e comida a um ser humano — uma das ações mais necessárias em termos de solidariedade humana, provocando a “morte por solidariedade” —, jamais se estará honrando a dignidade humana.

 

3. Cuidados paliativos: uma necessidade emergente

e urgente no sistema de saúde

Desde os tempos mais remotos, as sociedades oferecem apoio e conforto aos seus membros doentes que estão morrendo. Normalmente, profunda reverência e mística envolve a pessoa que está nessa fase. O período que se segue à morte é normalmente marcado de rituais religioso-culturais. A necessidade de chorar a perda de um ente querido é reconhecida por muitas sociedades, embora as manifestações pela perda e o período formal de luto variem de uma cultura para outra.

Os cuidados paliativos (CPs) não se referem primariamente a cuidados institucionais. Antes, é uma filosofia de cuidados aplicável em todas as instituições (casa, hospice ou hospital).

Nos tempos medievais, o termo hospice era usado para descrever o lugar de acolhida dos peregrinos e viajantes. Na Europa, a associação entre hospice e o cuidado dispensado aos pacientes que estão na fase final da vida data de 1842, com o trabalho de Jeanne Garnier, em Lyon, na França. Na Irlanda, as Irmãs Irlandesas da Caridade, fundadas por Mary Aikenhead em 1870, inauguraram hospices em Dublin e Cork e, em 1907, o St. Joseph’s Hospice em Londres. Essas instituições cuidavam de pacientes que sofriam de doenças avançadas e incuráveis. Contudo, esforços para controlar a dor e outros sintomas não foram adiante pela falta de compreensão da natureza desses sintomas e pela falta de medicamentos. Nos anos 50 do século passado houve a introdução de uma gama expressiva de drogas — incluindo psicotrópicos, fenotiazinas, antidepressivos e anti-inflamatórios. Nessa época, havia melhor compreensão da natureza da dor de câncer e do papel dos opioides no controle da dor oncológica. A disponibilidade dessa nova medicação criou a possibilidade de cuidado e administração da dor.

A medicina paliativa se desenvolveu, em grande parte, como resultado da visão e inspiração inicial de Dame Cicely Saunders, fundadora do St. Christopher Hospice em Londres em 1907. Durante séculos, hospício significava um lugar de repouso para viajantes ou peregrinos. A palavra sobreviveu em conexão com os hospitais conventuais ou asilos. Para a Dra. Saunders, essa palavra era importante, pois combinaria os cuidados próprios de um hospital com a hospitalidade e o calor humano de uma pousada, deslocando o centro de interesse da doença para o doente e sua família.

 

3.1. O conceito de cuidados paliativos

O que entender por cuidados paliativos e o que significa usar deles? A maioria dos profis­sionais de saúde de nosso país, sem falar do público em geral, praticamente desconhece isso; não sabe da existência de programas e serviços de cuidados paliativos em instituições de saúde no país e, quando ouve algo sobre uma ação ou medida paliativa, pensa que se trata de ação ou medida que não resolve determinado problema ou desafio, mas apenas “põe panos quentes” e a realidade permanece inalterada. Felizmente esse horizonte de visão e compreensão está mudando com o surgimento de publicações pioneiras sobre o assunto em português.

O termo “paliativo” deriva do vocábulo latino pallium, que significa manto ou coberta. Assim, quando a causa não pode ser curada, os sintomas são “tapados” ou “cobertos” com trata­mentos específicos — por exemplo, com analgésicos. Em inglês, palliate pode ser traduzido por aliviar, mitigar, suavizar. Refere-se ao care (cuidar) em vez de cure (cura), segundo os pioneiros ingleses. Vejamos, em português, o que diz o Novo Aurélio: o dicionário da língua portuguesa século XXI: Paliar (Do lat. tard. Palliare, “disfarçar”, “dissimular”) significa: a) encobrir com falsa aparência, disfarçar, dissimular, encobrir; b) tornar aparentemente menos duro, menos desa­gradável, atenuar na aparência, entreter; c) remediar provisoriamente, aliviar. Paliativo. 1) Adj. que serve para paliar; 2) Terap. Que serve para acalmar, atenuar ou aliviar momentaneamente um mal. 3) S. m. Qualquer tratamento que apenas fornece alívio, de duração variável, a um doente.

É importante notar que os CPs não devem ser vistos como essencialmente diferentes de ou­tras formas ou áreas de cuidados de saúde. Isso tornaria difícil, senão impossível, a sua integração no curso regular destes cuidados. Muitos aspectos cruciais dos CPs se aplicam perfeitamente à me­dicina curativa, e, por outro lado, o desenvolvimento dos CPs pode influenciar positivamente outras formas de cuidados de saúde, ao valorizar aspectos esquecidos, como problemas espirituais.

A definição de CPs evoluiu ao longo dos anos, à medida que o campo foi se desenvolvendo em vários países. Foram definidos tendo como referência não um órgão, a idade, o tipo de doença ou uma patologia, mas antes a avaliação de um provável diagnóstico e as necessidades especiais da pessoa doente e sua família. Tradicionalmente os CPs eram vistos como algo aplicável exclusivamente no momento em que a morte fosse iminente. Hoje se aceita que têm muito a oferecer no estágio inicial de uma doença progressiva.

Como já indicado, o termo “paliativo” deriva do latim pallium, que significa manto. Essa etimologia aponta para a essência dos cuidados paliativos: aliviar os efeitos das doenças incuráveis ou prover um manto para aqueles que passam frio, porque não podem mais ser ajudados pela medicina curativa.

Em 1990, a OMS definiu CP como “cuidado ativo e total de pacientes cuja doença não responde mais ao tratamento curativo. Controle da dor e de outros sintomas e problemas de ordem psicológica, social e espiritual são prioritários. O objetivo dos CPs é proporcionar a melhor qualida­de de vida para os pacientes e seus familiares”.

Especificamente para as crianças, a OMS define:

“Cuidado paliativo para crianças é o cuidado ativo e total do corpo, da mente e do espírito, envolvendo também o apoio para a família; tem início quando a doença é diagnosticada e continua independentemente de a doença da criança estar ou não sendo tratada; os profissionais da saúde devem avaliar e aliviar o estresse físico, psíquico e social da criança; para ser efetivo exige uma abordagem multidisciplinar que inclua a família e a utilização dos recursos disponíveis na comunidade, podendo ser implementado mesmo se os recursos são limitados; pode ser realizado em centros comunitários de saúde e mesmo nas casas das crianças”.

O conceito da OMS sobre CP de 1990 é louvável no sentido de centrar-se no paciente, enfatizar a natureza multifacetada da condição humana e identificar a qualidade de vida como seu objetivo último. Contudo, o uso do termo “curativo” não ajuda, uma vez que muitas condições crônicas não podem ser curadas, mas podem ser compatíveis com uma expectativa de vida de várias décadas.

Levando em conta esses desdobramentos, em 2002 a OMS redefiniu o conceito de CP, enfatizando a prevenção do sofrimento. Eis o novo conceito: “Cuidado paliativo é uma abordagem que aprimora a qualidade de vida dos pacientes e das famílias que enfrentam problemas associados com doenças ameaçadoras da vida por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, da avaliação correta e do tratamento da dor e de outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual”.

 

3.2. A filosofia dos cuidados paliativos

A partir desse conceito (OMS-2002), podemos falar da filosofia dos CPs, que aponta para os seguintes princípios fundamentais:

a) Os CPs valorizam o atingir e manter um nível ótimo de dor e administração dos sintomas. Isso exige uma avaliação de cada doente, levando em conta sua história detalhada, exame físico e pesquisas, se apropriado. Os doentes devem ter acesso imediato a toda medicação necessária, incluindo uma variedade de opioides numa gama de formulações.

b) Os CPs afirmam a vida e encaram o morrer como um processo normal. O que todos partilhamos é a realidade inescapável da morte. Os pacientes que solicitam CP não devem ser vistos como falhas médicas. Os CPs visam assegurar que os doentes sejam capacitados e encorajados a viver sua vida de uma forma útil, produtiva e plena até o momento de sua morte. A importância da reabilitação, em termos de bem-estar físico, psíquico e espiritual, não pode ser negligenciada.

c) Os CPs não apressam nem adiam a morte. Intervenções de CPs não devem ocorrer para abreviar a vida prematuramente — da mesma maneira que as tecnologias disponíveis na moderna prática médica não são aplicadas para prolongar a vida de forma não natural. Os médicos não são obrigados a continuar tratamentos considerados fúteis e excessivamente onerosos para os pacientes. Da mesma forma, os pacientes podem recusar tratamentos médicos. Os CPs objetivam assegurar a melhor qualidade de vida possível. Quando o processo da doença conduz a vida para um fim natural, os doentes devem receber conforto físico, emocional e espiritual. Especificamente, ressalte-se que a eutanásia e o suicídio assistido não estão incluídos em nenhuma definição de CP.

d) Os CPs integram aspectos psicológicos e espirituais dos cuidados como paciente. Um nível elevado de cuidado físico é certamente de vital importância, mas não suficiente em si mesmo. Não devemos reduzir a pessoa humana a simples entidade biológica.

e) Os CPs oferecem um sistema de apoio para ajudar os pacientes a viver tão ativamente quanto possível, até o momento da sua morte. Nesse sentido, é importante ressaltar que o paciente estabelece os objetivos e as prioridades. O papel do profissional da saúde é capacitar e assistir o paciente para que seja atingido o objetivo identificado. É evidente que as prioridades de um paciente podem mudar dramaticamente com o tempo. O profissional deve estar consciente dessas mudanças e responder consequentemente.

f)  Os CPs ajudam a família a lidar com a doença do paciente e com o luto. Por meio dos CPs, a família atua a unidade de cuidados. Nesse sentido, os membros da família terão suas ques­tões e dificuldades, que devem ser identificadas e trabalhadas. O trabalho em relação ao cuidado com o luto se inicia bem antes do momento da morte do doente.

g) Os CPs exigem uma abordagem em equipe. Diante do exposto até o momento, fica evidente que, sozinha, nenhuma pessoa ou disciplina pode adequadamente lidar com a gama e complexidade das questões que surgem durante o período de aplicação do CP. Embora a equipe central — formada de médico, enfermeira e assistente social — possa prover o cuidado necessário, requer-se também uma gama maior de profissionais da área médica, de enfermagem e outros aliados. Para que essa equipe trabalhe de forma coesa, é importante que se tenham presentes as metas e os objetivos partilhados, bem como os meios rápidos e efetivos de comunicação.

h) Os CPs visam aprimorar a qualidade de vida. Esse aspecto da qualidade de vida atraiu muito interesse de pesquisa nos últimos anos. É importante reconhecer que isso não é simplesmente uma medida de conforto físico ou de capacidade funcional. Antes, trata-se de algo que pode ser definido somente pela pessoa doente e se alterar significativamente ao longo do tempo.

i)  Os CPs são aplicáveis no estágio inicial da doença, concomitantemente com as modifica­ções dela e das terapias que prolongam a vida. Historicamente os CPs foram associados com os cuidados oferecidos a doentes de câncer próximos da morte. Reconhece-se que os CPs têm muito a oferecer aos pacientes e familiares — especialmente a partir do momento em que a doença atinge um estágio avançado e sua progressão não pode mais ser interrompida. Isso exige que os serviços de CPs estejam intimamente integrados a toda a gama de serviços de saúde, seja no hospital, seja em instituições comunitárias.

 

4. O cuidado da dor e do sofrimento humanos

Buscamos incansavelmente a felicidade de viver plenamente com dignidade, e não apenas sobreviver. Fazemos de tudo para combater a doença, a dor, o sofrimento e vencer a própria morte. Estamos cada vez mais aparelhados com fantásticas inovações tecnológicas. Nesse sentido, preveem-se transformações ainda mais profundas para um futuro não muito distante. Num momento de “ilusão utópica”, chegamos até a acreditar que a realidade da morte já não faria parte de nosso existir, pensamos e agimos como se fôssemos imortais, e aí dificilmente poderíamos encontrar algum sentido numa vida marcada pela mortalidade e finitude. Ousamos apontar um horizonte de sentido, realçando alguns aspectos éticos importantes ligados ao ocaso da vida, na compreensão e cuidado do paciente terminal. É necessário entender bem o que significa paciente terminal nesse processo de cuidados. Trata-se do portador de uma enfermidade avançada progressiva e incurável, com ausência de possibilidades razoáveis de resposta a tratamento de cura, com múltiplos problemas relacionados, com forte impacto emocional sobre si próprio, sobre sua família e sobre a equipe de saúde e com um prognóstico de vida inferior a seis meses.

A diferença entre dor e sofrimento tem grande significado quando temos de lidar com a dor em pacientes terminais. O enfrentamento da dor exige medicamentos analgésicos, enquanto o cuidado com o sofrimento solicita significado e sentido. A dor sem explicação geralmente se transforma em sofrimento. Este é uma experiência humana profundamente complexa, na qual intervém a identidade e a subjetividade da pessoa, bem como os valores socioculturais e religiosos. Um dos principais perigos em negligenciar essa distinção é a tendência dos tratamentos se concen­trarem somente nos sintomas e dores físicas, como se estes fossem a única fonte de angústia e sofri­mento para o paciente. É a tendência de reduzir o sofrimento a simples fenômeno físico, que pode ser dominado por meios técnicos. Nessa linha, somos impelidos a continuar agressivamente com tratamentos fúteis, na crença de que, enquanto o tratamento protege os pacientes da dor física, protege de todos os outros aspectos também. A continuação de tais cuidados pode simplesmente impor mais sofrimentos ao paciente terminal.

O sofrimento tem de ser cuidado em quatro dimensões fundamentais. a) dimensão física. Em nível físico, a dor funciona como claro alarme de que algo não está bem no funcionamento normal do corpo; b) dimensão psíquica. Surge frequentemente no enfrentamento da inevitabilidade da morte. Perdem-se as esperanças e sonhos, sentindo-se a necessidade de redefinir o mundo que se está para deixar; c) dimensão social. É a dor do isolamento, que surge da obrigação de redefinir relacionamentos e da necessidade de comunicação; d) dimensão espiritual. Surge da perda do sentido, do objetivo de vida e da esperança. Todos necessitam de um horizonte de sentido — uma razão para viver e uma razão para morrer. Recentes pesquisas feitas nos Estados Unidos revelam que o aconselhamento sobre questões espirituais está entre as três necessidades mais solicitadas pelos doentes terminais e seus familiares.

 

5. Os paradigmas de curar e cuidar

A medicina paliativa se desenvolveu como uma reação à medicina moderna, altamente tecnicista, que prioriza a cura em vez do cuidado. O paradigma da cura inclui as virtudes “militares” de combater e perseverar na luta contra a doença. O paradigma do cuidado, pelo contrário, tem como valor central a dignidade humana, enfatizando a solidariedade entre o paciente e os profissionais da saúde; atitude que resulta em compaixão efetiva. No ethos da cura “o médico é o general”, enquanto no paradigma do cuidado “o paciente é o soberano”. Não obstante a medicina paliativa ter sido descrita como “de baixa tecnologia e de alto contato humano”, ela não se opõe à tecnologia médica, mas busca assegurar que seja o amor, para além da ciência, a força motriz a determinar o cuidado do paciente.

As ações de saúde, hoje, são sempre mais marcadas pelo paradigma da cura, caracterizado por cuidados críticos, intensivos, de medicina de alta tecnologia. A presença maciça da tecnologia é legítima e necessária na medicina moderna. No entanto, o paradigma da cura torna-se facilmente prisioneiro da tecnologia. Se algo pode ser feito, logo deve ser feito, e se esquece que nem tudo o que é possível realizar cientificamente é eticamente admissível. Também se pode idolatrar a vida física e alimentar a tendência de prolongá-la em condições inaceitáveis. Esse vitalismo ganha forma na convicção de que a inabilidade para curar ou para evitar a morte é uma falha da medicina. A falácia dessa lógica é que a responsabilidade de curar termina quando os tratamentos estão esgotados e, não tendo mais cura, se diz que “não há mais nada para fazer”.

Outro eixo de leitura, compreensão e cuidado começa a ganhar força. É o paradigma do cuidado. O crescente interesse público em torno da eutanásia e do suicídio assistido chama nossa atenção para os limites de “cura” da medicina moderna. Quem se dedica à saúde sob o paradigma do cuidado aceita o declínio, o envelhecimento e a morte como parte da condição humana, uma vez que todos “sofremos” de uma condição que não tem cura, isto é, somos mortais.

A medicina não pode afastar a morte indefinidamente. Esta finalmente acaba chegando e vencendo. A pergunta fundamental não é se vamos morrer, mas quando e como teremos de enfrentar essa realidade. Quando a terapia médica não consegue mais atingir os objetivos de preser­var a saúde ou aliviar o sofrimento, tratar para curar torna-se uma futilidade ou um peso e, mais do que prolongar a vida, prolonga-se a agonia. Surge então o imperativo ético de parar o que é inútil e fútil, intensificando os esforços para proporcionar, mais que quantidade, qualidade de vida diante da morte.

A ação de cuidar é multidisciplinar, pois procura promover o bem-estar físico, cuidando da dor e do sofrimento; o bem-estar mental, ajudando quem precisa a enfrentar as angústias, medos e inseguranças; o bem-estar social, garantindo o atendimento às necessidades socioeconômicas e relacionais de ternura; e o bem-estar espiritual, pela vivência solidária e apoio alicerçados nos valores de fé e esperança. Em nosso país, começa-se a implantar na área da saúde, em pacientes com doenças crônico-degenerativas e em pacientes terminais, programas institucionais de cuidados que operacionalizam essa visão, a qual em sua essência, é a filosofia dos cuidados paliativos.

 

6. Dizer adeus à vida com dignidade e elegância!

O desafio ético é considerar a questão da dignidade no adeus à vida para além da dimensão físico-biológica e do contexto médico e poder ter uma morte em paz, sem sofrimento. Há muito que fazer no sentido de levar a sociedade a compreender que o morrer com dignidade é decorrência do viver dignamente, e não da mera sobrevivência. Se não se tem condição de vida digna, no fim do processo se garantirá morte digna? Antes de existir um direito à morte humana, há que ressaltar o direito de a vida já existente ser conservada, preservada e desabrochar plenamente. A isso cha­mamos direito à saúde. É chocante e até irônico constatar situações em que a mesma sociedade que negou o pão para o ser humano viver lhe oferece a mais alta tecnologia para “bem morrer”.

Não aceitamos submissos a doença nem queremos ser vítimas da morte. É saudável ser peregrinos. Não podemos passivamente aceitar a morte, consequência do descaso pela vida refletido na violência, nos acidentes e na pobreza. Perante esse contexto é necessário cultivar santa indignação ética. Podemos ser curados de uma doença classificada como mortal, mas não de nossa mortalidade. Quando esquecemos isso, acabamos caindo na tecnolatria e na absolutização da vida biológica pura e simplesmente. Insensatamente procuramos a cura da morte e não sabemos mais o que fazer com os pacientes que estão se aproximando do adeus à vida. É a obstinação terapêutica (distanásia) adiando o inevitável, que acrescenta somente mais sofrimento e produz vida quantitativa mais do que qualidade de vida.

Um pensamento de Cicely Saunders, a grande pioneira do movimento moderno do hospice, traduz com muita felicidade a essência da filosofia dos cuidados paliativos: “Eu me importo pelo fato de você ser você, me importo até o último momento de sua vida, e faremos tudo o que está ao nosso alcance não somente para ajudar você a morrer em paz, mas também para você viver até o dia da morte”.

Em tudo isso há dois limites opostos: de um lado, a convicção profunda de não abreviar intencionalmente a vida (eutanásia) e, de outro, igual convicção de não prolongar o sofrimento e adiar a morte (distanásia). Entre o não abreviar e o não prolongar está o amar. É um desafio difícil aprender a amar o paciente terminal sem exigir retorno, com a gratuidade com que se ama um bebê, num contexto social em que tudo é medido pelo mérito! O sofrimento humano somente é intolerável se ninguém cuida. Como fomos cuidados para nascer, precisamos também ser cuidados para morrer. Não podemos esquecer que a chave para o bem morrer está no bem viver.

Pe. Leo Pessini