Publicado em número 202 - (pp. 2-9)
Novidade do Espírito: novidade “corporificada
Por Profª Maria Clara L. Bingemer; Profª Margarida Luiza R. Brandão
Pela lei fundamental da Encarnação que rege o Cristianismo, o Espírito não é algo que tire o ser humano do chão da história onde está plantado por sua carne e sua corporeidade. Pelo contrário, nada tem de uma força diluidora e falsamente espiritualizante. E um dinamismo que tende para o corpo. Corpo do homem e da mulher; corpo de Cristo; corpo desta comunidade chamada Igreja[1].
Falamos da Igreja Católica como povo de Deus que trabalha, que interage nos mais distintos grupos e comunidades, que não se fecha dentro dos limites institucionais da Igreja, mas vive a realidade plural de nosso tempo, na fidelidade à sua própria identidade. Identidade que é o ponto de referência para articular os diversos enfoques necessariamente multidisciplinares para captar a realidade do mundo em que vivemos.
Um mundo no qual a vida humana — na sua multiforme variedade de pessoas e povos de gênero, raça, classe, cultura e religião diferentes — não pode ser pensada fora de uma dimensão planetária e cósmica. Esta não é uma constatação meramente estática de fatos que podem ser comprovados de diversas maneiras, mas uma tomada de consciência dinâmica que assume esta realidade plural, procurando nela descobrir valores.
Nos últimos anos têm aumentado os estudos a esse respeito[2]. Muitos deles levam em conta a existência do pluralismo como um fato e um valor do mundo de hoje (cf. GS 44; LG 32). Ao lado da crise de paradigmas, da perspectiva holística e da ecologia, o pluralismo ajuda na compreensão do contexto no qual elaboramos nossa reflexão teológica sobre o Espírito Santo.
Analisando os diferentes paradigmas encontrados na história da teologia, João Batista Libânio assinala a mesma raiz etimológica em holística e católica: holos (todo, total). A holística é uma cosmovisão que privilegia a interconexão, a interligação de todas as realidades, através de uma teia infindável de relações[3]. A palavra “católica” provém do grego (katho’lon) e tem o significado de universal, com o sentido de “segundo a totalidade”[4].
Ela indica que a catolicidade da Igreja tem, em primeiro lugar, uma dimensão de plenitude qualitativa vertical e, em segundo lugar, uma dimensão de plenitude quantitativa horizontal extensiva. Enquanto Corpo de Cristo, a plenitude da Igreja está ligada à plenitude de Cristo (cf. LG 23, CIC 830). A Comissão Teológico-Histórica do Grande Jubileu recupera um belo texto de Máximo, o Confessor, que expressa a dimensão extensiva da catolicidade da Igreja: “Homens e mulheres, jovens profundamente divididos no que diz respeito à raça, nação, língua, classe social, trabalho, ciência, dignidade, bens (…) todos eles, a Igreja os recria no Espírito”[5].
Como sinal e fermento de universalidade, diante do pluralismo religioso, a Igreja tem consciência de que a experiência religiosa de mulheres e homens não está alheia às mediações históricas, porque o Evangelho é uma boa nova para toda a humanidade. Na força do Espírito, como vínculo de unidade entre Deus e o mundo, a Igreja é sinal universal de salvação, no diálogo com a sociedade e as outras religiões[6]. Essas mediações, em diálogo com a fé cristã, nos fazem captar com mais clareza que o tempo histórico não é uma sucessão de fatos desconectados, mas um kairós, no qual acontece a experiência do Espírito. Experiência cuja dimensão corporal nem sempre foi muito valorizada dentro da Igreja. Houve, marcando a espiritualidade cristã, toda uma espiritualidade de desprezo do corpo, de mortificação do corpo que, mal entendida, levou a uma equivocada concepção do mesmo corpo como coisa menor, menos elevada, obstaculizante ou contrária à experiência espiritual.
É colocando-se contra esse tipo de concepção que — queremos afirmar — o Espírito vem suscitando algo novo dentro da Igreja, que vai justamente valorizar e colocar em destaque a corporeidade. Nossa reflexão teológica — com sua dimensão de experiência, de estudo e contemplação — engloba três momentos que se interrelacionam. O primeiro mostra a relação entre o Evangelho e o “outro” como paradigma. O segundo segue o caminho da corporeidade da “outra”. O terceiro percebe a novidade da fé do outro.
1. O outro como paradigma
A vivência cotidiana da espiritualidade cristã implica uma proximidade cada vez maior com o Evangelho, para que ilumine nossa vida, na busca do Reino de Deus. É uma procura que supõe idas e vindas, a partir de nossa experiência pessoal e comunitária e das perguntas de nosso tempo (cf. Sl 121,8). O Evangelho nos ensina como o Espírito Santo é fonte de espiritualidade cristã e anima o empenho ético de começar pelo outro, de escolhê-lo como paradigma. “Em tempos de mudança de paradigmas, há uma chance maior de começar tudo de novo, desde a experiência humana do outro até a costura coerente de uma ‘cultura da solidariedade’. A ética é a ótica, um modo de conhecer e de agir em todas as coisas”[7].
A designação de Paráclito para se referir ao Espírito Santo aparece em cinco sentenças que se encontram nos discursos de despedida de Jesus, nos capítulos 14-16 do Quarto Evangelho e na Primeira Epístola de João (cf. Jo 14,16s.26; 15,26s; 16,7b-11.13.15; 1Jo 2,1)[8]. Nessas sentenças, o Paráclito é descrito como advogado, como memória, como fonte de ensinamento, como Espírito de verdade, como testemunha e como anunciador das coisas futuras.
Jesus promete um “outro Paráclito” que o Pai enviará em seu nome e que permanecerá para sempre com os discípulos (cf. Jo 14,16). Com esta expressão singular “outro Paráclito” o evangelista o caracteriza como uma assistência permanente aos discípulos, como “continuador” e “representante” depois da partida de Jesus. Ela indica que o Jesus Histórico apresenta-se como um Paráclito durante sua atividade terrestre (cf. 1 Jo 2, 1, Jo 3,2; 8,29; 17,2)[9].
De maneira especial em Jo 14,26, Jesus afirma que “o Parácl ito, o Espírito Santo” será enviado pelo Pai em seu nome, como sua memória e como fonte de ensinamento a seus discípulos. Essa afirmação indica que o Paráclito é chamado de Espírito Santo porque esta era a designação habitual do cristianismo primitivo (cf. Jo, 1,33; 20,22). Essa sentença fala do envio do Espírito Santo assim como Jesus foi enviado pelo Pai. Essa forma de expressão só tem dois lugares equiparáveis no NT: Gl 4,4 e 1Pd 1,12). A passagem paulina coloca na mesma linha o envio do Filho de Deus “nascido de uma mulher” e o envio do Espírito Santo[10].
O título de Paráclito para designar o Espírito Santo remonta, pois, aos começos da fé cristã e este conhecimento nos autoriza a seguir meditando sobre o Espírito como outro Paráclito, que ilumina e guia as comunidades cristãs no seguimento de Jesus Cristo através da história, com Espírito de sabedoria (cf. 1Jo 2,27; 1Cor 2,10,12; Ef 1,17; 1Tm 4,1; 2Tm 1,14; Hb 10,15)[11]. Espírito e sabedoria são duas realidades convergentes e relacionadas nos escritos tardios do AT, e o NT assume essa compreensão, especialmente no Evangelho de João[12].
No diálogo de Jesus com Nicodemos, nós lemos: “Em verdade, em verdade, eu te digo: ninguém a não ser que nasça da água e do Espírito, pode entrar no Reino de Deus. O que nasceu da carne é carne, o que nasceu do Espírito é espírito. Não te admires de eu te haver dito: deveis nascer do alto. O vento sopra onde quer e ouves o seu ruído, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com aquele que nasceu do Espírito” (Jo 3,5-8).
O ensinamento dado por Jesus aponta para a nova criação pelo Espírito de Deus (cf. Ez 11,19; 36,25s, Is 44,2-3; Jr 31,33). Aqui não há nenhum dualismo, mas o contraste entre a existência humana como criatura de índole terrestre e a espiritual que assume a humanidade e possibilita aos seres humanos alcançar sua vida própria, verdadeira e eterna. Como observa E. Johnson, este diálogo encerra uma metáfora maternal muito clara em relação ao Espírito. Aqui é comparado à mulher que, através do parto, dá à luz uma nova vida. Aqueles e aquelas que creem nascem verdadeiramente de Deus[13].
“O Espírito se manifesta a fim de que o Cristo oculto possa se tornar conhecido; sem ela, não há Igreja, não há comemoração nem salvação e não há futuro benévolo”[14]. A busca das coisas futuras, que nos serão ensinadas pelo Espírito-Sabedoria, “amigo, irmã, mãe e avó do mundo” nos orienta na construção de um relacionamento de solidariedade entre Deus e as criaturas humanas, delas próprias umas com as outras e com o cosmo, iluminando a compreensão da dimensão planetária da vida humana[15].
“A linguagem em relação ao Espírito em termos que designam o amor procedente, o amor mútuo, o dom oferecido livremente e nas imagens do amigo, da irmã, mãe e avó indica uma agenda para a vida humana: nós somos amados para também amarmos; recebemos os dons para também nos doarmos; tratados como amigos para nos portarmos em relação ao mundo como irmãos e irmãs, numa amizade que redime e liberta”[16].
Essa agenda para a vida humana, estabelecida a partir de nossa identidade cristã católica, orienta nosso discernimento. “A pergunta então se faz no seu núcleo sempre polêmico: Quem pode ser o sujeito histórico, aliado do Espírito e de Cristo? Uma Igreja? Um movimento? Um grupo? Uma liderança? Ou o conjunto das Igrejas, também da sociedade civil?”[17]. Ou os pobres e excluídos, dentre os quais as mulheres do mundo inteiro com seus filhos pequenos e pessoas idosas da família são os rostos mais numerosos?[18]
Essas perguntas e outras mais ainda subentendidas orientam nosso discernimento para assumir o outro como paradigma. Este é um chamamento para viver uma vida nova, revestindo-se de nova mentalidade, olhando o mundo e as pessoas dentro de nova perspectiva: “Assim se deduz, sobretudo, das despedidas de Jesus, particularmente segundo João. Pela experiência de uma vida em comum, pelo dom da última ceia e pela promessa do Paráclito — Parackletos, ‘Consolador’, ‘Animador’, ‘Advogado’ — nos invade a grande palavra de alento: ‘Permanecei no meu amor; permanecei em mim como eu em vós’. Nisso se fundamenta a verdadeira paráclesis, o mandamento fundamental: ‘Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei’” (Jo 15,4.9.12)[19].
2. O caminho da corporeidade da “outra”
Entre os “novos sujeitos” que emergem com força interpelante quando se fala da experiência do Espírito Santo, está, sem dúvida, a mulher. O corpo feminino é a condição de possibilidade do caminho pelo qual a mulher vem a ser uma novidade fascinante e ao mesmo tempo perturbadora quando se fala de experiência espiritual. Este corpo que, no entanto, tem sido muitas vezes a fonte da discriminação que a própria mulher sofreu e sofre na Igreja[20]. A maior discriminação contra as mulheres dentro da Igreja parece dizer respeito a algo mais profundo e muito mais sério do que simplesmente a força física, a formação intelectual ou a capacidade de trabalho.
As experiências místicas de muitas mulheres foram muitas vezes olhadas com desconfiança e suspeita, com severa e estrita vigilância de varões encarregados de controlá-las e exorcizá-las. Ao longo da história da Igreja, a mulher foi mantida a uma prudente distância do sagrado e de tudo o que o cerca, assim como da liturgia e dos objetos rituais, e da mediação direta com Deus. Tudo isso, evidentemente, requer um corpo “puro” — e, no que se refere ao corpo da mulher, há grande desconfiança a esse respeito. Apesar de todos os avanços e progressos que têm sido feitos na participação da mulher em muitos níveis da vida eclesial, ainda continua pesando sobre ela o estigma de ser a sedutora inspiradora de medo, fonte de pecado para a castidade do homem e o celibato do clero.
Esse é um dado bastante terrível, que demanda uma reflexão muito séria por parte da teologia. Pois, se é possível lutar contra a discriminação intelectual (pelo acesso aos estudos e à formação), contra a injustiça profissional (tentando mostrar competência e especializando-se), o que se faz com a própria corporeidade? Mais do que isto: deveriam as mulheres negar ou ignorar seu próprio corpo, seu especial e original corpo criado por Deus, a fim de capacitar-se a ser dignas de entrar em comunicação profunda com o Criador e ocupar seu espaço dentro da Igreja?
Lançando o olhar para a Igreja hoje, pode-se constatar que o Espírito vai suscitando o novo, fazendo com que, no campo da espiritualidade — portanto naquele específico campo onde se lida diretamente com a experiência de Deus e o sagrado — a presença de mulheres cresça de maneira notável[21]. Leigas ou religiosas, são incontáveis hoje no Brasil as mulheres que se dedicam à pedagogia espiritual: à pregação de retiros, acompanhamento espiritual de pessoas, e produção de material que ajude a organizar positivamente a experiência de Deus, a oração e a liturgia em seus mais diversos níveis. É notável o fruto que produzem essas mestras espirituais, que ajudam a tantos homens e mulheres, segundo o seu próprio sentir feminino de Deus e sua experiência do Espírito marcada pelo jeito feminino de ser.
Com essa prática concreta de introduzir e expor sua corporeidade “outra” ao falar da experiência do Mistério de Deus, as mulheres introduzem um “novo” no compreender da mística. E o Mistério de Deus, alterando, afetando e configurando a corporeidade criatural sexuada da mulher, revela outras facetas de si próprio que de outra maneira não poderiam fazer-se presentes ao Povo de Deus.
A corporeidade do outro — ou melhor, da outra — fonte de tantas suspeitas e preconceitos ao longo da história, é caminho tão antigo mas tão novo, poderosamente iluminador e inspirador para a mística cristã em tempos de novos paradigmas onde a questão do gênero se apresenta como uma das questões mais centrais.
3. A novidade da fé do outro
Assim como há algo que só o outro gênero, o outro sexo, pode ensinar em termos da novidade que o Espírito Santo suscita dentro da Igreja, há também, sem dúvida, algo que apenas a religião do outro, na sua diferença pode ensinar, ou chamar a atenção: às vezes um ponto ou uma dimensão que vamos descobrir na nossa experiência religiosa e do qual não nos havíamos dado conta. O caminho que se faz hoje na chamada “teologia das religiões” e no “diálogo interreligioso” nos convida a tomar a pneumatologia — ou reflexão sobre o Espírito Santo — como ponto de partida fecundo para perceber a novidade que o Espírito vai suscitando a partir da revelação da experiência de fé nas outras religiões[22].
O desejo universal de salvação de Deus encontra sua garantia no fato de que esse Deus é Espírito dado não somente à Igreja, mas à humanidade e a toda a criação. Mais: o desejo divino, expresso desde os primórdios da história do povo de Deus em termos de salvação e libertação plenas é reconhecido como o Espírito desse mesmo Deus derramado sobre toda a criação como Espírito de Vida[23].
A Revelação do Espírito Santo, ativo no meio do povo de Deus, permite discernir e reconhecer sua presença pela produção de vida. Quando o Espírito está ativo, a escuridão e a desordem do caos se tornam ordem e harmonia, o que era seco e morto revive. Toda vida, e não apenas a vida religiosa, sábia, moral e justa, é iniciada pela “ruach”, Espírito de Deus, que se revela como Mãe que inicia e ama toda vida.
A ausência do Espírito ou qualquer tentativa de restringi-lo, contristá-lo ou extingui-lo, por outro lado, resulta numa diminuição da vida e num aumento do poder predatório, destrutivo da morte.
Portanto, o Espírito é a única possibilidade de uma missão universal, assim como de um diálogo entre diferentes religiões que seja realmente fecundo e que comece e prossiga por este ponto comum: a vida. Neste momento da história da Igreja, o Espírito suscita o novo mostrando haver vida mesmo fora dos limites institucionais e confessionais da Igreja. Queremos, nos limites deste texto, perceber esta novidade vital nas assim chamadas três religiões monoteístas: o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Foi e é dito que nessas três religiões monoteístas se podem encontrar, vividas privilegiadamente, cada uma das chamadas — em termos cristãos — três virtudes teologais:
1. para o Islamismo, que vive sob o senhorio absoluto, transcendente e inquestionável de Allah, seria a fé;
2. para o Judaísmo, entendido para a frente e o futuro, penetrado em todas as suas dimensões pela expectativa messiânica, seria a esperança;
3. para o Cristianismo, que tem no centro de sua revelação o mistério da encarnação, de um Deus que se fez carne e se identifica com os mais desprovidos de vida (faminto, sedento, nu, prisioneiro, doente etc., cf. Mt 25,31-46) deveria ser a caridade, o amor concreto e efetivo que sai de si em êxodo permanente para ir ao encontro do menor e mais pequeno entre todos[24].
Não cabe aqui discutir até que ponto e em que medida essas afirmações e comparações são verdadeiras na prática. Desde o ponto de vista cristão, certamente teríamos muito a aprender com uma fé como a islâmica, clara, transparente e sem pudor de fazer-se pública pelos mais evidentes sinais externos. E é sintomático ou, no mínimo intrigante, verificar hoje em dia como nos espaços mais racionalistas do mundo ocidental — por exemplo na Europa Central —, o avanço do Islã começa a preocupar seriamente autoridades civis e religiosas. O excessivo pudor e a discrição — algo envergonhada — que a secularização pareceria haver introduzido na pessoa humana ocidental, e que tanto afetou e afeta as expressões religiosas, parece estar sendo desavergonhadamente posta em questão pelos muçulmanos, que, nas mais impensadas horas do dia, desenrolam seus tapetes, viram-se para Meca e inclinam o corpo até tocar o chão com o rosto, louvando a Allah. Se não é modelo a ser imitado, pelo menos deve ser modestamente observado. Trata-se de manifestação de fé que não se esconde e não se poupa, que não compõe com as tiranias da modernidade relativas a tempo e espaço, mas vai dando testemunho de que Deus é o único absoluto, maior até do que aquilo que toda uma civilização fez com ele[25].
Com relação aos judeus — juntamente com os cristãos —, têm como riqueza em comum — apesar de suas diferenças —, o chamado e a vocação da experiência de um Deus pessoal, imanipulável por parte do homem — que este multas vezes não consegue compreender.
Judeus e cristãos experimentam e nomeiam diferentemente este Deus que, para uns, se aproxima pela mediação da Torá, e para outros pelo assim chamado mistério da Encarnação. Não deixa de ser, no entanto, um Deus pessoal e totalmente Outro em sua santidade e sua vizinha distância, este que adoramos e somos chamados a testemunhar no meio do mundo de hoje.
Por outro lado e de outra forma, esse Deus no qual judeus e cristãos acreditamos, é o único capaz de ser portador de esperança em meio ao desespero prometeico atual. Enquanto a esperança judaica parte do não cumprido ainda e impulsiona em direção ao seu incipiente cumprimento, a cristã, a partir do cumprimento que crê alcançado em Cristo, ilumina aquilo que está dolorosamente não cumprido na criatura humana e no inundo.
De qualquer forma e em qualquer perspectiva, a esperança é como o ponto para onde se dirige o olhar de todo aquele ou aquela que faz a experiência do Deus da Bíblia. Israel é o fator intranquilizador da história universal, o fermento propriamente dito da história. Em virtude de sua essência profética, Israel converteu o idealismo filosófico e o evolucionismo científico num pragmatismo que impulsiona inexoravelmente para diante.
Enquanto cristãos, devemos ao judaísmo o aprendizado constante e profundo de uma transcendência claramente orientada para o futuro. Quando Israel rememora as grandes façanhas de Deus, seu propósito não é limitar-se a contemplá-las como uma realidade pretérita, mas, a partir delas, dar novo impulso à esperança que não desfalece. O reino messiânico está por vir, o futuro é abertura que permite ao homem, afogado pelo presente, respirar de novo.
Os judeus, projetados em direção aos tempos messiânicos, não esperam em vão como tantos cristãos ainda pensam — por um evento já acontecido há vinte séculos. A espera messiânica dos judeus tem todo o seu sentido também para um cristão que espera o retorno de seu Salvador, e que aguarda a Parusia.
Neste tempo no qual o Espírito Santo suscita o novo dentro da Igreja, a experiência desse Espírito não é senão a experiência do amor e da caridade que revolve as profundezas da humanidade pela presença e sedução da alteridade. Quando a alteridade é a religião do outro, há todo um caminho a ser feito em direção a uma comunhão que não suprime as diferenças, enriquecedoras e originais, mas encontra, na sua inclusão, um “novo” no qual se pode experimentar coisas novas do mesmo Deus.
No diálogo e no desejo de interlocução e encontro entre as religiões, experimenta-se o dilaceramento entre o amor e a verdade. Entre o desejo inaudito de ir ao encontro do outro e com ele aprender coisas que só o Espírito de Deus no outro pode ensinar. Mas fazê-lo sem perder a identidade da própria experiência.
Em suma, a experiência de um Deus pessoal e imanipulável, que as três religiões monoteístas ofereceram e oferecem como tesouro aos crentes de ontem e de hoje permite que, entre essas três tradições, se instaure um aprendizado fecundo que, nos dias de hoje, pode enriquecer e efetivamente enriquece não só a experiência cristã em si mesma, como também as reflexões teológicas que sobre ela se fazem. A novidade desse aprendizado e dessa fecundidade é divina novidade inspirada pelo Espírito Santo na Igreja[26].
4. Concluindo
Os três momentos do presente artigo — a relação entre o Evangelho e a escolha do paradigma do outro, o caminho da corporeidade da outra e do outro, a novidade da fé do outro — não foram reunidos aqui como meros temas de reflexão. Eles indicam passos que devemos palmilhar sempre, se queremos permanecer no Espírito e experimentar uma vida continuamente recriada.
Permanecer no Espírito é permanecer no amor. É descobrir que a verdadeira paráclesis se encontra na vivência do mandamento do amor mútuo, amor concreto e efetivo que coloca cada pessoa e a humanidade inteira no caminho da santidade. Um caminho que constrói uma cultura da solidariedade, um empenho ético de transformação da realidade, tecido por uma teia infindável de relações entre as criaturas, com a natureza, com o cosmo e com Deus.
Permanecer no Espírito é viver historicamente um processo de conversão, sempre em andamento, que exige de nós “encarnação” livre e consciente do universal na singularidade de cada experiência vivida.
[1] Cf. BINGEMER, M. Clara L., “‘Outro’ Paráclito. O Espírito Santo e a ‘diferença’ da mulher”, in Revista Eclesiástica Brasileira 56, fasc. 222 (1996), pp. 348-363; Id. “A alteridade e seus caminhos”, in FABRI DOS ANJOS, Márcio (coord.), Teologia aberta ao futuro, São Paulo, Loyola, 1997, pp. 21-46. Neste artigo vamos seguir de perto as reflexões aí elaboradas.
[2] Ver, entre outros: ARANGUREN, José Luiz, “El ethos católico en Ia sociedad actual”, in VIDAL, Marciano, Conceptos fundamentales de ética teológica, Madri, Trotta, 1992, pp. 31-33; AZEVEDO, Marcelo, “Cristianismo, uma experiência multicultural; como viver e anunciar a fé cristã nas diferentes culturas”, in Revista Eclesiástica Brasileira, 55, fasc. 220 (1995), pp. 771-787.
[3] Cf. LIBÂNIO, J. B., “Diferentes paradigmas na história da teologia”, in FABRI DOS ANJOS, Márcio (org.), Teologia e Novos Paradigmas, São Paulo, SOTER/Loyola, 1996, p. 47.
[4] Cf. Comissão Teológico-Histórica do Grande Jubileu do Ano 2000, Senhor, a terra está repleta do teu Espírito, São Paulo, Paulinas, 1997, p. 63.
[5] Ibid. p. 64.
[6] Cf. ibid., p. 73.
[7] SUZIN, Luiz Carlos, “Por uma ética da liberdade e da libertação. Panorama das questões éticas hoje”, in VV.AA., Por uma ética da liberdade e da libertação — Curso de verão — Ano X, São Paulo, CESEP-PAULUS, 1995, p. 70.
[8] Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf, El Evangelio según San Juan, Barcelona, Herder, 1980, pp. 177s, 190-195. A “figura” do Paráclito e o pano de fundo de sua concepção tem sido objeto de muitas investigações, mas escapa dos limites deste texto uma referência mais aprofundada a esse respeito. Cabe lembrar que as sentenças joaninas sobre o Paráclito desempenharam um papel importante na elaboração dogmática da doutrina do Espírito Santo.
[9] Cf. ibid., pp. 106-107; 179.
[10] Cf. ibid., p. 116.
[11] Ver BINGEMER, Maria Clara L., “‘Outro’ Paráclito. O Espírito Santo e a ‘diferença’ da mulher”, in REB/55 (1996) 222, pp. 348-363.
[12] Ver JOHNSON, Elizabeth, Aquela quer é. O mistério de Deus no trabalho teológico feminino, Petrópolis, Vozes, 1995, pp. 131-157; pp. 194-200.
[13] Ver JOHNSON, E., op. cit., p. 130.
[14] Ibid., p. 131. Como assinala E. Johnson, a tradição teológica de interpretação da Sagrada Escritura praticamente apagou da imaginação religiosa esta representação nitidamente feminina do Espírito como mãe.
[15] Cf. ibid., p. 217.
[16] Ibid.
[17] SUZIN, L. C., “O Espírito e a nova era”, in Revista Eclesiástica Brasileira 56, fasc. 222 (1996), p. 325.
[18] Ver BRANDÃO, Margarida L. R., “Gênero e experiência das mulheres”, in FABRI DOS ANJOS, M., Teologia aberta ao futuro, São Paulo, SOTER/Loyola, 1997, pp. 155-165. Id., “Diálogo entre ética teológica e direito: um marco de gênero na reflexão sobre direitos humanos”, in Revista Atualidade Teológica 1 (1997), pp. 70-84.
[19] HÄRING, Bernhard, “La ética teologica ante el III milenio del cristianismo”, in VIDAL, Marciano, Conceptos fundamentales de ética teológica, Madri, Trotta, 1992, p. 23.
[20] Cf. algumas obras sobre esta questão: J. DELUMEAU, História do medo no Ocidente, São Paulo, Companhia das Letras, 1991, especialmente os capítulos sobre “A diabolização da mulher”; I. GEBARA, As incômodas filhas de Eva, São Paulo, Paulinas, 1993; F. CARNEIRO e R. SOARES (org.), “Corpo: meu bem, meu mal. III Seminário de Teologia e Direitos Reprodutivos: Ética e Poder”, Programa Sofia: Mulher, Teologia e Cidadania, Rio de Janeiro, ISER, 1995.
[21] Cf. o trabalho de Delir Brunelli sobre Clara de Assis e o recente livro de Cettina Militello, Cristianesimo al femminile, Milão, Dehoniane, 1995, entre outros.
[22] Cf. F. COUTO TEIXEIRA, Teologia das religiões. Uma visão panorâmica, São Paulo, Paulinas, 1995, p. 78 ss., com precisas indicações e vasta bibliografia; J. DUPUIS, Vers une théologie chrétienne du pluralisme religieux, Paris, Cerf, 1997; M. FRANÇA MIRANDA, Um catolicismo desafiado, São Paulo, Loyola, 1997.
[23] Cf. BINGEMER, Maria Clara L., “A pneumatologia como possibilidade de diálogo e missão universais”, in F. COUTO TEIXEIRA (org.), Diálogo de pássaros. Nos caminhos do diálogo interreligioso, São Paulo, Paulinas, 1993, pp. 111-121.
[24] Esta afirmação deve-se ao Pe. P. H. KOLVENBACH, superior geral dos jesuítas, em conferência dirigida aos membros das Comunidades de Vida Cristã, reunidos em assembleia em Hong Kong, julho de 1994.
[25] Ver, para aprofundar isto que acabamos de dizer, o interessante e polêmico livro de K. ARMSTRONG, Uma história de Deus, sobretudo o cap. 7: “O Deus dos místicos”, pp. 215-259. Ver também R. BARTHOLO e A. E. CAMPOS (org.), Islã: o credo é a conduta, Rio de Janeiro, ISER, 1990.
[26] Cf. K. ARMSTRONG, Uma história de Deus, citado supra.
Profª Maria Clara L. Bingemer; Profª Margarida Luiza R. Brandão