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Publicado em número 259 - (pp. 10-17)

Qual Antropologia como fundamento da defesa da vida?

Por Pe. Leo Pessini

1. Introdução

Em tempos marcados por subjetivismos, relativismos e fundamentalismos nas mais variadas áreas do conhecimento e nos mais diversos âmbitos da experiência humana, o Texto-base da CF 2008, que tem como tema: “Fraternidade e defesa da vida”, diz que “todo trabalho de conscientização e ação em defesa da vida humana deve ser pautado por uma antropologia que não reduza a pessoa a aspectos meramente biológicos, psicológicos ou sociais, mas que contemple aquela dimensão especificamente humana que caracteriza a pessoa como um ser-que-decide e como um ser responsável[1].

A questão antropológica “quem é o homem?” constitui a pedra fundamental sobre a qual se fundamenta qualquer paradigma bioético, seja na sua concepção teórica, seja em seu conteúdo. É a pergunta que já não podemos ignorar. A resposta que lhe damos configura as diferentes normas, princípios, valores ou intuições que identificam o ser humano, bem como a visão adotada, a promoção e a defesa da vida no discurso da bioética. A presente reflexão, na sua substância, é devedora do pensamento de Edmund Pellegrino, notável médico humanista e bioeticista católico norte-americano.[2]

Se não sabemos quem é e o que significa o ser humano, como podemos julgar se as forças prodigiosas da ciência biomédica ameaçam ou aprimoram nossa humanidade? Existem atualmente inúmeras teorias antropológicas, e o encontro (já que a reconciliação ainda constitui um ideal inatingível) dessas múltiplas fontes de pensamento sobre o ser humano revela-se crucial para nós hoje. Temos antropologias de cunho científico, filosófico e teológico que não se conhecem nem, muito menos, dialogam entre si. A crescente multiplicidade das ciências que estudam a espécie humana trouxe mais confusão e obscuridade que elucidação de nosso conceito de ser humano. Nesse sentido, já em 1953, há mais de meio século, Heidegger afirmava:

Nenhuma época acumulou conhecimentos tão numerosos e tão diversos sobre o homem como a nossa. Nenhuma época conseguiu apresentar seu saber acerca do homem sob uma forma que nos afete tanto. Nenhuma época conseguiu tornar esse saber tão facilmente acessível. Mas também nenhuma outra época soube menos o que é o homem.

 

Sempre existe uma ideia ou imagem do ser humano no centro dos discursos bioéticos atuais relacionados com aborto, eutanásia, suicídio assistido, decisões de final de vida, distanásia, pesquisa com células-tronco, clonagem, engenharia genética e assim por diante. A lista das questões vai aumentar muito mais e com ela a necessidade de confrontarmos diretamente “o que nós entendemos por ser humano”.

Hoje somos desafiados a confrontar essas questões complexas sem a tradicional confiança na religião e na metafísica. O Iluminismo simplesmente as pôs de lado e nos deixou somente com a razão autônoma. Os filósofos idealistas então prescindiram da realidade externa para estudar os constructos mentais e a consciência. Sob a influência da psicologia e da psicanálise, os pós-modernistas completaram a demolição ao minar os argumentos da razão para conhecer a realidade externa ou a verdade moral. O ser humano enfrenta agora um dos mais complexos desafios equipado somente com sua humanidade subjetiva autônoma.

Essas dificuldades não absolvem a bioética de ter negligenciado a questão antropológica. No mínimo, existe uma obrigação de tentar pôr juntas as ciências que abordam o ser humano, com a filosofia e a teologia, a fim de encontrar um consenso mínimo que guie nossa compreensão, bem como a dinâmica de tomada de decisão, e ilumine o processo de elaboração de normas e diretrizes bioéticas que protejam a vida humana na fronteira da tecnociência e do conhecimento humano[3].

 

2. Breve mapa das antropologias relevantes para a bioética

Na civilização ocidental, as primeiras teorias mais formalmente desenvolvidas de ser humano derivam da Bíblia hebraica e cristã, das religiões órficas e do pensamento organizado de Platão e Aristóteles. Essas teorias aumentaram muito desde então, a começar pela orientação humanística do Renascimento, mediante o ceticismo do Iluminismo, até os existencialistas e fenomenólogos de tempos mais recentes.

Santo Agostinho, na sua famosa obra autobiográfica Confissões, lamenta sua inabilidade para compreender sua identidade espiritual: “Tornei-me um quebra-cabeça para mim mesmo e isto é minha enfermidade”. De maneiras diferentes, a mesma questão surge nos escritos de Camus, Sartre, Heidegger e em muitos heróis e heroínas trágicas da moderna ficção. De certa forma parecemos sofrer hoje da doença de Agostinho, quando ouvimos o teólogo contemporâneo Karl Rahner afirmar que “o homem é a questão para a qual não existe resposta”.

No seu sentido mais amplo, antropologia é qualquer estudo formal, sistemático e crítico da questão “o que é o homem?”. Por esse prisma, trata-se de uma teoria sobre o ser humano. Tal teoria pode ser organizada segundo uma variedade de perspectivas e metodologias. Dependendo de qual metodologia ou perspectiva utilizam, as antropologias podem ser classificadas como física, social, cultural, filosófica ou teológica. Cada uma delas define algum aspecto essencial do ser humano, mas também é limitada pela metodologia da disciplina básica com base na qual elabora seu método, ou seja, ciência natural, filosofia, teologia, humanidades ou ciências sociais.

De modo geral, as antropologias podem ser classificadas como teocêntricas e antropocêntricas. Estas últimas, por sua vez, podem ser classificadas, em sentido amplo, em científicas, filosóficas ou subjetivistas, afins à literatura, históricas, psicológicas e sociológicas. A diferença relevante para a bioética é a fonte da autoridade moral sobre a qual se fundamentam, em última instância, as decisões éticas. As teorias antropocêntricas põem o ser humano no centro de tudo. Elas não reconhecem uma fonte última de autoridade moral para além do homem, seja como indivíduo, seja como entidade social. Já as teorias teocêntricas ou transcendentais, contrariamente, reconhecem uma última fonte de autoridade moral para além do ser humano — Deus, algum outro ser ou fenômeno da natureza ou outra “força cósmica” que ditam normas morais ao homem.

Tais distinções podem ser vistas como um continuum: de um lado, podemos lembrar Protágoras, que diz: “O homem é a medida de todas as coisas”. De outro, existe a perspectiva cristã católica, segundo a qual “Deus é a medida de todas as coisas”, o ser humano é a imagem e semelhança de Deus e o que é bom é expresso na “lei divina”. Ao longo desse continuum, podemos localizar uma diversidade de antropologias, cada uma das quais se relacionando com a sua fonte de autoridade moral de forma diferente das outras.

O que se mostra comum a todo discurso moral é o momento da verdade ética, quando devemos responder à questão inevitável da justificação. Dependendo da teoria de ser humano adotada, podemos apelar para a Sagrada Escritura, os ensinamentos da Igreja, os dados da ciência empírica, a retidão de nossa própria razão, o sentimento moral, a psicologia freudiana, a moralidade comum e assim por diante. No final, teremos afirmações livres ou atos de fé intelectuais ou religiosos, porque todas as linhas de argumentos começam com algum axioma. Quando uma afirmação livre se equipara a uma afirmação sobre o certo e o errado, o acordo já não é possível. É aqui, como diz Platão, que “nos tornamos inimigos”. Nesse ponto, a ideia de ser humano, a resposta dada à questão “o que é o homem?”, torna-se decisiva.

Edmund Pellegrino afirma que a questão antropológica hoje é simplesmente rejeitada como sem sentido ou então declarada “off limits”. Questionar uma pessoa a respeito da fonte última de sua autoridade moral toca as emoções mais profundas e a identidade dela. Depreciar a visão da fonte última da autoridade moral de alguém é percebido como um ataque pessoal, especialmente se estamos falando de “valores” em vez de princípios morais ou normas — uma vez que a subjetividade e o relativismo dos “valores” obscurecem a distinção entre as pessoas e suas ideias.

Se quisermos melhorar a relação entre visões éticas opostas, a questão antropológica deve ser abordada num diálogo sério. Não faz sentido rotular tal diálogo como sem sentido. A questão não desaparecerá. Ela abarca toda e qualquer decisão ética que vá além de simplesmente executar determinado procedimento. A questão antropológica, por ser fundamental, constitui uma questão metafísica. Fundamentos e metafísica são dois anátemas para a filosofia contemporânea, mas não podemos fugir deles. Atrás de toda e qualquer teoria antropológica existe uma metafísica, explícita ou implícita, consciente ou inconsciente, diz Edmund Pellegrino.

Vejamos a seguir algumas teorias de ser humano no contexto do discurso bioético contemporâneo.

 

3. Uma teoria teocêntrica: o ser humano como um ser espiritual

Todas as antropologias orientadas para o transcendente definem o ser humano e o meio moral em que vive em termos de algum ser ou “força” para além de si próprio. Esse além pode ser o Deus pessoal dos judeus, muçulmanos e cristãos, alguma força indefinível, mas real no universo, como concebem os panteístas e os agnósticos, ou alguma divindade criada no mundo. As antropologias transcendentais incluem as principais religiões tanto do Ocidente quanto do Oriente, bem como formas modernas de maniqueísmo, gnosticismo e paganismo, frequentemente latentes na multiplicidade de formas da espiritualidade do movimento da Nova Era. Nesses casos, o moralmente certo e o errado derivam da autoridade de uma fonte que está além, acima e superior ao próprio ser humano, seja como mandamento direto, seja como inferência de textos ou de interpretações de mensagens e sinais variados.

Até que ponto essas visões transcendentais influenciam a bioética contemporânea é algo difícil de estimar, porque a mentalidade da bioética acadêmica, ao menos nos Estados Unidos, mostra-se predominantemente secular. A teologia católica romana representa algo de certa forma excepcional nesse contexto, porque tem longa história de estudo formal, que antecede em séculos a bioética contemporânea — iniciando-se no século XV, já conta meio milênio de história. É também a posição contrária mais citada em relação às antropologias seculares antropocêntricas, atualmente dominantes nos ambientes acadêmicos e científicos.

A teologia católica, assim como a ortodoxa, constitui um paradigma para uma ética baseada na ideia do homem como ser criado por Deus, a quem este deu a vida e uma natureza única e de quem espera obediência a certas leis específicas. Na visão católica, a existência humana é interpretada segundo a doutrina da imago dei, ou seja, do ser humano como imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27). A fonte dessa dignidade é Deus, ela é inerente a todo e qualquer ser humano e não pode ser tirada, independentemente de sexo, idade, saúde ou doença. A vida humana é um dom de Deus que deve ser cuidado e respeitado.

Nas antropologias antropocêntricas, a dignidade consiste num atributo socialmente conferido pelos indivíduos a si próprios ou pelos outros. É definida com base em certos atributos de personalidade que podem ser perdidos com a doença, a deficiência mental, o estado de consciência e assim por diante. Um exemplo de dissonância em relação a esse ponto é a atribuição, por parte dos católicos, de dignidade pessoal para o embrião desde a concepção e sua negação categórica pelos outros. Alguns defendem o “respeito” pelo embrião, mas não como pessoa. Paradoxalmente, sustentam que o embrião pode ser sacrificado pelo bem dos outros, como no caso de obter células-tronco para pesquisa com o objetivo de curar determinadas doenças de cunho genético que infernizam a vida de muita gente.

 

4. Teorias antropocêntricas do ser humano

Em contraste com as respostas teocêntricas à questão antropológica, existem várias antropologias centradas no próprio ser humano que descartam qualquer possibilidade ou necessidade de uma fonte para além de si mesmo. Confiam única e exclusivamente na própria razão, na emoção, nos sentimentos e nos poderes da observação experimental e empírica. A obrigação moral da vida moral depende inteiramente de sua própria vontade, das reflexões e concepções acerca de sua própria natureza. O ser humano é responsável por si mesmo e se apresenta como a última medida de todas as coisas. Nessa perspectiva, ele é o criador de sua própria “imagem e semelhança” e se transforma no seu único redentor.

Podemos falar de três categorias maiores de respostas antropocêntricas à questão antropológica, dependendo da prioridade dada a determinada maneira de o ser humano conhecer a realidade. Temos assim a visão positivista-empírica, a filosófica e a psicológica-behaviorista. A teoria positivista-empírica fundamenta sua imagem e ideia de ser humano no que se revela observável e testável pelos métodos das ciências naturais. Seu objeto é o homem como máquina. A teoria filosófica privilegia a razão humana para captar a realidade da vida moral e deduzir o bem para o ser humano. Seu objeto é o homem como pensador. A terceira teoria enfatiza a subjetividade, ou seja, uma combinação de sentimentos, preferências, intuições, histórias de vida e experiências emocionais. Seu objeto é o homem como sentimento. O método de reflexão aqui é o psicológico-behaviorista. Vejamos objetivamente alguns dos elementos fundamentais que caracterizam cada uma dessas correntes antropológicas.

 

4.1. A visão positivista e empírica do ser humano

Essa visão se fundamenta nas descobertas da biologia, da física e da química. É a ideia de ser humano predileta da bioética secular, da mídia e de muitos estudiosos e pesquisadores do meio acadêmico. Ela representa o contínuo desenvolvimento da compreensão cartesiana do ser humano como uma máquina. O corpo do homem, sua constituição e comportamento, podem ser explicados pela química e pela física, da fisiologia à vida emocional e ao próprio pensamento. Nessa visão, evolução, seleção natural e genética interagem para produzir a complexidade da vida humana. Mas não podemos esquecer que se trata de uma complexidade materialista, própria do âmbito da química e da física.

É claro que essa visão ganhou muita credibilidade por conta dos grandes avanços da biologia genética e da química. Seus discípulos admitem que ainda é preciso descobrir muito mais. Os defensores dessa visão estão certos de que, mais cedo ou mais tarde, serão capazes não somente de explicar toda a vida, mas também chegar a recriá-la pelo conhecimento e pelas técnicas da ciência experimental. Mesmo a evolução e a seleção natural já não serão eventos casuais, mas controlados para o desenvolvimento de futuras gerações. Entramos na área que muitos estudiosos contemporâneos estão chamando de início do pós-humanismo.[4]

Numa bioética construída de acordo com essa visão, o homem é livre para usar a biotecnologia sem nenhuma proibição, a não ser aquelas autoimpostas. Não existe uma essência ou natureza permanente do ser humano, mas somente uma natureza corporal evolutiva em conformidade com a genética e com determinantes evolutivos. O corpo humano é modificável para as gerações presentes e futuras. Os limites são impostos apenas pelo próprio ser humano, que define os resultados desejáveis. A única questão “ética” é se os resultados são desejados ou não. O homem constitui o único juiz do que as futuras gerações deverão ser. Nessa visão, a biotecnologia torna-se um tema de salvação, pois dá poderes ao ser humano de ser seu próprio redentor. Prometeu foi libertado pela ciência e agora está livre para refazer o mundo segundo seus próprios planos.

Um exemplo dessa concepção positivista-empírica são os descobridores do DNA, Watson e Crick. Segundo sua visão materialista, a primazia do homem no cosmo repousa na sua complexidade, e não em alguma característica moral especial ou no fato de ser portador de valores intrínsecos. O ser humano representa simplesmente um elemento entre uma multidão de coisas vivas na biosfera. Alguns pensadores na linha ecológica vão dar primazia moral à biosfera, e não ao ser humano. Dar qualquer primazia a ele seria especiesismo — um pecado mortal para os defensores da biologia evolutiva. Nessa perspectiva, “um ovo de uma espécie de tartaruga marinha em extinção pode realmente ser mais importante que um bebê humano”…[5]

Na sua forma extrema, tal visão converte a ciência legítima em ideologia do cientismo. Ao rejeitarmos a perspectiva bioética fundamentada nessa visão materialista, devemos buscar outra fundamentação, o que não significa que os insights das ciências experimentais e as descobertas da nova biologia devam ser abandonados. “Uma bioética sã se apoia na ciência legítima, mas ciência não é ética. Ela é de inestimável valor em nos dizer o que é o ser humano fisicamente, mas não é capaz de nos dizer como ele deve viver moralmente”, diz Pellegrino[6].

 

4.2. O ser humano como ser pensante: o conceito filosófico de ser humano

A filosofia é a forma mais antiga de pensamento sobre o homem e sua natureza. O próprio homem e o cosmo foram os primeiros sujeitos que os pioneiros filósofos gregos consideraram com seus poderes de observação e reflexão crítica.

A filosofia e, particularmente, a ética de Platão, de Aristóteles e dos estoicos fundamentaram as concepções mais influentes de ser humano na ética, na política e na legislação do mundo ocidental. A questão filosófica antiga centrava-se diretamente na questão: “O que é o homem?” Era o tipo de pergunta que Sócrates, por exemplo, frequentemente propunha aos seus amigos. Como Platão testifica, Sócrates busca a essência, ou o eidos, do homem, o conceito que lhe dissesse o que faz uma coisa ser o que é, e não outra coisa.

Sócrates, Platão e Aristóteles definiram um conceito ou ideia de ser humano prescindindo dos detalhes concretos e buscando chegar à essência, ao aspecto pelo qual os humanos são considerados tais. Eles “desclassificaram” o que é tido por acidental — idade, gênero, raça, cor da pele, doença e assim por diante, a miríade de detalhes concretos que diferenciam os indivíduos — para chegar ao irredutível conceito comum aplicado a todos aqueles que se dizem “homens”, mas não às outras espécies.

Esse conceito privilegia o ser humano como ser racional, animal e social simultaneamente, de maneira que nenhum outro ser possui tal característica.

A ideia de homem como um ser racional, que conscientemente escolhe agir e ser responsável por seus atos, sobreviveu como fase filosófica da ética, de forma mais ou menos intacta, até Descartes, que conceitualmente dividiu a realidade entre pensamento (res cogitans) e extensão (res extensa). A partir desse momento, a ideia filosófica de homem perdeu sua unidade, e os pensadores se lançaram em busca de diferentes teorias sobre ele e, consequentemente, sobre a ética.

As teorias contemporâneas sobre ética perderam sua confiança na razão e na religião. Como resultado, muitos tendem ao ceticismo quanto a verdades morais, a possibilidades de normas universais e à validade da própria razão. Outros veem a filosofia somente como serva da ciência, o que reforça a aceitação da visão empírico-positivista de ser humano como base para a teoria de homem e de bioética. Essa subserviência da filosofia à ciência tem uma consequência crucial: a expulsão da metafísica, seja do âmbito da ética, seja do da filosofia moral.

Diante dessa conjuntura, diz Pellegrino (p. 258):

a bioética no século XXI tende a confiar somente em critérios relativistas, pragmáticos e utilitários da verdade moral. A autoridade moral é frequentemente vestida na filosofia do liberalismo político, com suas ênfases em preferências pessoais, a impossibilidade de normas universalizáveis de qualquer tipo e a união da lei com a ética. Estamos perante um apelo de instrumentalização da bioética, pois esta promete um controle sobre a natureza que gostaríamos de ter. Esta perspectiva também alimenta a arrogância tecnológica tão necessária para sustentar a ideologia do progresso perpétuo. No final, alguém poderia questionar, o quanto de ética genuína sobrou na bioética contemporânea?

 

4.3. O ser humano como um ser que sente: a abordagem subjetiva, intuitiva e psicodinâmica

A partir dos anos 70 do século XX até o presente, cresceu significativamente a insatisfação dos “humanistas” com as respostas científicas e filosóficas à questão antropológica. Muitos as consideram, diante dos dilemas morais, por demais abstratas, racionalistas e distantes das dimensões existenciais do que é o ser humano.

Como antídoto, muitos agora buscam ajuda na literatura, nas ciências sociais ou na psicologia e nas ciências comportamentais. A ênfase passa a ser no afeto, na consciência, nas intuições e sentimentos antes que na racionalidade. Essa visão tem grande apoio nas teorias morais sentimentais de Hutcheson e Hume. De primordial importância nela é o ser humano existencial, e não seu ser essencial. A ênfase não recai sobre a ideia de ser humano — sobre a representação intelectual abstrata de sua essência —, mas sobre sua imagem, a singularidade concreta, particular, percebida nas relações.

A filosofia clássica ao menos prescindiu precisamente daquelas particularizações de uma entidade concreta. A ética procura uma norma que possa direcionar para um bom comportamento qualquer ser humano, não somente alguém em particular. Na atualidade, a psicologia, as ciências comportamentais e a sociologia descrevem como a pessoa se apresenta, se comporta, o que sente, como se relaciona com os outros e com a sociedade, isto é, o que torna cada pessoa um ser único. Não há dúvida de que esses componentes individualizantes são cruciais para compreender a vida moral. Não existe essência que nos auxilie numa compreensão completa da experiência de ser homem.

Segundo Pellegrino:

fatos sobre o contexto psicológico, social e emocional de um ato moral podem nos ajudar a entender por que e como uma pessoa age numa situação moral particularmente difícil. Mas para se fazer um julgamento moral, devemos ter uma ideia de ser humano, um conceito do que é bom para os humanos, que transcenda o bem percebido pela própria pessoa.[7]

 

Uma bioética fundamentada numa resposta afetiva ou intuitiva à questão antropológica facilmente psicologiza a ética. Esta passa das normas para questões de “valores”, sem o benefício de uma axiologia embasada naqueles que vão além das preferências pessoais. Julgamentos morais então são justificados se as pessoas se “sentem” bem ou tornam alguém “confortável”.

As narrativas têm longa e honorável história de ensinamentos morais. De fato, trata-se dos mais antigos conselhos que traduzem, na instantaneidade e concretude do presente, o discurso moral. Podemos pensar na Bíblia hebraica e cristã, nos dramas gregos, nas fábulas de Esopo. Desde Antígona até Hamlet e os trágicos heróis da literatura moderna, grandes escritores nos puseram diante de realidades concretas de escolha moral. As histórias têm apelo universal, mas os nossos julgamentos de suas lições morais devem ir além do apelo estético.

 

 

5. É possível um diálogo entre essas diferentes antropologias?

Cada teoria antropológica se apoia numa fonte diversa de autoridade moral para justificar suas normas. Algumas delas buscam fontes transcendentes, outras recorrem às presentes no próprio ser humano. Cada teoria afirma um paradigma diferente de bioética. Se nós, como humanos, confrontamos os desafios e dilemas da biotecnologia contemporânea, deve haver alguma fonte comum para o acordo sobre o que é e o que não é moralmente aceitável em relação ao que significa ser humano.

As questões sobre a vida humana afetam a todos simplesmente porque são comuns aos que partilham da mesma humanidade. Elas não podem ser confinadas no interior de comunidades ignorantes e hostis umas para com as outras. Nessa situação, corremos o risco de não somente sermos “estranhos morais” (Engelhardt), mas também, de fato, nos tornarmos “inimigos morais”.

Quais são as condições mínimas para iniciar um diálogo que respeite as diferenças à medida que busca o que é comum na humanidade por todos partilhada? O primeiro passo consiste na admissão de que toda antropologia, toda teoria sobre o ser humano, assume algum aspecto essencial da existência humana. A diferença em cada teoria constitui sua contribuição para o melhor entendimento do todo. Uma concepção total de nossa humanidade revela-se impossível; no entanto, precisamos ter algum acordo sobre o que é comum em nossa humanidade e, portanto, deve ser salvaguardado em nossas normas e valores morais.

Encontrar esse chão comum não significa capitular ante uma ou outra das teorias antropológicas concorrentes. Também não se sugere que visões opostas sobre certos postulados são irreconciliáveis e não podem ser negociadas. Não significa, outrossim, sacrificar nossas convicções mais profundas sobre as fontes últimas da moralidade simplesmente para obter um consenso. De alguma forma, devemos distinguir as decisões morais universalmente válidas daquelas que podem ser mais bem valorizadas na vida privada.

A divisão entre as teorias antropológicas teocêntricas e antropocêntricas continuará a existir, sem sombra de dúvida. Havendo possibilidade de diálogo aqui, este exigirá abertura, não capitulação, especialmente entre religião e ciência e as diferentes formas de conhecimento. Como viver e resolver os dilemas éticos resultantes de nosso crescente poder sobre a natureza? Os cientistas devem ter boa vontade e humildade para reconhecer as limitações da ciência em questões morais. Tanto a arrogância quanto o triunfalismo científico e religioso devem ser evitados, pois são danosos para o genuíno diálogo inter, multi e transdisciplinar que se faz necessário nessa área. Convém cultivar uma atitude de humildade perante as extraordinárias conquistas da tecnociência que alteraram completamente a vida na face da terra. Neste início de novo milênio, estamos num momento histórico em que o homem se tornou incondicionalmente problemático para si próprio. Ele já não sabe quem ele é, mas, ao mesmo tempo, sabe que não sabe.

 

6. Conclusão

Os comentários finais desta reflexão alinham-se com a reflexão bioética antropológica personalista de Pellegrino quando afirma:

 

no século XXI, nós estamos quase certos de saber muito mais sobre o homem como um ser biológico, mas provavelmente não muito mais sobre quem, o que e por que ele existe. Mas não podemos mais, especialmente em bioética, abandonar esta questão antropológica por ser demais “problemática”. Hoje temos o poder de alterar nossa constituição biológica para o melhor ou para o pior, de maneira ainda inimaginável. Sem uma ideia mais clara sobre o ser humano, entraremos e permaneceremos na escuridão da floresta moral, sem uma bússola.[8]

 

Num contexto de pós-modernidade marcado pelo pluralismo, existe também uma pluralidade de modelos bioéticos com discursos e conceitos plurais de valores de vida e de pessoa. Temos de discernir e optar por um modelo afinado com a perspectiva dos valores cristãos evangélicos. Nesse sentido, o Texto-base da CF 2008 apresenta a chamada “bioética de inspiração personalista integral que insiste na necessidade de uma objetividade universal que foge do subjetivismo e do relativismo ético[9].

Essa perspectiva de pensamento não deixa de ser profunda provocação e questionamento a todos — agentes de pastoral, pastores, homens e mulheres de boa vontade — os que se dedicam à reflexão bioética na árdua tarefa de promover e defender a vida humana e cósmico-ecológica e no reconhecimento da dignidade intrínseca da pessoa e de sua integralidade corporal, psíquica, social e espiritual. Que antropologia embasa a visão e a convicção de nosso modelo de bioética? Temos como enorme desafio aprofundar a reflexão sobre a elaboração de um modelo bioético personalista, que seja promotor de inclusão e não de exclusão e garanta a promoção e a defesa da vida humana, principalmente da mais vulnerabilizada[10]; enfim, que assegure um futuro digno para toda a humanidade.



[1] CNBB. Texto-base da CF 2008, nº 260.

[2] Edmund D. Pellegrino. “Toward a richer bioethics: a conclusion”, in: Carol R. Taylor; Roberto Dall’oro (eds.). Health and human flourishing: religion, medicine and moral philosophy. Georgetown University Press: Washington D.C., 2006, pp. 247-269; Edmund D. Pellegrino. “Evangelium Vitae, euthanasia, and physician assisted suicide: John Paul II’s dialogue with the culture and ethics of contemporary medicine”, in: Kevin W. Wildes; Alan C. Mitchell (eds.). Choosing life: a dialogue on Evangelium Vitae. Georgetown University Press: Washington, D.C., 1997, pp. 236-251.

[3] Cf. nossas reflexões sobre as principais questões bioéticas no atual estágio de desenvolvimento técnico-científico da humanidade, relacionadas ao nascer, viver e morrer, trabalhadas jornalisticamente de forma objetiva e de fácil compreensão do grande público e publicadas no livro de L. Pessini (Bioética: um grito por dignidade de viver. 2ª ed. rev. e aum. São Paulo: Paulinas/Centro Universitário São Camilo, 2007). Para um nível universitário de estudos de graduação e pós-graduação, com aprofundamento de caráter acadêmico-científico e a apresentação dos principais documentos bioéticos da contemporaneidade, temos a obra de nossa coautoria com L. Pessini e Christian de P. Barchifontaine (Problemas atuais de bioética. 7ª ed. rev. e aum. São Paulo: Loyola/Centro Universitário São Camilo, 2007). Cf. também, nessa mesma linha, L. Pessini e C. de P. Barchifontaine (Fundamentos de bioética. 3ª ed. São Paulo: Paulus, 2006).

[4] Leo Pessini. “Bioética e o desafio do transumanismo. Ideologia ou utopia? Ameaça ou esperança?”, in: Leda V. A. Moreno; Margaréte M. B. Rosito (orgs.). O sujeito na educação e saúde: desafios na contemporaneidade. São Paulo: Centro Universitário São Camilo/Loyola, 2007, pp. 77-101. Cf. também Gilberto Dupas. “Pós-humano – uma aventura trágica?” O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21/4/2007, p. 2.

[5] CNBB. Texto-base da CF 2008, nº 140.

[6] Edmund D. Pellegrino. “Toward a richer bioethics: a conclusion”, inCarol R.: Taylor; Roberto Dall’oro (eds.). Health and human flourishing: religion, medicine and moral philosophy. Georgetown University Press: Washington D.C., 2006, p. 256.

[7] Idem, p. 260.

[8] Idem, p. 258.

[9] CNBB. Texto-base da CF 2008, nº 205. Para um aprofundamento inicial sobre o conceito de bioética personalista, cf. Elio Sgreccia. “Personalism in bioethics: the proposal for a confederation”, in: B. Campion; L. Walsh (eds.). Globalization and the culture of life: care of the frail, elderly and the dying. Proceedings of the Canadian Catholic Bioethics Institute 2003 International Colloquium. Toronto, 2005, pp. 120-127.

[10] Christian de P. Barchifontaine; Elma L. C. P. Zoboli (orgs.). Bioética, vulnerabilidade e saúde: ideias e letras. São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2007.

Pe. Leo Pessini