Publicado em número 143 - (pp. 9-12)
Rito e símbolo (curando a cisão humana)
Por Maria Elci S. Barbosa
“Um fenômeno religioso somente se revelará como tal com a condição de ser apreendido dentro de sua própria modalidade, isto é, de ser estudado à escala religiosa. Querer delimitar esse fenômeno pela fisiologia, pela psicologia, pela ciência econômica, pela linguística e pela arte etc. é traí-lo, é deixar escapar precisamente aquilo que nele existe de único e de irredutível, qual seja, o seu caráter sagrado” (M. Eliade. Tratado de história das religiões. Lisboa: Cosmos, 1977, p. 17).
Assim Mircea Eliade apresenta o fenômeno religioso no seu extenso estudo a respeito do assunto. O sagrado define o religioso. Mas, o que é o religioso e o que é o sagrado?
1. O ser humano e a religião
Religião, pela sua própria definição etimológica, tem o sentido de tornar unir (religare), e de trazer de novo à mente. Tornar unir pressupõe algo que em algum momento já esteve unido, e hoje não está mais, algo que está além do homem, que transcende a ele, mas que também está nele. Trazer de novo à mente, por sua vez, significa, no entender de Jung, a observação cuidadosa e a consideração tanto dos fatores básicos, como dos fatores invisíveis e incontroláveis da vida. (Considerar = considerar = levar em conta a posição das estrelas.)
Essa observação cuidadosa, essa consideração a cerca da vida constitui um comportamento básico no ser humano. Pode-se mesmo dizer que a religião é então um comportamento instintivo característico do homem, cujas manifestações podem ser observadas através dos tempos em todas as histórias das mais diversas culturas.
Desde os tempos imemoriais o homem se extasiava diante das manifestações da natureza e das manifestações de sua própria alma ou mente. A partir da busca da compreensão de si mesmo e do mundo, da consideração em relação aos fatos incontroláveis e desconhecidos, o ser humano nos mais diversos cantos do planeta foi estruturando a sua religião, e consequentemente encontrando um caminho significativo para sua existência. Os homens criaram histórias explicativas acerca da origem das coisas, de sua própria origem, e do mundo; e essas histórias, sempre repletas de deuses e semideuses, eram contadas e recontadas através de celebrações e ritos especiais. O ser humano, então, ao participar dos ritos e das celebrações se percebia participante de sua história e, ainda, sua história individual era a História da Humanidade e dos deuses que transcendem os seres humanos. Ao longo dos tempos, a religião levou o homem a redimensionar sua relação consigo mesmo e com todo o universo que o rodeia, nos mais diversos níveis, integrando-o na Vida.
As histórias das origens não eram simples histórias, mas eram sagradas, pois contavam a história do Homem, sua relação com os deuses e com os mistérios da vida e da morte. Elas permaneciam através dos tempos para além do tempo individual. A forma que essas histórias sagradas encontraram para falar aos homens no mais profundo do seu ser foi através da imagem e linguagem simbólica — através dos tempos que emergiam do próprio inconsciente do homem.
2. A linguagem dos símbolos
O símbolo, ou symbolon, era inicialmente um sinal de reconhecimento de um objeto cortado em duas metades, cujo confronto permitia aos portadores de cada parte reconhecerem-se como irmãos, e acolherem-se como tais. Mesmo compreendendo só parcialmente o símbolo, o indivíduo ao contactuar-se com ele sente-se tocado, vivificado e suas energias revigoradas.
Para a psique humana o símbolo significa uma imagem que contém dados conscientes e inconscientes. Ele é um elemento de ligação e de mediação entre os aspectos percebidos e conhecidos do indivíduo, os aspectos conscientes, e os aspectos desconhecidos, inconsciente. No nível inconsciente a imagem simbólica se vela com os mistérios da vida, com o inconcebível, ou inimaginável; e no nível consciente se desvela como um significado vivo que o ser humano (ou o homo religiosus) pode perceber, considerar e refletir sobre.
Então, a observação da própria vida levou o homem à busca de sua origem e significado de sua existência. Para que ele lembrasse sempre disso e não esquecesse de sua integração com o universo, passou a executar rituais que o mantivessem atento à sua vida interior e exterior. E o homem encontrou em si mesmo a linguagem simbólica — o símbolo — como a melhor forma para expressar esse fato. Sendo, pois, o símbolo a melhor descrição possível de um fato relativamente desconhecido, ele tem a capacidade de mobilizar o indivíduo no seu âmago, fazendo-o sentir-se íntegro, uno, vivo. É o símbolo, vivência com significado, que nos coloca de encontro com o nosso eixo, com vontade de viver.
3. O desabrochar da consciência
O ser humano, ao que parece até agora, é o único ser deste planeta que pode perceber seu significado, que desenvolveu consciência. O desenvolvimento da consciência é sem dúvida um evento ímpar e de suma importância para o homem. A partir do momento em que o homem comeu o fruto da árvore do conhecimento ele se viu. A consciência de si mesmo, do eu, começou seu trajeto de desenvolvimento, de ampliação cada vez maior e mais diferenciada. Porém, esse mesmo evento que possibilitou e possibilita ao homem viver significativamente, foi ao longo do tempo adquirindo uma importância maior que o espaço da psique permitia. Ao se desenvolver como Ego, como Eu, o homem foi esquecendo seu outro lado, o desconhecido, o misterioso, o inconsciente, que apesar disso continuou a existir.
O homem, perdendo sua ligação com o inconsciente, acreditando, ao nível mental (que ele confunde com consciência) que tudo sabe, ou que o desconhecido inexiste, torna-se desvinculado ou desligado de suas raízes mais profundas e da energia vivificadora que aí existe. A consciência não pode ser confundida com o saber, a ciência, o conhecimento intelectual e racional. A consciência não se define somente pela capacidade de raciocínio, mas também ou principalmente, pela reflexão. Por reflexão entende-se, no mais das vezes, o aspecto crítico do pensamento, ou ainda um exercício mental de premissas e conclusões. Na verdade, reflexão é mais uma atitude interna do que um exercício do intelecto. Derivada do latim, a palavra reflexão significa “dobrar-se, curvar-se para trás, ou novamente”, além de “espelhar, revelar”.
A consciência, pois, reflete, espelha e revela aspectos mais profundos do ser humano. Ela também possibilita que o homem, diante de sua história sagrada e dos seus símbolos, se curve ou se dobre diante daquilo que lhe é desconhecido, misterioso e maior que a sua própria compreensão. Para viver significativamente e com consciência, o ser humano precisaria evitar a híbris — o orgulho de si mesmo — a inflação do seu próprio eu, acreditando que porque ele pensa, ele existe e tudo conhece. O medo do desconhecido leva-o à pretensão de tudo saber. Assim ele quebra sua integridade, e colocando tantas barreiras intelectuais e obstáculos, não permite mais que o rio da vida flua dentro de si.
4. A perda do inconsciente e suas consequências
Parece que nos últimos tempos, com o desenvolvimento das ciências em geral, o homem afastou-se dos mistérios da vida, afastou-se de sua história sagrada e da sua própria, sentindo-se dono do saber, perdendo a capacidade real de reflexão.
O processo do conhecer é um processo de poder. Ser conhecedor significa dominar o objeto conhecido. O ser humano, acreditando conhecer o átomo, e daí toda a física, e acreditando conhecer sua origem através das teorias evolucionistas e daí toda Origem e toda a Vida, foi dissociando-se daquilo que parecia mais primitivo e irracional. Até mesmo a intuição, tão necessária ao campo da pesquisa científica, foi bravamente combatida em nome do conhecimento racional, lógico. Ocorre que, dessa maneira, o Ego, o Eu, acabou por desvincular-se do resto da psique, quebrando a harmonia existente. O indivíduo passou a agir como senhor do mundo e dos mundos, decorrendo daí um dos problemas mais graves da humanidade atual: a cisão entre a consciência e o consciente; a cisão, no dizer da teoria junguiana, entre o Ego e o Self, e poderíamos dizer, a cisão entre o Homem e Deus.
É através da consciência, dessa capacidade de reflexão que, diante dos fatos da vida, o homem pode atuar de maneira significativa e íntegra. Mesmo desconsiderando o inconsciente, seus conteúdos continuam a emergir. Sem a reflexão eles não podem ser apreendidos, nem reconhecidos. Havendo um predomínio da razão, o indivíduo desconsidera esse conteúdo, e ainda raciocina e julga estar certo, estar, como se diz, com a razão. Sim, na verdade ele está com a razão, mas só com ela e nada mais. Os outros conteúdos psíquicos passam a agir autonomamente repletos de emoções que o indivíduo desconhece. Aí está, em grande parte, a origem das neuroses.
A decorrência desse processo de cisão é que os ritos tornam-se vazios de significado. Os símbolos que neles existiam desde os tempos primordiais deixam de ter significado para o indivíduo, passando a ser apenas um sinal. Os ritos perdem, então, a força da linguagem simbólica para se tornar uma sequência de formas desprovidas de qualquer sentido. E o homem, atualmente, ao sentir-se abandonado pelos deuses, esquece que ele próprio os abandonou.
5. A função dos ritos
Segundo Jung, a tarefa do homem é conscientizar-se dos conteúdos que o pressionam para cima, vindos do inconsciente. Pode-se até presumir que assim como o inconsciente nos afeta, o aumento de nossa consciência plena também afeta o inconsciente. Essa parece ser mesmo a dinâmica da evolução do ser humano, individual e coletivamente.
Os ritos inicialmente também forneciam ao homem um caminho seguro para a acomodação das forças incontroláveis e desconhecidas do inconsciente. Assim, os símbolos contidos nas religiões, e mais especificamente nas suas celebrações, forneciam de um lado a possibilidade de acomodação das forças inconscientes, e, de outro, através dos ritos, “modelos” para a conduta do indivíduo, conferindo-lhe significação e valor à existência. Era através dos rituais que as pessoas podiam reviver os aspectos mais significativos de sua história e do povo a que pertenciam. Assim os ciclos da natureza, como a semeadura e a colheita, eram reverenciados. O nascimento, as iniciações, o casamento, a puberdade, a morte, eram todos momentos sagrados. Havia mesmo uma tribo asiática na qual as mulheres costumavam, durante o plantio do arroz, contar para esse a sua origem. Elas, então, passavam vários dias no arrozal contando para os pequenos pés plantados a história da origem do arroz, pois acreditavam que se eles soubessem a própria história, podiam crescer mais vigorosos. A função do rito é, consequentemente, sair do tempo profano para adentrar um tempo sagrado. E não se pode realizar um ritual a menos que se conheça a sua “origem”, isto é, a história que narra como ele foi efetuado pela primeira vez.
O símbolo religioso se liga, pois, ao passado (às origens) considerando-o de modo bastante reverencial; ele reatualiza o passado no rito presente, dando sentido e significado aos fatos cotidianos do indivíduo, e ainda, mantém-no aberto ao futuro através da energia criativa liberada nesse processo. Então, passado, presente e futuro acontecem como processo e como síntese na vivência das imagens simbólicas.
As celebrações e rituais que perderam a característica de manter o símbolo vivo e atuante, tanto no nível consciente como no nível inconsciente, passaram a ser um conglomerado de gestos e fórmulas vazias.
Essa cisão do consciente inconsciente no homem moderno leva-o a outras como, por exemplo, a cisão entre racional e emocional, entre corpo e alma, causando-lhe feridas profundas que se refletem em todos os seus relacionamentos. O indivíduo acaba por sentir-se extremamente só, sem condições de estabelecer qualquer vínculo significativo. Isso ocorre basicamente porque ele não consegue mais estabelecer vínculos consigo mesmo, nem com sua história sagrada. Sentindo-se sem significado, o homem se apercebe como um robô, à mercê dos joguetes sociais, completamente incógnito e impotente. Mas, como vimos, os processos inconscientes continuam existindo, e o impulso para encontrar seu significado, para se “religar”, continua em sua alma.
6. Conclusão
As celebrações e ritos encontrados nas religiões institucionais parecem não estar respondendo a esse anseio da alma humana. Na verdade elas também estão cindidas. Elas perderam, ao longo de sua trajetória histórica, o contato com o mistério, com o divino. Talvez isso tenha sido a partir do momento em que se julgaram muito potentes com o próprio saber. Enfim, se elas assim se apresentam ao indivíduo, elas não mais podem fornecer-lhe caminhos para o restabelecimento de seus vínculos, sejam eles pessoais ou divinos. Elas não funcionam mais como religião no sentido aqui analisado.
Diante desse quadro atual, fica, pois, para cada ser humano, individual e coletivamente, a necessidade de busca de uma consciência cada vez mais ampla, aceitando os mistérios da vida e o não controlável; de viver significativamente a sua história que é sagrada, possibilitando, enfim, o renascimento do homo religiosus.
Maria Elci S. Barbosa