Publicado em março-abril de 2010 - ano 51 - número 271 - (pp. 40-47)
A importância da economia solidária e os desafios do cooperativismo de Reforma Agrária no Brasil
Por Farid Eid; Andréa Eloisa Bueno Pimentel
INTRODUÇÃO
Uma economia alternativa concreta está em processo de gestação no Brasil, desde o final dos anos 1980, para trabalhadores do campo e da cidade, mediante a estruturação de empreendimentos econômicos solidários (EES), destacando-se as cooperativas populares autogeridas, de forma a colocar novos desafios, entre os quais a necessidade da formação continuada no plano técnico, administrativo e político, como elementos fundamentais para buscar o equilíbrio entre o social e o econômico. Neste artigo, trataremos de analisar a economia solidária no Brasil, particularmente os desafios enfrentados pelo cooperativismo de reforma agrária do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A questão de fundo é aprofundar o debate sobre se é possível conceber EES que consigam sobreviver e crescer na economia capitalista, incorporar progresso técnico, racionalizar a organização produtiva e do trabalho, trazer benefícios sociais aos associados, ser esforço político para as lutas dos trabalhadores, além de garantir gestão democrática e autônoma.
Se a temática da reforma agrária vem ocupando espaço crescente no debate acadêmico, nas instituições e na sociedade em geral, em virtude do potencial da sua contribuição na resolução de graves problemas brasileiros, como a concentração de renda e o desemprego, pouco se discute sobre a viabilidade social e econômica dos assentamentos de reforma agrária, associada a uma política efetiva de fixação das famílias no campo. As condições em que se encontram as famílias no campo são destacadas em um relatório de pesquisa que demonstra que 19 milhões de pessoas residentes no meio rural do país (53% do total) estão abaixo da linha da pobreza, vivendo com menos de um quarto de salário mínimo per capita, ou seja, com menos de 20 dólares mensais, em maio de 2000[1] (Azevedo, 1998). Por outro lado, a simples distribuição de terras a quem necessita não é suficiente para resolver problemas nacionais. Faz-se necessária uma política governamental para a reforma agrária, tendo em vista a transformação da estrutura agrária brasileira, o fortalecimento da agricultura familiar e a promoção do desenvolvimento sustentável em, pelo menos, três dimensões — econômica, social e ecológica. Nesse contexto, entidades como o MST assumem papel de destaque, pressionando o governo a fim de que este não apenas distribua a terra, mas também crie condições para que os assentamentos se desenvolvam. O artigo tem por finalidade analisar o desenvolvimento recente da economia solidária no Brasil à luz dos resultados da pesquisa inédita de Gaiger et al. (1999) e, em seguida, apresentar os resultados da pesquisa realizada por nós que analisa a dinâmica interna da organização social e produtiva e o uso de ferramentas gerenciais, as quais podem contribuir para a viabilidade social e econômica de Cooperativas de Produção Agropecuária (CPA) do MST.
1. Importância da economia solidária no Brasil
Em diversas regiões do país, com maior intensidade em algumas, vêm se desenvolvendo, principalmente nos últimos 15 anos, experiências de geração de trabalho e renda de forma solidária e associativa. Iniciativas isoladas deram lugar a uma realidade que se expande e se dinamiza, motivando a ação de entidades de classe e de políticas públicas no campo popular orientadas para uma economia alternativa concreta em processo de gestação.
Gaiger et al., ao analisarem a viabilidade e as perspectivas da economia solidária no Estado do Rio Grande do Sul, mostraram que, se antes as experiências de geração de trabalho e renda eram consideradas pelos pesquisadores como circunstanciais e efêmeras, de difícil registro, a partir da década de 1990 aumenta ano a ano o interesse por investigações científicas sobre iniciativas solidárias, algumas com mais de dez anos de atividade contínua. Isso não quer dizer que dissoluções não ocorram, mas o que se observa de novo é a busca pela sobrevivência e mesmo o crescimento de algumas, procurando garantir, simultaneamente, o equilíbrio entre o econômico e o social. É nesse sentido que uma nova interpretação sobre experiências solidárias e programas de apoio considera que, para sobreviverem e crescerem, tenderiam a evoluir para ações propositivas, destacando-se o desenvolvimento de novas formas de organização da produção e do trabalho, com reflexos diretos no campo das políticas públicas e da organização da sociedade.
Os empreendimentos econômicos solidários (EES) são definidos por Gaiger et al. (1999) como organizações coletivas de trabalhadores voltados para a geração de trabalho e renda e regidos, idealmente, por princípios de autogestão, democracia, participação, igualitarismo, cooperação no trabalho, autossustentação, desenvolvimento humano e responsabilidade social. Entende-se por economia solidária (ES), segundo Singer (1999), o conjunto de experiências coletivas de trabalho, produção, comercialização e crédito organizadas por princípios solidários, espalhadas por diversas regiões do país e que aparecem sob diversas formas: cooperativas e associações de produtores, empresas autogestionárias, bancos comunitários, “clubes de trocas”, “bancos do povo” e diversas organizações populares urbanas e rurais. Desenvolvem principalmente atividades econômicas, como plantio, beneficiamento e comercialização de produtos primários, prestação de serviços, confecções, alimentação, artesanatos, entre outras. Para viabilizar a expansão da ES, uma série de desafios são enfrentados, como a criação de novas políticas e instituições públicas e populares voltadas à representação e apoio, à incubação de EES, ao acompanhamento permanente das demandas de formação, crédito, tecnologia, mercado, gestão e outros.
Por meio da pesquisa de campo em 35 EES, urbanos e rurais, podem-se verificar, pelo menos, três resultados tangíveis: garantem sobrevivência imediata; criam oportunidades para o desenvolvimento intelectual e para o aprendizado de um ofício; rompem com o padrão paternalista e clientelista, ainda predominante, na assistência às populações pobres (Gaiger et al., 1999). Os pesquisadores observaram que determinadas iniciativas solidárias conseguiram sobreviver e atingiram níveis de acumulação e crescimento. Nessa perspectiva, a economia solidária, sem desconhecer o capitalismo como único sistema econômico mundial na atualidade, parte de valores distintos, entre os quais autonomia, democracia, fraternidade, igualdade e solidariedade. Os pesquisadores analisam que o termo empresarial aqui proposto “deve ser dissociado da semântica que o vincula apenas ao empresário capitalista” (p. 25). A diferença estaria no fato de que a busca por maior racionalidade está fundamentada na cooperação com a exploração coletiva das potencialidades profissionais, em benefício dos próprios produtores. Essa racionalidade é distinta da lógica capitalista — não solidária e excludente — e distingue-se também da solidariedade comunitária, para a qual faltam instrumentos gerenciais.
Nos EES, o trabalho é o elemento central. A manutenção de cada posto de trabalho tem prioridade maior do que a lucratividade. Conforme Razeto (apud Gaiger et al.), “a valorização do trabalho próprio define a racionalidade destas pequenas empresas de trabalhadores” (1999, p. 36). É nesse sentido que se pode identificar o vínculo entre acumulação e cooperação. A acumulação está subordinada ao atendimento das necessidades definidas pelo coletivo de trabalhadores, aos objetivos da cooperação. Talvez por isso se possa compreender por que, apesar de levarem em consideração problemas enfrentados, praticamente todos os trabalhadores entrevistados na pesquisa de Gaiger et al. não cogitam voltar a trabalhar para um patrão ou arriscar-se sozinhos com um negócio próprio. Embora identifiquem dificuldades e incertezas, apontam vantagens em relação ao trabalho assalariado, destacando-se: renda monetária próxima ao valor obtido no mercado de trabalho; condição de coproprietário e gestor do negócio, com poder de decisão em benefício dos próprios trabalhadores; valorização da autoestima; desenvolvimento intelectual e de potencialidades profissionais; vivência do trabalho como algo digno, e não como atividade penosa. A hipótese de que a força dos empreendimentos solidários reside no fato de combinarem, de forma original, o espírito empresarial[2] com o espírito solidário[3] fica demonstrada. Em síntese, a cooperação e a eficiência no trabalho se desenvolvem nos EES onde exista similitude de interesses e motivações dos membros; utilização de maior capacidade de trabalho conjunto, por meio de acordo no coletivo; busca pela ampliação do conhecimento técnico e profissional apropriado pelo coletivo e incorporado à produção; distribuição equitativa dos resultados do trabalho, conforme a contribuição real de cada um e do coletivo.
2. Os setores econômico-sociais do MST
O MST pode ser definido como uma empresa social pelo caráter de seus empreendimentos econômicos solidários (Pasquetti, 1998). De fato, observamos, em nossa pesquisa de campo em CPAs e na experiência como docente em curso de especialização em Administração de Cooperativas (Ceacop), que as atividades sociais e econômicas, onde existem, estão voltadas, em suas esferas de poder, para a construção de um modelo de gestão democrático e participativo; busca-se o desenvolvimento organizacional por meio da motivação coletiva para o trabalho voluntário e remunerado; há o compromisso e disciplina pessoal de seus membros com o cumprimento dos objetivos sociais; na definição das estratégias de crescimento econômico, a busca pelas sobras líquidas não é a referência principal, mas, principalmente, o desenvolvimento do ser humano, mediante o resgate e a ampliação da dignidade e da cidadania; geralmente, a propriedade é coletiva e deve beneficiar a todos os associados e envolvidos; o cooperativismo para assentados do MST é entendido como um dos caminhos para a emancipação humana.
Quanto à sua trajetória, com 16 anos de atividades, encontra-se organizado em 23 Estados, em 600 assentamentos com cerca de 150 mil famílias. Nesse período, o MST destaca-se pelas atividades articuladas de cinco setores. O Setor de Produção criou o Sistema Cooperativista dos Assentados (SCA) com base na geração de 400 associações de produção, comercialização e serviços, 49 cooperativas de produção agropecuária (2.300 famílias), 32 cooperativas de prestação de serviços (11 mil sócios), 2 cooperativas regionais de comercialização, 2 cooperativas de crédito (6 mil sócios) e 96 agroindústrias processadoras de frutas, leite, grãos, café, carnes, doces e cana-de-açúcar. O SCA atua em cerca de 700 municípios brasileiros. O Setor de Educação desenvolve pedagogia própria para escolas do campo em cerca de mil escolas públicas de assentamentos, com 75 mil crianças e 2.800 professores da rede municipal e estadual. O Setor de Comunicação coordena as atividades do Jornal Sem Terra e acompanha a formação de repórteres populares, de programas de rádio e de rádio comunitária em assentamentos, a divulgação de informações e notícias na página da internet e via e-mail para diversas organizações e grupos de apoio em nível nacional e internacional. E o Setor de Direitos Humanos articula uma rede nacional com 60 advogados que trabalham, de forma voluntária, em processos que envolvem prisões, assassinatos e outras questões relacionadas à defesa da reforma agrária. O Setor de Relações Internacionais coordena as atividades internacionais, principalmente em fóruns como a Via Camponesa, que agrega 80 organizações camponesas dos cinco continentes.
3. Organização da produção e do trabalho como fator potencializador do desenvolvimento nos assentamentos de reforma agrária
Estudo desenvolvido pela FAO/Incra (1998) em dez assentamentos considerados mais desenvolvidos e em dez outros considerados menos desenvolvidos identificou os principais fatores potencializadores do desenvolvimento, que são, nesta ordem: a presença de crédito; o quadro natural e a organização do seu uso; o entorno produtivo e/ou consumidor; a organização da produção; a assistência técnica. A organização política e o apoio institucional (infraestrutura produtiva e de serviços) atuam tanto na melhoria das condições sociais dos assentados, como também contribuem para potencializar os sistemas produtivos. Os principais fatores limitantes ao desenvolvimento dos assentamentos encontrados pelo estudo são, em ordem de importância: o quadro natural; a infraestrutura deficiente, principalmente em relação à falta ou à precariedade das sete estradas internas e de acesso; falta de assistência técnica; a inexistência de organizações produtivas e políticas entre os assentados. A falta e/ou demora do acesso aos créditos e a infraestrutura básica relacionada à reforma agrária (Procera[4], saúde, educação, habitação e energia elétrica) interferem negativamente tanto na perspectiva de obtenção de renda quanto na qualidade de vida dos assentados.
Nesse panorama, a organização da produção e do trabalho assume importante papel para o desenvolvimento de um assentamento. Onde existia maior organização política dos assentados, foi garantido melhor acesso às políticas públicas sociais e produtivas. Do mesmo modo, nos assentamentos analisados, onde havia falta de organização política, verificou-se baixa capacidade de interlocução com os diversos órgãos públicos e falta de organização produtiva — a qual poderia permitir uma utilização mais racional dos investimentos e a potencialização dos sistemas produtivos. O mesmo estudo da FAO/Incra constatou que há maior destinação de recursos para a reforma agrária aos assentamentos considerados de maior potencial de desenvolvimento. Essa prioridade é justificada pela relação custo/benefício em uma situação de escassez de recursos diante da demanda total dos assentamentos. Os de maior potencial de desenvolvimento são os que possuem melhores quadros naturais, conseguem dar contrapartida ao apoio governamental e são ligados a movimentos sociais que aceleram a organização produtiva.
4. Organização da produção e do trabalho em cooperativas de reforma agrária do MST
A partir do momento em que os trabalhadores sem terra foram organizando-se, a cooperação agrícola foi tornando-se importante ferramenta de desenvolvimento dos assentamentos de reforma agrária do MST. A cooperação pode iniciar com as formas mais simples, como mutirão, troca de serviços e/ou de insumos, grupos de trabalho coletivo, semicoletivos e associações prestadoras de serviço, e ir evoluindo, aos poucos, em direção a formas mais desenvolvidas de cooperação, como as Cooperativas de Prestação de Serviços (CPSs), as Cooperativas de Produção e Prestação de Serviços (CPPSs), as Cooperativas de Crédito e as Cooperativas de Produção Agropecuária (CPAs). Por meio das propostas de CPAs, desenvolve-se o Sistema Cooperativista dos Assentados (SCA) para superação do isolamento das experiências. O SCA está estruturado em nível nacional, por meio da Concrab (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil), em nível estadual, com as Cooperativas Centrais Estaduais e as Cooperativas Regionais, e em nível municipal, com as CPAs. Na CPA, a terra permanece sob controle do coletivo, a não ser a pequena parcela destinada à produção de subsistência de cada associado. Todos os investimentos estão sob controle e em nome da CPA. O planejamento da produção é coletivo. Com relação à moradia, normalmente se formam agrovilas, que permitem quebrar o isolamento social das famílias assentadas e criar laços de integração comunitária de forma permanente. Além disso, o fato de as casas estarem próximas umas das outras e com certa urbanização viabiliza economicamente a possibilidade de se realizarem investimentos sociais, seja por parte do Estado, seja pela própria comunidade, em obras de infraestrutura que representem melhoria da qualidade de vida, como escolas, creches, energia elétrica, esgotos sanitários, água encanada e potável, telefonia, entre outras.
Nas CPAs, o trabalho é dividido e organizado em setores de produção e serviços. Essa forma de divisão e organização, no entanto, depende das características específicas do grupo — por exemplo, grau de companheirismo via luta pela terra em período anterior ao assentamento e na fase do acampamento; se há relação de parentesco e de parceria na realização do trabalho com desempenho equivalente; capacidade de organização interna; existência de quadros técnicos; nível de qualificação dos trabalhadores. Depende também do fato de os assentados divergirem ou não quanto às culturas agrícolas que vão produzir, quanto à intensidade de uso de insumos e quanto à aquisição de máquinas, entre outros. Esse conjunto de aspectos é fortemente influenciado pela trajetória de vida e de trabalho das famílias cooperadas (Eid et al., 1998). A CPA é complexa porque se constitui como EES de gestão, de produção e de trabalhos coletivos. Atualmente, para se criar uma, o MST estabelece alguns condicionantes: além de a terra estar sob controle do coletivo, a cooperativa deve liberar quadros para os movimentos sociais, deve estar em uma área estratégica e ter um plano estratégico de desenvolvimento. Em nível nacional, no ano de 1998, estavam em operação 49 CPAs e 32 CPSs.
Neste estudo, estaremos concentrando nossa análise na organização interna das CPAs. Todas possuem estatuto social, regimento interno, Assembleia Geral, Conselho de Administração ou Conselho Deliberativo ou Coordenação, Conselho Diretor ou Diretoria Executiva, Conselho Fiscal, setores de trabalho e núcleos.
O trabalho é organizado internamente por meio dos setores de trabalho que agregam todos os associados da cooperativa. Trata-se de uma instância de base da estrutura da cooperativa. Cada cooperativa organiza seus setores conforme as atividades que desenvolve, como os setores de grãos, horta, animal, máquinas, agroindústria, administrativo, vendas, entre outros. Cada setor tem seu coordenador eleito pelos associados membros de cada setor. Quanto à composição das instâncias de poder, mesmo que sejam escolhidos pelos setores, os coordenadores terão de ser aprovados pela Assembleia Geral. E, na base da estrutura, têm-se os núcleos, instâncias com características político-organizativas, com espaços de discussão sobre diversos temas referentes ao conjunto da cooperativa, à vida de seus associados e às questões ligadas ao MST. Nem todas as CPAs possuem núcleos organizados e em funcionamento. Quanto ao planejamento, não há um método unificado, uma vez que este é desenvolvido de forma diferenciada em cada uma delas, porém com algumas características comuns. Em todas as CPAs, o mínimo de planejamento que se tem é o plano de safra por produto. Com base nele, os setores organizam o trabalho dos associados e avaliam periodicamente o andamento dos trabalhos. No estágio atual de desenvolvimento das CPAs[5], poucas possuem planejamento de longo prazo, com horizontes para cinco a sete anos. Essa dificuldade se justifica, se levarmos em consideração que as CPAs normalmente se originam de grupos informais de trabalho coletivo.
5. Análise de instrumentos de gestão em cooperativas de reforma agrária do MST
Primeiramente, para não incorrer em erro de dimensionamento do tamanho de cada unidade produtiva e do número de cooperados, trabalhadores que serão futuros cooperados gradativamente percebem ser necessário um estudo de mercado e análise da viabilidade social e econômica do projeto de criação de uma CPA. O estudo pode indicar tipos de produtos que possuem demanda no mercado — padrões e diferenciados —, o preço possível de ser obtido, a tecnologia adequada de produção, a escala mínima viável para a unidade de produção. A análise de viabilidade do projeto se faz necessária para dimensionar corretamente a obra, o layout, a projeção do fluxo do processo de produção e verificar as exigências legais e normas ligadas aos serviços de inspeção sanitária e os equipamentos necessários ao processo produtivo, além dos postos de trabalho e a qualificação necessária. Com informações qualificadas, uma cooperativa pode passar a planejar suas ações e inversões de maneira mais segura, definindo, com menor grau de incerteza, postos de trabalho, requisitos de qualificação, número de cooperados necessários e adequados a cada realidade, sem deixar de levar em consideração o tempo para lazer, cultura, educação e outras atividades.
Numa perspectiva de viabilidade, faz-se necessário buscar permanente ganho de produtividade e qualidade. Para isso, existe a preocupação com a formação contínua de quadros técnicos. Além disso, considera-se necessário que os dirigentes tenham algum tipo de experiência administrativa. No entanto, em razão da baixa escolaridade dos associados, são poucos os que possuem experiência e qualificação na área de gestão de uma pequena propriedade (Christoffoli, 1998).
Diante disso, a Concrab criou o Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (Iterra), instalado no município de Veranópolis, no Rio Grande do Sul. Esse centro de formação e capacitação técnica promove, entre outros, o curso técnico em Administração de Cooperativas (TAC) e as Oficinas de Capacitação Técnica em Agroindustrialização, que visam qualificar assentados. Entre os métodos de capacitação de massa utilizados pela Concrab, destacam-se os Laboratórios Organizacionais (LO), que buscam formar quadros organizadores de empresas associativas, e os LO de Cursos, que visam à capacitação em algumas áreas técnicas específicas. Nos cursos de Formação Integrada com a Produção, os participantes conjugam o trabalho no lote individual ou coletivo com o aprendizado de técnicas agropecuárias e noções organizativas (Concrab, 1996b). A contínua preocupação com a capacitação técnica dos cooperados tem levado à busca de parcerias com algumas universidades brasileiras para o desenvolvimento de cursos de especialização superior em gestão de cooperativas.
Para o MST, perseguir um mercado alternativo parece estratégico para sobrevivência e crescimento, tendo as seguintes características: popular, local/regional; ideológico/propaganda da reforma agrária; comercialização direta entre os trabalhadores. De fato, conforme estudo de Kunz (1999), a experiência na criação de canais próprios de aquisição de matéria-prima básica para unidades de beneficiamento de erva-mate por cooperativas dos três Estados da Região Sul, mediante relações de intercooperação, mostra que esse pode ser importante caminho a ser desenvolvido: a intercooperação por ramo de atividades. Buscar novos mercados para produtos de maior valor agregado pela via da diferenciação de produtos, com o uso da marca registrada ‘‘Produtos da Terra’’, ou pela via de preços menores parece ser alternativa interessante. No Estado do Rio Grande do Sul, a Cooperativa Regional dos Agricultores Assentados (Cooperal) desenvolveu sementes agroecológicas Bionatur, em que não foram usados agrotóxicos ou qualquer substância tóxica ou agressiva ao homem ou à natureza no seu cultivo, na pós-colheita ou em seu enlatamento. Observa-se preocupação crescente no desenvolvimento da agricultura orgânica como uma alternativa à agricultura tradicional, que utiliza agrotóxicos, ou à transgênica. Estudo desenvolvido por Cadore (1999) analisa a viabilidade da produção de arroz agroecológico pela cooperativa Coopan, no Estado do Rio Grande do Sul. Outra estratégia é a diversificação da produção. As cooperativas não apenas podem elevar seus rendimentos, garantir um fluxo de caixa com receitas ao longo do ano, garantir renda nos períodos de flutuações na demanda ou por perda da colheita…, mas também tendem a reduzir a mão de obra ociosa nos assentamentos. A diversificação intensiva, porém, no atual estágio de desenvolvimento das cooperativas, pode acarretar perda de foco do negócio. Nesse sentido, a adoção de algumas normas técnicas de produção vem sendo introduzida gradativamente no processo produtivo e administrativo (Christoffoli, 1998), ao mesmo tempo em que se percebe, pelos depoimentos dos dirigentes do MST, da Concrab e de diversas CPAs, uma preocupação com o desenvolvimento do cooperativismo autêntico no interior da organização, sem ter de reproduzir a organização taylorista do trabalho, centralizadora e excludente.
De fato, para alcançar a eficácia nas decisões tomadas, além do acerto na tomada de decisão, é necessário ter a adesão de todos os que vão executá-la. No entanto, um dos maiores desafios para os EES é encontrar mecanismos de poder e de decisão equilibrados, que atendam às exigências essenciais da democracia e da eficácia organizacional (Christoffoli, 1998; Eid e Pimentel, 1999; 2000). Para garantir esse equilíbrio, os dirigentes da Concrab entendem que a formação e a capacitação devem ser continuamente desenvolvidas entre os cooperados, em todos os níveis hierárquicos — dirigentes, coordenadores e base (Gonçalves, 1999, p. 97). Observa-se que normalmente se faz presente forte possibilidade de diluição de responsabilidades dos cooperados na gestão e no trabalho da cooperativa. Onde isso se verifica, pode ocorrer que não se estabeleça a responsabilidade de quem atua com desleixo ou ineficiência no processo produtivo e no gerenciamento, assim como também não ocorra o reconhecimento e estímulo dos que desempenham sua função de forma a cumprir ou superar as expectativas. Christoffoli conclui, em sua análise, que há necessidade de definir claramente as atribuições e níveis de autoridade e responsabilidade dos coordenadores e das instâncias de base. Caso isso não ocorra, os coordenadores podem não se sentir respaldados em assumir o ônus das decisões operacionais que lhes caberia. O efeito disso pode ser a morosidade na tomada de decisões, afrouxamento no ritmo e na produtividade do trabalho e dissolução da hierarquia funcional.
Conclusão
A lógica da economia solidária é oposta à do mercado globalizado. Este, em sua perseguição pelo lucro máximo, separa-se de questões não econômicas. Tradicionalmente a globalização e seus impactos sobre o setor agrário são interpretados como um processo de padronização de políticas de fazenda, com maior expansão das fronteiras agrícolas, medidas uniformes de proteção ambiental, aumento da competitividade e da produção e comercialização de alimentos com controle cada vez maior de firmas transnacionais sobre a cadeia produtiva.
Contudo, longe de conduzir à homogeneidade, a globalização pode oferecer a oportunidade de repensar a diversidade local e pode ajudar comunidades locais a encontrar novos espaços no mercado em uma economia global nova ou a resistir às pressões globais (McMichael, apud Levi, 2000, p. 2). Nem os valores clássicos nem os princípios podem prover meios suficientemente resistentes à ameaça do paradigma neoliberal. Isso implica ir além da doutrina convencional sobre cooperativismo e recorrer à variedade de formas sociais e culturais que a comunidade espera sejam adotadas pelas cooperativas, principalmente as rurais (Levi, 2000, p. 13).
Procurou-se mostrar que, no Brasil, a dinâmica interna de organização social e produtiva e os desafios e alternativas desenvolvidos pelas cooperativas de produção agropecuária do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra nos levam a concluir que elas fazem parte da economia solidária, em processo de gestação em diversas regiões do país. No estágio atual de desenvolvimento de nossa pesquisa, observamos que, no interior do MST, na prática, há uma preocupação crescente de diversos dirigentes de CPAs localizadas em diversos Estados, principalmente na Região Sul do Brasil, em buscar o equilíbrio crítico entre, por um lado, a ampliação dos ganhos sociais e políticos — resgate da dignidade e apoio às lutas dos trabalhadores — e, por outro, a melhoria da eficiência na gestão das cooperativas, buscando a sobrevivência e o crescimento, a fim de evitar que um descompasso possa levar à ruptura da coesão social. Dada a importância desse objeto de estudo, ressaltamos a relevância do desenvolvimento de estudos de caso concretos e a necessidade de que sejam evitadas generalizações abstratas, deslocadas da realidade social e política dos assentamentos. Os estudos devem levar em consideração, pelo menos, três outros elementos na condução da análise: a estrutura fundiária diferenciada em cada região do país, trajetória social e política dos assentados e o papel dos organismos governamentais em cada região.
BIBLIOGRAFIA
AZEVEDO, E. A maioria no campo vive abaixo da linha da pobreza. O Estado de S.Paulo, 22/11/1998. Geral, p. A-17.
CADORE, E. A. “A matriz tecnológica nos assentamentos do MST”. Curso de Especialização em Administração de Cooperativas. Brasília: Iterra: Unisinos: UnB, 1999.
CHRISTOFFOLI, P. I. “Eficiência econômica e gestão democrática nas cooperativas de produção coletiva do MST”. Curso de Especialização em Cooperativismo. São Leopoldo: Cedope: Unisinos, 1998.
CONCRAB. “Sistema Cooperativista dos Assentados”. Caderno de Cooperação Agrícola, 1998.
______. “Cooperativas de produção: questões práticas”. Caderno de Formação, v. 2, n. 21, 1996.
______. “Revista Concrab: quatro anos organizando a produção”. Revista Brasil, São Paulo, 1996b.
EID, F. et al. “A dinâmica recente da organização social e produtiva em cooperativas de reforma agrária”. Congresso Brasileiro de Economia e Sociologia Rural, 36º, 1998, Poços de Caldas. Anais… Poços de Caldas, 1998, pp. 767-778.
EID, F.; PIMENTEL, M. E. B. “A dinâmica da organização da produção em cooperativas de reforma agrária”. Congresso Brasileiro de Economia e Sociologia Rural, 37º, 1999, Foz do Iguaçu. Anais… Foz do Iguaçu, 1999.
______. “Dinâmica da organização social e produtiva em cooperativas de reforma agrária no Brasil”. World Congress of Rural Sociology, 10º, 2000, São Paulo. Anais… São Paulo, 2000.
FAO; INCRA. Principais fatores que afetam o desenvolvimento dos assentamentos de reforma agrária no Brasil. Coordenação de Gilson Alceu Bittencourt et al., 1998.
GAIGER, L. et al. “A economia solidária no RS: viabilidade e perspectivas”. Cadernos Cedope, São Leopoldo, nº 15, 1999. Movimentos Sociais e Cultura.
GONÇALVES, B. V. “A lógica de construção das cooperativas de prestação de serviços”. Curso de Especialização em Administração de Cooperativas. Brasília: Iterra: UnB, 1999.
GUMIEIRO, A. “Uma análise das desistências das famílias associadas na Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória Ltda. — Copavi (Paranacity/PR)”. Curso de Especialização em Administração de Cooperativas. Brasília: Iterra: Unisinos: UnB, 1999.
KUNZ, M. F. B. “Intercooperação das unidades de beneficiamento de erva-mate dos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná”. Curso de Especialização em Administração de Cooperativas. Brasília: Iterra: Unisinos: UnB, 1999.
LEVI, Y. “Globalization and the ‘cooperative difference’”. World Congress of Rural Sociology, 10º, 2000, São Paulo. Anais… São Paulo, 2000.
PASQUETTI, L. A. “O MST como uma empresa social”. Estudos 2, Presidente Prudente: Unesp/Nera, nº 12, 1998, pp. 33-50.
SINGER, P. “Possibilidades da economia solidária no Brasil”, in: CUT BRASIL. Sindicalismo e economia solidária: reflexões sobre o projeto da CUT. São Paulo: CUT, 1999, pp. 51-60.
[1] Pesquisa desenvolvida no Programa de Estudos sobre Agricultura e Desenvolvimento Sustentado (Progesa/Uerj) para o Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (Nead) do Ministério da Política Fundiária.
[2] O espírito empresarial se desenvolve com aplicação de ferramentas como gerenciamento, planejamento, capacitação, eficiência e viabilidade econômica.
[3] Por espírito solidário entende-se o desenvolvimento prático de valores como cooperação, autogestão, democracia e propriedade comum.
[4] Programa de Crédito Especial da Reforma Agrária, extinto em 1999.
[5] O MST considera que a evolução de uma CPA se dá por meio de três etapas, não necessariamente sequenciais e com coexistência de mais de uma etapa: a) produção agrícola para subsistência; b) comércio de excedente; c) agroindústria.
Farid Eid; Andréa Eloisa Bueno Pimentel