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Publicado em número 185 - (pp. 9-17)

Pastoral da saúde Um grito por vida digna!

Por Pe. Léo Pessini

“E somos Severinos / Iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, da mesma morte. Severina / Que é a morte de que se morre? / De velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia / De fraqueza e de doença é que a morte Severina ataca a qualquer idade, e até gente não nascida.” (João Cabral de Melo Netto)

 

“Por disposição da divina providência o homem deve lutar ardentemente contra toda doença e procurar com empenho o tesouro da saúde,
para que
possa desempenhar o seu papel na sociedade e na Igreja.”

(Rito da Unção dos Enfermos e sua Assistência Pastoral, n. 3)

 

As duas citações que encabeçam esta reflexão sobre saúde e ação pastoral nos provocam e servem de roteiro. De um lado, a triste realidade da sociedade de exclusão hoje: a morte do ser humano “antes do tempo”, a vida abreviada e cortada, ainda mesmo antes de nascer. De outro lado, numa perspectiva de fé, o projeto de Deus em relação ao ser humano e de seu anseio fundamental de viver, que implica lutar contra a doença e buscar o tesouro da saúde.

A Igreja tem uma longa história de atuação na área da saúde. A segunda edição do Index de todas as instituições de saúde da Igreja no mundo, publicado recentemente pelo Pontifício Conselho da Pastoral dos Profissionais da Saúde, traz alguns dados interessantes. O Index reporta à existência de 21.757 instituições de saúde pertencentes à Igreja (Institutos Religiosos ou Dioceses), em 12.596 localidades, distribuídas em 135 países.

Grande parte dessas instituições são hospitais, quase 7.000 (sete mil), que correspondem a 34% do total. Em segundo lugar, do ponto de vista quantitativo, estão os centros de idosos. São 4.700 em todo o mundo, o que corresponde a aproximadamente 23% do total das instituições, concentrados majoritariamente nos países desenvolvidos. Só na Europa estão 81% desses centros. Os ambulatórios representam a terceira modalidade de instituição mais difundida, em torno de 20% do total. Na sua maioria estão nos países pobres: 1.800 na África (44% do total) e quase 1.500 na Ásia (37,5%). Existem 160 leprosários, dos quais 77 estão na África e 61 na Ásia. Para os deficientes a Igreja dispõe hoje de 1.000 centros de reabilitação, na sua maioria na Europa. Isso nos dá, ainda que em nível global, uma visão do quanto a Igreja investe na área da saúde e como também esta realidade a preocupa pastoralmente. Bastam esses dados num nível introdutório para percebermos como o mandato “pregai o Evangelho e curai os doentes” é algo muito prezado para a Igreja.

Não é objetivo deste artigo abordar os funda­mentos da Pastoral da Saúde do ponto de vista bíblico-teológico, histórico-eclesiológico, litúrgico, psicológico-antropológico. Outra questão delicada seria uma análise aprofundada do papel da Igreja (suplência? subsidiaridade?) em frente à realidade da saúde, quando o mundo secular — a sociedade civil e o Estado — assume sempre mais para si estas tarefas, que anterior­mente estavam basicamente nas mãos da Igreja! Esta problemática assinalada nas suas várias nuanças e aspectos, exige um aprofundamento, que em grande parte pressupomos aqui e será objeto de futuras refle­xões. Procuramos tão somente refletir a respeito da Pastoral da Saúde a partir dos desafios emergentes da realidade. É a força e o limite da reflexão. Neste sentido, iniciamos com uma aproximação sobre o conceito de saúde, como qualidade de vida e vida digna (I), avançamos em nível de leitura da realidade, falando da doença da saúde (II), apresentando uma rápida radiografia dos números da doença e morte em nosso país, bem como os desafios emergenciais da atual conjuntura de saúde, que desenham a crise do setor (exclusão social, sucateamento das instituições comunitárias-públicas de saúde, municipalização da saúde e Sistema Único de Saúde – SUS). Diante deste contexto desafiante, que pastoral desenvolver? Uma visão clara e precisa do conceito de pastoral da saúde e seus objetivos (geral e específico) e do horizonte de envolvimento se faz necessária, com o levantamento das urgências e indicações de ações práticas que se tornam prioritárias na área da saúde (III) a partir dos desafios que a realidade apresenta.

 

1. Saúde é sinal de qualidade de vida

Bom dia! Como vai você? Parabéns, muitos anos de vida! Essas expressões referem-se a um desejo íntimo de todos nós: muita saúde. A saúde é tema de nossas conversas, de nossas preocupações diárias.

Ao formularmos votos de saúde para alguém, passamos a ideia de que a saúde não depende só do cuidado pessoal de cada um. A saúde, para nós cristãos, é um dom de Deus, e, mais, resultado do trabalho da comunidade em defesa e promoção da vida. É um compromisso de fraternidade.

A saúde não é uma preocupação exclusiva dos cristãos. Ela interessa a toda a humanidade, independentemente de credo, raça, nacionalidade, sexo ou cor. É uma das questões mais “ecumênicas”, em que todos estão envolvidos indistintamente.

A saúde é um direito fundamental a que todo ser humano deve ter acesso, condição fundamental para o desenvolvimento pessoal e coletivo, é o direito de viver com dignidade.

Mas o que entendemos por saúde? O modelo de atenção vigente está estruturado numa visão negativa de saúde, vinculada a doença e morte. Isso significa que a saúde é entendida ou representada como ausência de doença. Precisamos superar essa visão da saúde a partir do hospital, da “ótica da pessoa na cama”.

Ter saúde — além de desfrutar de bem-estar físico, psíquico, social (OMS-1948) e, nós cristãos, acrescentamos a dimensão espiritual — é o resultado da combinação de alguns elementos muito simples da realidade, como: alimentação, habitação, educa­ção, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, terra e acesso aos serviços de saúde, como ambulatórios, postos de saúde e hospitais, entre outros elementos.

A saúde é a afirmação da vida como tal tem a ver com subjetividade, espiritualidade, democracia, cultura do reconhecimento do diferente, cultura da alegria e da festa, convivência harmônica com a natureza, vivência da relação com a terra como mãe da vida, casa e meio ambiente de todos os seres.

De um paradigma (uma concepção do processo saúde/doença) biomédico e cartesiano, passamos agora para um paradigma de promoção de saúde, socioecológico que recupera a saúde como resultado do equilíbrio das pessoas com os fatores ambientais, como: vento, temperatura, água, sol, alimentação, modo de vida e reprodução (estilo de vida)[1].

Temos hoje novos enfoques dos fatores que preservam a saúde e que causam a doença e a morte. Os hábitos de vida e reprodução são responsáveis por 50% dos anos de vida perdidos; o meio ambiente e sua influência sobre as pessoas, em 20%; a genética, em 20%, e o sistema de saúde, que tem sido a principal preocupação, apenas em 10%. Neste sentido entendemos que mais serviços médicos não significa mais saúde. O suposto é que se existem serviços médicos disponíveis, a saúde vai bem. O atual sistema sanitário responde somente pelas consequências da perda do estado de saúde. No documento final da I Conferência Internacional sobre a Promoção de Saúde (Ottawa, Canadá,1986), lemos: “a paz, a educação, a habita­ção, a alimentação, a justiça social e a equidade são requisitos fundamentais para a saúde[2]. É na década de 90 que a promoção da saúde passou a ser cada vez mais considerada como de maior importância nas políticas de saúde na América Latina. A OPAS/OMS ampliou sua interpretação definindo-a como “a soma das ações da população, dos serviços de saúde, das autoridades sanitárias e de outros setores sociais e produtivos, dirigidas para o desenvolvimento de melhores condições de saúde individual e coletiva”[3].

A partir dessas observações introdutórias, temos o desafio de mudar de uma concepção negativa para uma concepção positiva de saúde, onde a saúde seja expressão de qualidade de vida de uma população, o que pressupõe um nível determinado de acesso da população a bens econômicos e sociais[4]. Vejamos a seguir, alguns dados da realidade de doença e morte e alguns desafios emergentes e urgentes para serem enfrentados.

 

2. A doença da saúde no Brasil

2.1. Dimensões da exclusão social e saúde

Uma rápida radiografia estatística do “caos da saúde” revela um país doente. Já foi dito que o Brasil é um grande hospital, rico de gente pobre doente!

Segundo dados do Banco Mundial, existem 5 milhões de crianças malnutridas no Brasil, o equivalente a 25% da população infantil com menos de cinco anos.

Quarenta e cinco milhões de crianças e adolescentes (0 a 17 anos) vivem no país em condições sub-humanas e a renda mensal da família não chega a meio salário mínimo por pessoa, 25 milhões vivem em situação de alto risco, 15 milhões sofrem de desnutri­ção crônica, 10 milhões são obrigadas ao trabalho precoce e 7 milhões são portadoras de deficiências físicas e sensoriais.

Dos 32 milhões de adolescentes e crianças que vivem em pobreza absoluta, apenas 19,8% têm casas com esgoto adequado; 28,4% contam com água encanada e 27,4% têm lixo coletado.

Sete milhões e meio de adolescentes entre 10 e 17 anos trabalham, representando 11,6% da população economicamente ativa: 40% têm menos de 14 anos, faixa etária que não poderia atuar no mercado de trabalho, segundo a Constituição.

A taxa de mortalidade infantil, indicador que revela as condições sociais de uma população, embora tenha diminuído significativamente nos últimos anos de 75 por mil para 45 por mil em média, ainda está longe da taxa dos países do Primeiro Mundo, sempre inferior a 20 por mil. Em cada mil brasileiros que nascem vivos, 90 morrem antes de 5 anos de idade, por fome ou por doenças endêmicas.

Três a cinco milhões de abortos são praticados por ano, e 40.000 mulheres morrem de complicações de abortos malfeitos, segundo estimativa da Organiza­ção mundial da Saúde (OMS). Registre-se ainda que no Brasil há uma queda notável na taxa de fecundidade, que passou de 4,4 filhos por mulher, em 1980, para 2,7 filhos, em 1991.

Dez milhões de pessoas são portadoras da doença de Chagas e mais de 10 milhões sofrem de esquistossomose.

Dados orçamentários revelam que nos anos 94 e 95 verbas destinadas à saúde foram reduzidas pelo governo. Acrescente-se que parte desses recursos se perdem em corrupção antes de chegar ao destino — e o pouco que chega muitas vezes é desviado para outras finalidades. A saúde perdeu, no período 94 e 95, 40,7% de seus recursos em relação ao PIB (Produto Interno Bruto). Em 1989, os gastos com as contas dos hospitais representaram 1,9% do PIB; em 1992 já haviam caído para 1,16% do PIB. No Brasil, em 1990, a saúde respondia por 7% das despesas globais do país, enquanto os EUA usaram 14% deseus recursos e a Alemanha 18%.

O atual governo federal prometeu investir em saúde, R$ 80,00 por habitante, quantia que era destinada à saúde no final da década de 80, mas hoje só destina em torno de R$ 50,00 por habitante.

A rede hospitalar brasileira contava em 1990 com 6.478 hospitais, representando 492.328 leitos (não temos dados estatísticos mais recentes, embora o Ministério da Saúde afirme que, atualmente, há em torno de 600.000 leitos no Brasil). Os hospitais públicos governamentais somavam 1.150, representando 388.291 leitos. A iniciativa privada, subdividida em hospitais lucrativos, somavam 3.200, num total de 206.428 leitos; e não lucrativos (Hospitais Filantrópicos e Santas Casas) 2.128, representando 181.863 leitos[5]. Nem é preciso comentar a respeito da situa­ção caótica dessas instituições principalmente as comunitárias. Estamos longe do ideal previsto pela OMS de tornar o hospital um centro irradiador de saúde na comunidade, prestando à população assistência médico-sanitária completa, tanto curativa como preventiva, sendo, além disso, um centro de formação de profissionais médicos sanitários e de pesquisa biossocial.

A assistência médica da população no Brasil está assim distribuída (cf. Folha de S. Paulo, 15/9/92): 82.000.000 (59%) dependem da assistência pública; 35.000.000 (25%) dependem da assistência privada e 23.000.000 (16%) estão desassistidos. Na assistência privada, a divisão é a seguinte: medicina de grupo: 15.000.000; cooperativas: 7.000.000; autogestão, empresas: 7.000.000; privado: 5.000.000; seguro saúde: 1.000.000[6].

O direito à saúde e ao acesso universal de todos os cidadãos brasileiros aos serviços de saúde; proclamados pela constituição-cidadã (1988), está longe de ser uma realidade. O processo crescente de mercantilização em relação à saúde chega à situação de que quem tem dinheiro e um bom nível de vida, compra-a, associando-se a um convênio; mas a quem não tem nada — ao pobre — resta-lhe o “convênio” SUS, com filas, burocracia, indiferença e mais sofrimento (onde adoece e fica esperando a morte chegar).

 

2.2. Alguns desafios emergenciais

a) Situação social sempre mais crítica

Fome, desemprego, baixos salários, falta de habitação, de educação, de um atendimento de saúde digno quando necessário, são alguns elementos que desenham o horizonte dramático da sobrevivência humana na ótica dos pobres. Sendo a saúde a resultante de todos esses fatores, percebemos claramente que a realidade produz mais doença e morte do que vida digna, da qual a saúde é um sinal por excelência. Lutar por mais saúde significa, no fundo, engajar-se para que as pessoas possam ter esta infraestrutura de viver com dignidade. No ajuste econômico de cunho neoliberal (apesar de o governo não gostar de ser denominado neoliberal, preferindo definir-se “neossocial”) há um corte brutal de investimentos nas necessidades básicas da população, mais especificamente, no setor da saúde e educação.

Juntando-se a este quadro temos o aumento da violência e da criminalidade. A violência vem constituindo crescente problema de saúde pública, demonstrado pelos alarmantes aumentos das taxas de mortalidade forjada, afetando negativamente a qualidade de vida das pessoas gerando medo e insegurança. De 2% no total da mortalidade geral em 1930, a violência subiu para 10,5 em 1980; 12,3% em 1988; e 15,3% em 1989, correspondendo, no final da década, à segunda causa de óbitos no país, abaixo apenas das doenças cardiovasculares. Os homicídios, com baixas taxas nos países europeus (e em crescimento nos EUA) representam, dentre as causas que conformam a classificação da violência, a que mais se elevou nos últimos anos. No amplo período de 5-49 anos de idade, as mortes violentas ocupam o primeiro lugar, respondendo por 47% na faixa de 5 a 9 anos; 54%, de 10 a 14 anos; 70,8%, de 15 a 19 anos; 65,9%, de 10 a 19 anos; 41,1 %, de 30 a 39 anos; e 20,6%, de 40 a 49 anos[7].

 

b) Instituições comunitárias de saúde estão “pela hora da morte”!

Os serviços públicos e os privados de saúde, sem fins lucrativos (Santas Casas e hospitais filantrópicos), que respondem pela maior parcela de assistência à população, estão próximos à exaustão financeira e ao sucateamento social. Já estamos fartos de notícias de hospitais que fecham suas portas à população pobre e carente, doentes que morrem na fila de espera… Enquanto isso, nos intervalos comerciais de nossos noticiários — que falam do descalabro da saúde pública e do caos na rede hospitalar —, empresas de convênios de saúde, com anúncios caríssimos no horário nobre, apresentam a saúde chegando, como “papai-noel” vindo dos céus de helicóptero ou de avião… Imersos nessa realidade caótica, somos chocados pelos contrastes. Assistimos, em 12 de outubro de 1994, à entrega ao Presidente da República, pelo Diretor da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), do certificado de erradicação da poliomielite e, algumas horas depois, o parto de uma mulher na pia do Hospital Souza Aguiar no Rio de Janeiro…

A percepção fenomênica “do caos da saúde”, via mídia, costuma estar associada ao SUS: “O SUS não tem cura”. O gerenciamento precário dessas instituições também é um fator complicador em nível de desperdício dos já escassos recursos existentes e aproveitamento dos equipamentos.

Os preços aviltantes pagos pelo governo às instituições comunitárias (filantrópicas e sem fins lucrativos) que prestam serviço de saúde, além de ser aviltantes, são pagos com dois a três meses de atraso: consulta médica: R$ 2,04 e uma diária hospitalar: R$ 3,64. Cabe ao hospital oferecer aos doentes cinco refeições diárias, atendimento médico, medicamentos e serviços de enfermagem. Isso custa, no mínimo, R$ 100,00. A indústria da fraude não teria aqui uma de suas vertentes?

Medidas saneadoras vêm sendo atualmente postas em prática, pelo Ministério da Saúde no sentido de eliminar as distorções. Só no primeiro trimestre de 1995, o Ministério da Saúde reduziu em 656.000 o número de internações. Existe esperança de melhora, mas é preciso ver para crer!

 

c) Municipalização da saúde, sim! Prefeiturização da saúde, não!

O controle social (= cidadania da vigilância) deveria ser exercido pelo Conselho Municipal de Saúde. Esses conselhos são ou estão sendo frequentemente compostos ao “feitio” dos prefeitos, em clara desobediência ao que determina a lei 8.080 quanto à representatividade dos seus membros e com a maioria desses conselheiros sequer reconhecendo o seu papel. Quando ousam se tornar independentes, controladores ou contestadores da política municipal de saúde, são substituídos ou pressionados pelo prefeito.

 

d) O SUS — Sistema Único de Saúde: Dá para salvá-lo e fazê-lo funcionar bem?

A Constituição de 1988 consagrou, no capítulo da Seguridade Social (arts. 194-204), o direito de todos à saúde (art. 196), e criou, para garanti-lo, o Sistema Único de Saúde (art. 198). O então e atual Ministro da Saúde, Dr. Adib Jatene, assim definia esta novidade: “Isto significa tornar realidade na Nação brasileira uma nova ética social diante da saúde. Até a nova Constituição, apenas os que de alguma forma contribuíam tinham acesso ao atendimento. Os demais, os que nunca puderam contribuir, dependiam da caridade pública. Depois de 1988, todos passaram a ter esse direito. Significa adotar uma nova lógica para o desenvolvimento brasileiro. O objetivo do desenvolvimento deve ser humano, sendo o econômico o seu instrumento. Se o desenvolvimento não for orientado para beneficiar as pessoas, ele será um desenvolvimento alienado, gerador de desigualdades sociais, concentrador da renda, e, portanto, responsável pela decadência social.”[8]

Passados sete anos, o SUS ainda não foi implementado na sua plenitude. Pairam sérias dúvidas sobre sua viabilização. Os motivos apontados são vários. Fala-se da redução de recursos financeiros e que o número de pessoas que passaram a ter direito à saúde aumentou de 30 milhões para 150 milhões. Isso vem gerando dificuldades para o atendimento da população e para os gestores do SUS.

Existem várias iniciativas para acabar com o SUS — com interesses mercantilistas —, favorecidas pela corrente neoliberal disfarçada de modernidade. Exemplo disso é a reforma proposta da Seguridade Social, que extingue o SUS na forma como ele hoje está definido na Constituição.

Nesse sentido precisamos lutar junto à população e aos movimentos sociais populares (articulação), pressionar o governo para que o SUS funcione de fato, sem fraude nem corrupção.

 

3. Pastoral da saúde — um desafio urgente!

A partir desses dados preocupantes que evidenciam a triste realidade da saúde do povo, surgem muitas inquietações, perplexidades e perguntas. Existe saída? Qual? Afinal qual é o papel da Igreja nesta realidade? Que pastoral da saúde organizar, articular e implementar para que de fato seja promotora de “vida plena” (Jo 10,10)? Nesse sentido o documento elaborado no II Encontro Latino-Americano e do Caribe de Pastoral da Saúde (Quito — Equador, 14-18 de setembro de 1994) promovido pelo CELAM (Conselho Episcopal Latino Americano)[9] aponta algumas pistas interessantes a respeito — que pela sua importância, no sentido de ser de ajuda no planejamento e organização da ação da Igreja na saúde, nas dioceses, paróquias e comunidades, comentaremos a seguir.

 

3.1. Identidade e mística da Pastoral da Saúde

A Pastoral da Saúde (PS) é entendida como sendo “a ação de todo o Povo de Deus, comprometido em promover, cuidar, defender e celebrar a vida, tornando presente na sociedade de hoje a missão salvadora de Cristo no mundo da saúde”. Esta ação abrange basicamente três dimensões (tripé) fundamentais, interdependentes e complementares, a saber:

a) comunitária: visa a promoção e educação para a saúde. Relaciona-se com saúde pública e saneamento básico. Atua na prevenção das doenças, trabalhando para que as pessoas não adoeçam. Procura valorizar o conhecimento e a sabedoria popular em relação a plantas medicinais, que são aproveitadas para elabora­ção de remédios caseiros.

b) solidária: vivência da solidariedade, presença samaritana junto aos sofredores e doentes no hospital, domicílio e comunidade (AIDS, deficientes, drogados, idosos, alcoolizados…). Neste nível, acontece um ex­traordinário trabalho solidário, subterrâneo, gratuito e anônimo de presença — junto ao leito de dor, sofrimento e morte, nos domicílios ou hospitais —, dos capelães hospitalares, dos agentes de pastoral da saúde, visitadores de doentes e ministros da eucaristia nas comunidades cristãs. Constatamos que, durante muito tempo, a PS foi entendida somente nesta dimensão solidária. O surgimento da AIDS fez nascer inúmeras iniciativas neste setor.

c) político-institucional: atua junto aos órgãos e instituições, públicas e privadas, que prestam serviço e formam profissionais na área da saúde. Zela para que haja uma política de saúde sadia, e não política em saúde, isto é, a politicagem. Nesse sentido a participa­ção da PS nos Conselhos municipais, estaduais e nacional de saúde é de fundamental importância para o controle social, exercício da cidadania da vigilância, em elaborar e fiscalizar a política de saúde bem como ver como são aplicadas as verbas na saúde.

 

Dependendo das urgências e clamores da realidade, a PS vai privilegiar mais um aspecto ou outro. Necessariamente a PS, numa grande metrópole, terá acentuações diferentes de uma PS no Estado de Rondônia, por exemplo. Agindo na promoção, educa­ção e prevenção da saúde, enfim, trabalhando para que ninguém adoeça (dimensão comunitária); não se pode esquecer de quem está caído por terra sofrendo e até morrendo sozinho, abandonado (socorro imediato), é necessária a presença samaritana (dimensão solidária). Em todo encontro com algum doente, o capelão e/ou agente de pastoral da saúde deveria se perguntar: Por que essa pessoa está doente? Aí se defrontará com a necessidade de atuar por mudanças e transformações estruturais e institucionais (dimensão político-institucional). As três dimensões estão profundamente imbricadas entre si.

A PS tem como objetivo geral “Evangelizar com renovado espírito missionário o mundo da saúde, à luz da opção preferencial pelos pobres e enfermos, participando da construção de uma sociedade justa e solidária a serviço da vida”.

Propõe-se atingir os seguintes objetivos específicos:

 

1. Colaborar na prevenção e promoção da saúde, apoiando programas, projetos e organizações comprometidas com esse trabalho.

2. Conscientizar a comunidade sobre o direito à vida e o dever de luta por condições mais humanas de vida, terra, trabalho, salário justo, moradia, alimenta­ção, lazer, educação, saneamento básico e preservação da natureza.

3. Conscientizar o povo de que a saúde é tarefa pessoal, familiar e coletiva.

4. Participar ativa e criticamente nas institui­ções oficiais que decidem as políticas de saúde.

5. Resgatar e valorizar a sabedoria popular relacionada com a utilização dos dons da mãe natureza e conservação do meio ambiente.

6. Defender a saúde e a ecologia e denunciar tudo o que atenta contra a vida e a dignidade humana.

7. Refletir, á luz da fé e da pessoa de Jesus, a realidade da saúde e da doença, bem como das implicações da ciência, tecnologia e bioética.

8. Sensibilizar a sociedade e a Igreja sobre o sofrimento, denunciando a marginalização dos doentes e idosos e, de maneira especial, em face das novas formas de sofrimento e doenças (AIDS, doentes mentais e terminais etc.).

9. Contribuir para a humanização e evangelização das estruturas, das instituições e dos profissionais da saúde.

10. Promover a capacitação e formação integral (no nível humano, cristão e profissional) e permanente dos agentes de pastoral da saúde.

11. Promover e animar a formação de grupos, movimentos e organismos comprometidos com o mundo da saúde.

12. Ajudar os enfermos, familiares e todos os que os assistem a descobrir o verdadeiro sentido da dimensão celebrativa e sacramental da fé, especialmente com os sacramentos da Penitência, da Eucaristia e Unção dos Enfermos.

13. Acompanhar os profissionais e servidores da saúde em seu processo de formação no nível humano, cristão e ético.

 

3.2. Centros de comunhão e participação

Para a realização desses objetivos sugere-se levar em conta e dinamizar os centros de comunhão e participação. Entre outros apontamos:

1. A comunidade cristã: O enfermo deve encontrar nela o lugar privilegiado que encontrava em Jesus: sua mesma preferência, proximidade e acolhida. A comunidade cristã tem na área da saúde um de seus grandes desafios, no aspecto missionário, evangelizador e pastoral: em como operacionalizar o protagonismo dos leigos (Santo Domingo), com centenas de profissionais da saúde que dela fazem parte?

2. Organizações de enfermos: O ser humano sofredor é o sujeito responsável e ativo da obra de evangelização e salvação, e isso implica uma busca de PS que se constrói em torno do doente como protagonista e evangelizador[10]. A Fraternidade Cristã de doentes e deficientes (FCD) bem como as várias associações dos portadores de patologias crônicas, como talassêmicos, renais crônicos, ostomizados, diabéticos, vão nessa direção.

3. A família: É de importância fundamental na humanização da pessoa e da sociedade. É chamada a educar para viver com saúde, promover a saúde de seus membros. É necessário recuperar a família como parte essencial no cuidado de seus membros doentes (por exemplo, idosos, portadores de HIV/AIDS).

4. A paróquia: Tem o desafio de assumir a promoção humana, o cuidado e a preservação da saúde, o acompanhamento dos velhos e doentes. Deve ser a sementeira de formação dos agentes de pastoral da saúde[11].

5. CEBs e Organizações populares: A exemplo das primeiras comunidades cristãs, deverão testemunhar o compromisso com os mais fracos e necessitados, cumprindo sua missão profética, anunciando uma vida mais justa, solidária e fraterna, denunciando as injustiças e situações de pecado social. Atenção especial deve ser dada às organizações populares, que são instâncias de resistência do povo pobre e doente que se organiza para sobreviver em face do crescente empobrecimento. Nesse particular é importante levantar a preocupação de capacitação pela promoção da saúde e prevenção das doenças.

6. Vida religiosa: Todos os religiosos, porém, de maneira especial aqueles que têm como carisma o cuidado da saúde, são chamados a testemunhar a fé e a esperança, num mundo cada vez mais desumano, tecnicista e materialista. São chamados a colaborar como animadores dos grupos de pastoral da saúde.

7. Instituições de assistência à saúde: Aqui entreabre-se a perspectiva de participação em vários níveis: a) nos organismos internacionais, estatais e locais. Seções regionais da OMS, OPAS, Ministério da Saúde, secretarias estaduais e municipais de saúde etc.; b) instituições de saúde (hospitais, clínicas, asilos etc.): são chamadas a educar e a promover a saúde, a cuidar e a defender a vida, a oferecer uma assistência integral mais humana ao enfermo e à sua família, reconhecendo e respeitando seus direitos; c) profissionais da saúde: são os agentes naturais da pastoral da saúde. É importante atuar junto, acompanhando-os no seu processo de formação e cultivo dos valores humanos, éticos e cristãos; d) serviço de pastoral da saúde: Será uma presença aglutinadora de todas as forças presentes na instituição, tornando possível a ação missionária da comunidade cristã em favor dos doentes, dos familiares e dos profissionais da saúde[12].

8. Instituições de educação para a saúde: Escolas e faculdades que formam profissionais na área da saúde (medicina, enfermagem, serviço social, administração hospitalar etc.). Para serem efetivamente cristãs, essas instituições devem se preocupar com a formação integral da pessoa. Daí a necessidade de incluir nos currículos, além dos assuntos que os tornem profissionais competentes, tecnicamente falando, matérias de formação a partir de valores humanos, éticos e cristãos. Hoje a Igreja deveria se perguntar seriamente se um profissional da saúde formado nas universidades, faculdades e escolas católicas é diferente ou não dos que se formam em instituições públicas ou privadas não religiosas. Se são todos iguais que sentido tem?[13].

9. Organização de voluntariados: Valorização deste serviço gratuito, verdadeira solidariedade silenciosa sem filiações religiosas, mas que faz muito na promoção humana, no sentido de prover de bens materiais pessoas que não têm as mínimas condições de cuidar de sua própria saúde. Além disso, são fatores extremamente vitais na humanização das estruturas de saúde. Em São Paulo são exemplares a Associação das Voluntárias do Hospital das Clínicas (AVHOC) — no Hospital A. C. Camargo — e do Hospital da Associação à Criança Defeituosa (AACD).

10. Seminários e escolas de teologia: Nos currículos de formação dos futuros pastores e/ou agentes de pastoral leigos, não pode faltar a capacitação para a Pastoral da Saúde e bioética[14].

11. Os meios de comunicação: É conveniente utilizá-los para realizar programas e campanhas em favor da promoção e defesa da vida, bem como incentivar iniciativas solidárias na comunidade. Destaque especial pode ser veiculado em datas significativas para a saúde, como: Dia Mundial do Doente (11 de fevereiro), Dia Mundial da Saúde (7 de abril), Dia Mundial de Solidariedade-AIDS (1 de dezembro).

 

Concluindo

Ao finalizarmos esta reflexão sobre a Pastoral da Saúde, é evidente que sobram desafios para serem vencidos em termos de operacionalização e implementação do ideal programático de visão e amplidão da questão. Fica sinalizado o grande desafio da evangelização da cultura da saúde. As recentes Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil (1995-1998), ao esboçar uma teologia da (nova)evangelização, fala dos modernos areópagos que desafiam hoje o impulso missionário da Igreja e lhe apresenta novas prioridades para a evangelização (n. 99). A área da saúde, sem dúvida, constitui hoje um “novo areópago”, que desafia nossa criatividade evangelizadora e pastoral, por ser atingido com a força transformadora do Evangelho e, a exemplo de Paulo, somos chamados a falar do “Deus desconhecido” (Deus da vida) em meio a tantos ídolos (= deuses) de morte.

Que haja doentes por causa da limitação, fragilidade e finitude humana é compreensível e aceitável. Negar isso seria falta de sabedoria e não levar a sério nossa condição de seres humanos, limitados e mortais. Mas, o que não podemos aceitar passivamente são os adoecidos por causa da pobreza, da injustiça da fome, os que morrem “antes do tempo” por falta de condições mínimas de vida digna. É nessa luta pela “cultura da vida”, imersos em meio a uma “cultura de morte”, que somos chamados a gritar pela saúde, na organização e desenvolvimento criativo de uma ação pastoral no âmbito da saúde. Ação verdadeiramente libertadora — que vá além do simples amadorismo, do consolo individual, do sacramentalismo vazio e legalista, que não transforma nada e ninguém — e que promova a humanização (ternura humana), num contexto em que as pessoas são facilmente coisificadas e as coisas sacralizadas, e se torne sacramento testemunhal do Deus da vida, como boa-notícia que vença a “cultura” da indiferença e do pessimismo pela “cultura” da solidariedade e da esperança. Utopia? Sonho de ingênuos ou inocentes úteis? Não, é a teimosia da fé, a utopia cristã do Reino da vida, afirmando que “Deus enxugará toda lágrima dos olhos e não haverá mais morte, nem luto, nem grito, nem dor” (Ap 21,3-4).



[1] Cf. Eugênio V. Mendes, “Cinco razões para o fim do INAMPS”, in Saúde e debate, nº 39/junho 93, pp. 26-34.

[2] Cf. Volnei Garrafa, Dimensão da ética em saúde pública, USP — Faculdade de Saúde Pública, 1995, pp. 25­-40.

[3] Organização Pan-Americana de Saúde, Promoción de la salud en las Americas, Washington, D.C., 1993.

[4] Cf. Eugênio V. Mendes, “Saúde e qualidade de vida”, in Saúde, vol. 4, nº 4, pp. 19-22.

[5] Cf. Niversindo A. Cherubin (org.), Cadastro geral dos hospitais e instituições para deficientes, Sociedade Beneficente São Camilo, São Paulo, 1990, pp. 1-5.

[6] Para maiores informações estatísticas a respeito do processo saúde-doença no Brasil, cf. Christian de Paul de Barchifontaine, O agente de pastoral e a saúde do povo, Loyola, São Paulo, 1993, pp. 45-61.

[7] Cf. Maria Cecília de S. Minayo, “A violência social sob a perspectiva da saúde pública”, in Cadernos de saúde pública, vol. 10 — Supl. I, 1994, pp. 7-18.

[8] Pronunciamento do ministro da Saúde Adib Jatene durante a instalação da IV Conferência Nacional da Saúde, em 1992, in Informativo Hospitalar Brasileiro, set./9 1, p. 13.

[9] Este documento foi publicado na íntegra no Boletim Informativo do Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde e Bioética, junho/95, nº 122. Em forma de caderno, foi também publicado pela CRB, com o título “Vida religiosa e desafios do mundo da saúde”, in Cadernos da CRB, nº 22, 1995.

[10] Cf. Leocir Pessini, Solidários na doença, Paulus, São Paulo, 1994.

[11] Cf. Leocir Pessini, Ministério da vida: orienta­ções para agentes de pastoral da saúde e ministros da eucaristia, Santuário, Aparecida, 12ª ed., 1995.

[12] Cf. Leocir Pessini, A pastoral nos hospitais: ousadia de inovar no anúncio da boa-nova, Santuário, Aparecida, 2ª ed., 1995.

[13] Ver o recente documento Carta dos profissionais da saúde, de autoria do Pontifício Conselho de Pastoral para os Profissionais da Saúde, publicado no Brasil por Editora Paulinas.

[14] Cf. LeocirPessini & Christian de Barchifontaine, Problemas atuais de bioética, Loyola, São Paulo, 2ª ed., 1994. Em breve a Paulus Editora publicará Fundamentos de bioética, organizado por esses mesmos autores.

Pe. Léo Pessini