Publicado em setembro-outubro de 2023 - ano 64 - número 353 - pp.: 6-11
Nova Humanidade em Cristo: entendendo a carta aos Efésios
Por Maria Antônia Marques e Shigeyuki Nakanose
A carta aos Efésios (Ef) foi escrita no fim do século I d.C. e dirigida a várias comunidades cristãs da Ásia Menor (hoje Turquia), região subjugada e explorada pelo Império Romano, movido pelos espíritos do mal – ganância, mentira, injustiça, discriminação, desigualdade, insensibilidade, libertinagem (Ef 4,17-32; 6,10-20). Nesse contexto, a carta exorta os fiéis à prática do Evangelho de Jesus Cristo crucificado (Ef 3,1-21), na luta por uma sociedade solidária e fraterna contra o mal: “Revistam-se do homem novo, criado segundo Deus, na justiça e santidade da verdade” (Ef 4,24).
Introdução
A carta aos Efésios, juntamente com Filipenses, Colossenses e Filêmon, é conhecida como “carta do cativeiro”, por dar a entender que Paulo se encontrava preso (Ef 3,1; 4,1; 6,19-20). Acredita-se que Paulo foi prisioneiro em Roma, entre os anos 61 e 63 d.C., e pode ser que nessa ocasião tenha escrito a carta a seus seguidores e seguidoras da cidade de Éfeso, capital da província romana da Ásia Menor, para instruí-los no projeto (mistério) salvador de Deus e na vida comunitária em Jesus Cristo.
No entanto, uma simples comparação da carta aos Efésios com as cartas protopaulinas (Rm, 1 e 2Cor, Gl, Fl, 1Ts e Fm) possibilita perceber que há grandes diferenças quanto ao estilo, vocabulário, teologia e orientação pastoral, levantando dúvidas sobre a autoria de Paulo.
1. Autor, destinatário e data
Os estudiosos apontam as seguintes características da carta em estudo:
a) Vocabulário: Ef contém 86 termos que não se encontram nas cartas paulinas. Desses, 34 estão ausentes em todos os outros textos do Novo Testamento.
b) Colossenses: a carta dirigida à comunidade de Colossas (cidade da Ásia Menor), escrita por um colaborador de Paulo, é a mais parecida com Ef, tanto na forma quanto no conteúdo.
c) Judeus e não judeus: Ef não trata do grave conflito entre judeus e não judeus, descrito nas cartas paulinas – por exemplo, em Filipenses (cf. Fl 3,2) –, o que indica uma realidade do fim do século I d.C.
d) Escatologia: Ef não espera a vinda iminente de Cristo, como Paulo acreditava. Essa expectativa tinha enfraquecido, e as comunidades precisavam se organizar e se adaptar para sobreviverem dentro do império (cf. 1 e 2Pd).
e) Cartas católicas: Ef tem relações significativas com as cartas católicas (Tg; 1 e 2Pd; 1, 2 e 3Jo; Jd), escritas entre os anos 90 e 110 d.C., bem posteriores ao apóstolo Paulo.
f) A menção a Éfeso como destinatário falta em muitos manuscritos importantes de Ef, o que faz pensar em uma carta-circular aos cristãos da Ásia Menor, por volta do ano 90 d.C.
Esses dados são suficientes para afirmar que Paulo não escreveu a carta aos Efésios. Essa carta-circular possivelmente foi enviada a várias comunidades no fim do primeiro século, no contexto de exploração e dominação do Império Romano.
2. Conhecendo a realidade
O livro do Apocalipse de João, escrito no fim do século I d.C. na Ásia Menor, descreve a exploração econômica da região pelos “mercadores da terra” (o Império Romano). Estes estavam explorando e levando a riqueza da terra para a capital do império: “Carregamento de ouro e prata, de pedras preciosas […], vinho e azeite, flor de farinha e trigo, bois e ovelhas, cavalos e carros, escravos e vidas humanas” (Ap 18,12-13). O último trecho – “cavalos e carros, escravos e vidas humanas” – aponta e simboliza o regime econômico e político do Império Romano: uma sociedade escravagista, controlada por um exército poderoso e violento (Ap 6,1-8). A dominação começa com a terra: a maioria das terras da Ásia Menor pertencia ao império, o que gerava a cobrança sistemática de impostos e o monopólio do comércio (Ap 13,11-18).
A maioria da população local estava submetida à escravidão, decorrente da exigência de impostos, do comércio abusivo e das várias formas de violência. O duro trabalho nas fazendas (“ovelhas”), nas minas (“prata”, “pedras preciosas”) e nas fábricas (carroças e carros puxados por cavalos) enfraquecia e empobrecia o povo. O sofrimento aumentava ainda mais com a dominação cotidiana do império no ambiente social e cultural da Ásia Menor, subjugação que se manifestava com as seguintes características:
a) O patronato. O sistema de patronato, ou clientelismo, funcionava como uma pirâmide e era marcado pela “troca” de favores entre as pessoas, criando verdadeira teia de influência e poder. Quando o patrono rico favorecia o cliente que tinha menor poder ou riqueza, essa prática gerava dependência e submissão, porque a pessoa mais pobre se sentia grata e devedora de favores ao poderoso. O patronato permeava todas as relações dos membros da “família”: marido e esposa, pai e filho, patrão e escravo etc. (Ef 5,21-6,9). O imperador, denominado pater patriae, era a figura máxima da sociedade patronal. Ele controlava e submetia toda a população conquistada pelo Império Romano.
b) A helenização, baseada no dualismo da cultura helenista (Deus e o mundo). O império alimentava o espírito da helenização ou romanização, marcado pela busca desenfreada de bens, prazer e honra. Tal busca provocava a libertinagem ética e social, que se traduzia em ignorância, insensibilidade, paixão enganadora, mentira, injustiça, difamação, roubo, conflito, violência (Ef 4,17-5,30).
c) A religião imperial. O poder do império era legitimado pela religião oficial. O culto aos imperadores, por exemplo, era celebrado nos templos das cidades da Ásia Menor (Ancira, Pessinunte, Antioquia da Pisídia etc.), fortalecendo o domínio do império mediante o poder e o carisma do imperador, considerado divino. No culto, o evangelho, a “boa-nova” de César Augusto, o senhor do império e da terra, era proclamado, exaltando o império e o imperador por estabelecerem na terra a paz e a salvação: a pax romana. O evangelho imperial era oposto ao de Cristo Jesus, por meio do qual Deus Pai revela seu mistério (projeto) de salvação (Ef 1,1-23; 3,1-13).
d) O mundo cultural e religioso. Os membros da Igreja, predominantemente gentios, eram convertidos de um ambiente cultural e religioso helenístico (greco-romano), marcado pelas religiões de mistério, magia, astrologia. Eles acreditavam que os maus espíritos, o diabo, o maligno e os poderes cósmicos habitavam nos céus e manobravam o mundo, os seres humanos e a história, provocando injustiça, violência e morte (Ef 2,1-3; 6,10-20).
O sofrimento do povo conquistado foi acentuado nos anos do reinado de Domiciano (81-96 d.C.), um imperador arrogante, que exigiu ser chamado de “Senhor e Deus”. Seus últimos anos foram marcados pelo terror (com muitas sentenças de morte, também contra membros da própria família, e feroz perseguição aos cristãos) e por problemas econômicos, geradores de grande turbulência, exploração e violência contra a população da Ásia Menor.
Era nesse mundo hostil que as comunidades cristãs jovens, recém-separadas do judaísmo (judeu-cristãos expulsos da sinagoga: cf. Jo 9), deviam firmar-se, unir-se e manter sua caminhada, pregando Cristo Jesus crucificado e praticando o amor ao próximo (Ef 3,14-22).
Sobretudo os gentios convertidos deviam apropriar-se das virtudes de Cristo, livrando-se de uma vida não cristã, dos vícios e dos maus espíritos. Ademais, por volta do ano 90 d.C., os cristãos já não esperavam uma parúsia iminente (Ef 2,5.8), mas se empenhavam em construir “moradas” neste mundo (Jo 14,23). A preocupação com a solidificação da Igreja e com a estabilidade da família cristã estava em primeiro lugar diante dos problemas do mundo.
3. Conhecendo os problemas
A carta aos Efésios não faz referência direta a problemas ou a situações concretas de uma comunidade específica. Entretanto, nas entrelinhas do texto, surgem os problemas que um pequeno grupo de comunidades, formadas ao redor da figura de Jesus Cristo na Ásia Menor, enfrentava para manter sua sobrevivência, entre os quais a questão da terra explorada e dominada pelo Império Romano. Ao procurarem viver o amor ao próximo, as comunidades, a exemplo de Jesus Cristo, chocavam-se com os valores do imponente mundo helenizado e hierarquizado em que estavam inseridas.
a) Como os cristãos podiam acreditar em um Messias crucificado e pregá-lo (Ef 2,16)? Como acreditar que o mais esmagado e desprezado entre os seres humanos era o Filho de Deus, que veio para dar sentido à vida e a um mundo sob o domínio do Império Romano com seu imperador, considerado Senhor e Deus poderoso? Como os cristãos podiam usar o título “Senhor” para Cristo Jesus, título reservado ao imperador? Qual a posição de Cristo Senhor em relação ao “Deus imperador” e aos poderes cósmicos?
b) Como a Igreja, oriunda da tradição judaica do povo de Deus (de monoteísmo exclusivo), podia dar, com o Evangelho de Jesus Cristo, o “projeto salvador da graça de Deus” – o “mistério” (Ef 3,2-4) – a todas as nações alcançadas pelo projeto salvador da pax romana mediante o evangelho do imperador?
c) Havia o grupo helenizado, com seu conhecimento – a gnosis nas comunidades (Ef 3,19; cf. Cl 2,1-8; 1Jo 2,18-3,24) –, que se interessava apenas por si mesmo, alegando ter uma liberdade superior, e exprimia uma espiritualidade vertical, muitas vezes desvinculada do compromisso social e comunitário.
d) A maioria dos membros era de não judeus convertidos, mas havia também membros judeus (e antigos tementes a Deus) em seu meio, e o problema da relação entre eles ainda não havia sido resolvido (Ef 2,14). O fluxo dos novos convertidos não judeus nas comunidades criou algumas tensões significativas. Nesse contexto, como resolver a inimizade cultural e econômica para manter a unidade da Igreja?
e) Em uma sociedade escravagista, a posição, a carga e a função social das pessoas eram controladas pelo sistema patronal e patriarcal, que tinha o imperador como patrono e Pai e instaurava relações de submissão e desprezo. Como a carta aos Efésios advertiu os membros para o perigo de desprezo e de conflito na Igreja por causa das diferentes funções de cada membro (Ef 4,16)?
f) No mundo greco-romano, marcado pela helenização, os cristãos, sobretudo os gentios convertidos, encontram-se em perigo de retrocesso na vida moral e desvio da fé. Como conscientizar a comunidade sobre os perigos, como a imoralidade da libertinagem (Ef 4,19)?
g) Como as pessoas batizadas em nome de Jesus Cristo, sob a ética da igualdade (Gl 3,28), assumem o “código doméstico” (a lei da submissão) na família, a célula fundamental da sociedade patriarcal e escravagista daquele tempo (Ef 5,21-6,9)?
h) As injustiças e opressões eram praticadas pelos poderosos do mundo (Ef 6,12) na realidade vigente da sociedade escravagista, na qual era quase impossível promover mudanças. Como a carta aos Efésios orienta os membros para lutar contra o mal, personificado pelo diabo (maligno), que seduz e se encarna nos poderosos do mundo?
4. Conhecendo a carta aos Efésios
A carta pode ser dividida em duas partes. A primeira é uma parte doutrinal sobre o projeto salvador (o mistério) de Deus, realizado em seu Filho, Jesus (Ef 1,3-14), e desenvolvido na Igreja, a qual tem, como cabeça, Jesus Cristo soberano e crucificado (Ef 1,15-2,22), anunciado por Paulo (Ef 3,1-21). A segunda é marcada pela exortação a dinamizar a vida cristã: viver na unidade (Ef 4,1-16), viver como filhos da luz (Ef 4,17-5,20), ser família cristã (Ef 5,21-6,9), lutar contra o mal (Ef 6,10-20). Eis um possível esquema para a carta:
a) Introdução – 1,1-2: saudação inicial;
b) Primeira parte – 1,3-3,21: o mistério de Cristo soberano, cósmico e eclesial;
c) Segunda parte – 4,1-6,20: a vida cristã na prática;
d) Conclusão – 6,21-23: saudação final.
5. Conhecendo as mensagens principais
A carta aos Efésios apresenta uma reflexão sobre a Igreja como corpo de Jesus Cristo. Ela exorta os leitores a uma conduta digna da vocação cristã no mundo helenista, patriarcal e escravagista do Império Romano.
a) O senhorio e a presença gloriosa de Cristo (Ef 1,3-23): descreve e prega a soberania de Jesus Cristo como o único Senhor sobre “as coisas celestes e as terrestres”, para fortalecer a identidade, a sobrevivência e a resistência dos cristãos ante a dominação dos poderosos do mundo, justificada pela imagem poderosa do imperador, “Senhor e Deus”.
b) A Igreja universal (Ef 2,1-22): Cristo crucificado, como a maior manifestação do amor infinito do Pai, derruba as barreiras (como a Lei e a tradição oficial) que isolavam Israel das outras
nações. Doravante, gentios e judeus convertidos ao cristianismo formam, com unidade e igualdade de direitos, um só corpo, “homem novo” ou “nova humanidade”.
c) O mistério de Deus com o amor de Cristo (Ef 3,1-21): a grande obra salvífica (mistério) de Deus, realizada em Jesus de Nazaré crucificado e anunciada pelo Evangelho de Cristo Jesus soberano, está revelada e desenvolvida na Igreja, o corpo de Cristo, na qual os gentios também fazem parte do povo de Deus. Na Igreja, a fé no amor de Cristo, fortalecida pelo Espírito Santo, deve ativar o “coração” dos fiéis para superar “todo conhecimento” (desvinculado da responsabilidade social e comunitária) e construir a casa de Deus Pai no seio do mundo injusto e opressor.
d) Unidade na diversidade (Ef 4,1-16): pelo batismo, os membros cristãos, “ressuscitados” com Jesus Cristo, são libertos do “pecado” (o poder das trevas) e unidos ao Filho de Deus, participando do mistério (o projeto da salvação) de Cristo e formando a nova humanidade, o “homem perfeito”, na Igreja. Nela, cada membro, com seu carisma e função, forma “um só corpo e um só Espírito” no amor verdadeiro de Cristo, em oposição à sociedade patronal e escravagista de desigualdade e discriminação.
e) Nova humanidade em Cristo (Ef 4,17-5,20): a pessoa renovada em Cristo deve revestir-se do “homem novo”, como filha da luz, e caminhar no amor, bondade, justiça e verdade, abandonando a “libertinagem e a prática insaciável de todo tipo de impureza”.
f) Amor e respeito (Ef 5,21-6,9): segundo o modelo da união de Cristo e da Igreja, Efésios propõe que os cristãos pratiquem o código doméstico (as instruções sobre as relações entre mulher e
marido, entre filhos e pais e entre escravos e patrões), com a “reciprocidade” e o “amor ao próximo”, nas “casas-empresa” de residência e produção, a célula fundamental da sociedade daquele tempo. A orientação visa desacreditar e subverter, pacífica e gradativamente, as relações de dominação e submissão dentro da sociedade patriarcal e escravagista sustentada pelo poderoso Império Romano, o mundo em que não se podia imaginar nem cogitar mudanças no sistema de relações socioeconômicas estabelecidas.
g) Luta contra os espíritos do mal (Ef 6,10-20): na realidade vigente da sociedade opressora do império, com seu exército violento e sua religião ostensiva, os cristãos, portando a “armadura de Deus”, devem lutar contra os espíritos do mal chefiados pelo diabo (maligno), os quais seduzem e dominam o mundo, o ser humano e a história com seu espírito de alienação, ignorância e libertinagem. As armas para o combate e a resistência à sociedade geradora de injustiça, opressão e morte são a verdade, a justiça, o Evangelho da paz, a fé, o Espírito, a Palavra e a oração.
Conclusão
Fazendo uma leitura contextualizada da carta aos Efésios, percebe-se que as comunidades cristãs de ontem e de hoje devem lutar contra o mundo da injustiça e executar o projeto salvador (mistério) de Deus, revelado no Evangelho do amor de Jesus Cristo crucificado: Deus Pai criador reúne todas as pessoas na unidade e na paz, excluindo quaisquer separações de classe social, etnia, gênero e
origem religiosa.
Quase dois mil anos se passaram, mas os espíritos do mal (ambições de bens e de poder) continuam seduzindo, encarnando-se nos poderosos de hoje e devorando as pessoas inocentes mediante as guerras, o trabalho escravo, a economia selvagem, a fome, a violência etc. Como os cristãos podem lutar contra o mundo do maligno, não só em sentido espiritual, mas também em sentido real e concreto? As injustiças e desigualdades crescem a cada momento, dentro e fora das comunidades cristãs. Temos o desafio de reavivar a justiça, a solidariedade e a irmandade em nossa vida e missão.
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Maria Antônia Marques e Shigeyuki Nakanose
*Maria Antônia Marques é assessora do Centro Bíblico Verbo e professora no Instituto São Paulo de EstudosSuperiores (Itesp). E-mail: [email protected]
**Shigeyuki Nakanose, svd, é assessor do Centro Bíblico Verbo e professor no Instituto São Paulo de
Estudos Superiores (Itesp).
E-mail: [email protected]