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“Mas o que seria isso para tanta gente?” O sinal da comensalidade

Por Prof. José Pascoal Mantovani*

O tema da comensalidade marca a história das primeiras comunidades cristãs. Assim, com base no Evangelho de João 6,1-15, apresentaremos o impacto transformador que o ato da doação e da generosidade pode gerar – afinal de contas, a entrega diminuta do generoso ultrapassa as sobras do faustoso.

Introdução

“Tenho tão pouco para ofertar”; “Isso é praticamente nada diante da necessidade”; “Quem sou eu para fazer alguma coisa?” Essas são algumas das expressões ouvidas diante de situações graves e intimidadoras que levam os fiéis, concentrados em suas fragilidades e limitações, a escolher enaltecer o problema, em vez de ser instrumentos do milagre. Em um contexto marcado pela competitividade, pela ânsia predadora presente no individualismo e pela indiferença como marca cultural, é fundamental buscar caminhos para enfatizar a fraternidade e a amizade social. Para vencer tais correntes, precisamos de fiéis que aceitem ser instrumentos nas mãos do Senhor. Afinal de contas, é por meio das mãos humanas que a mão divina, em muitos casos, aponta seus sinais.

Para desenvolver nossa reflexão, partiremos do trecho do Evangelho de São João que narra a multiplicação dos pães e dos peixes. A ideia é apresentar a estrutura geral do Evangelho joanino e, mais do que isso, explicitar a importância dessa narrativa para evidenciar a vocação da Igreja em seu carisma do cuidado, da partilha e da fraternidade.

1. A estrutura do Quarto Evangelho

O Evangelho de São João, também conhecido como Quarto Evangelho, tem características bastante peculiares em relação aos Evangelhos sinóticos (SILVA, 2009). Em primeiro lugar, existe a questão da estrutura das narrativas, pois, enquanto os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas seguem um esquema bastante parecido, que trata do nascimento, do ministério e da paixão de Jesus, o texto joanino segue outro caminho, que poderíamos, de modo sintético, afirmar ser o das questões descendentes e ascendentes (BROWN, 1999).

Para explicitar a ação amorosa de Deus em direção à humanidade, São João evidencia o esvaziamento do “Verbo que se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade” (COMBLIN, 2009). Esse aspecto é notório entre os capítulos 1 e 11, conhecido como Livro dos Sinais, em que o evangelista evidencia que o Pai amou o mundo de tal maneira, que não poupou nada, nem a si mesmo. Essa abordagem se inicia no prólogo (cap. 1) e se encerra na ressurreição de Lázaro (cap. 11). Já a questão ascendente está presente nos capítulos 12 a 21, trecho que enfatiza a concretização do ministério de Jesus e conduz para a consumação do projeto da paixão. Essa parte do Evangelho é marcada por embates com os religiosos, instrução para os seus, entrega incondicional.

O segundo aspecto que diferencia o texto joanino dos sinóticos está em seu estilo litúrgico (KONINGS, 2005). Há elementos mnemônicos nos versos, ou seja, as palavras estão conectadas por linha poética, em que ideias conectam ideias, palavras aproximam outras palavras. Esse elemento é típico da cultura oral que marcou a formação desse Evangelho (KOESTER, 2005). Ainda nesse ponto, é importante destacar que o texto do discípulo amado faz escolha por alguns termos que recebem ênfase significativa – por exemplo, a palavra “amor” aparece 44 vezes, “verdade” 46 vezes, “conhecer” 57 vezes, “mundo” 67 vezes, “testemunha” 47 vezes, “crer” 102 vezes –, em contraste com a ausência do termo “arrependimento” ou das 5 vezes, apenas, em que a palavra “reino” aparece (KOESTER, 2005, p. 206).

O terceiro aspecto se refere às fontes constitutivas do Quarto Evangelho. Se é possível identificar uma fonte comum que perpassa os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, o texto joanino, nesse sentido, possui independência.
A escrita, a estruturação, o modo de organizar os imbróglios e defeitos são peculiares na narrativa do discípulo amado (MARGUERAT,  2009). As similitudes entre os textos joaninos e os demais Evangelhos se devem à tradição oral que perpassa todos os textos bíblicos – afinal de contas, “o mais fascinante ao estudar as origens cristãs é que, apesar de serem tão diferentes e, em alguns pontos, até divergentes, as comunidades se empenham em manter a comunicação entre elas” (NOGUEIRA, 2003, p. 125).

De modo geral, o Quarto Evangelho carrega, em sua estrutura textual, o mesmo extrato, a mesma memória dos Evangelhos sinóticos, todavia não há dependência literária entre os escritos (JEREMIAS, 1991). Trata-se de textos que trazem marcas da cultura oral do primeiro século, sem, contudo, enclausurar os estilos, abordagens e/ou ênfases de cada Evangelho. Destacaremos, assim, o papel da comensalidade no texto do discípulo amado.

2. A centralidade da partilha do pão

Destacaremos, nesta seção, a centralidade da comensalidade no texto joanino (BULTMANN, 2004). Entendemos a ideia de comensalidade como hábito de partilhar refeições à mesma mesa. Como, porém, perceber esse ponto no texto joanino? Como dito anteriormente, a estrutura do Livro dos Sinais do Quarto Evangelho é marcada por sete sinais, isto é, não existem narrativas de milagres no texto joanino (DODD, 2003). Para o evangelista, toda ação de Jesus que rompe com a lógica humana é identificada como sinal. A ausência do termo “milagre” deve ser vista como elemento intencional por parte do evangelista, haja vista que, se a ação miraculosa é um fim em si mesma, o sinal, por sua vez, não está encerrado em si, mas, em vez disso, aponta para algo maior do que ele mesmo, uma vez que é apenas um sinal.

Os sinais aparecem no texto joanino em forma de quiasmo, ou seja, há aproximação e diálogo entre eles: o casamento de Caná (Jo 2) contrapõe-se ao ofício fúnebre de Lázaro (Jo 11); a cura do filho de um oficial (Jo 5) vincula-se à cura de um cego de nascença (Jo 9); a cura do paralítico (Jo 5) contrasta com o andar sobre as águas (Jo 6). O único sinal que fica isolado é a multiplicação dos pães e peixes. A estrutura do quiasmo tem a finalidade de potencializar essa narrativa, que é central em relação às demais (WEGNER, 2007). Desse modo, a ênfase joanina está na multiplicação dos pães e peixes. Como, porém, essa narrativa é apresentada pelo autor?

2.1. A multiplicação dos pães

A narrativa da multiplicação dos pães e peixes, no texto joanino, carrega singularidades. São João relata que Jesus se deslocou para o outro lado do mar de Tiberíades e grande multidão o seguiu. Jesus vai ao monte, junto com seus discípulos, próximo do período pascal. Aquela grande multidão havia seguido Jesus e seus discípulos. A pergunta que o Mestre faz a Filipe é: “Onde comprar pão para tanta gente?” A resposta de Filipe é factual, concreta: seria preciso o equivalente a duzentos dias de trabalho para conseguir comprar comida para todas as pessoas – afinal, segundo a narrativa, só os homens eram cinco mil. Diante desse cenário caótico, o inusitado acontece. Quase em estilo satírico, André, outro discípulo, diz que havia um menino, mais especificamente uma criança, que carregava consigo cinco pães e dois peixinhos, “mas o que seria isso para tanta gente?”

Esse ponto é significativo, tendo em vista que a experiência com Deus é mediada pelas relações humanas. Mais do que esperar milagres divinos ou respostas mirabolantes, a comunidade é chamada a ser vaso de barro nas mãos do oleiro, com o intuito de revelar a graça divina em meio ao ordinário. Demonstrar a solidariedade no cotidiano. Fazer das contingências do dia a dia as possibilidades da ação dos céus.

A narrativa joanina revela o nome do discípulo que ficou assustado com o desafio que tinha diante de si e do discípulo que trouxe a oferta da criança, entretanto o texto não traz o nome desse menino. De modo paradoxal, quem conhece a narrativa bíblica costuma lembrar a existência de um menino que ofertou pães e peixes, mas, com raras exceções, lembra os nomes dos discípulos presentes no episódio.

Muitos fiéis têm a preocupação de ter seus nomes citados ou lembrados, mas o que o texto joanino nos ensina é que o ato da partilha, da entrega, é mais significativo, pois é essa ação que fará a diferença na história das pessoas. É interessante notar que a singela doação da criança foi suficiente para mobilizar o coração de Jesus. Em vez de esperar que coisas grandiosas aconteçam, vale mais a pena a entrega do que se tem. Aliás, essa postura da criança tensiona a lógica dominante na atualidade. Qual a possibilidade de receber algo em troca, algum benefício, à medida que entrega seu alimento? Em meio àquela multidão, não havia nada diante do menino que poderia gerar nele a convicção de que teria alguma retribuição pela doação. Esse ponto é significativo, uma vez que explicita a distinção entre doação e investimento. Na lógica do investimento, há expectativa do retorno, da retribuição; já na lógica da doação, o que está em pauta é o desprendimento, o altruísmo, a abnegação.

Continuando a narrativa da perícope, Jesus pede que a multidão se sente na grama e, com isso, faz um tipo de ato litúrgico inesperado: “Jesus tomou os pães e, tendo dado graças (eucaristes), distribuiu às pessoas” (Jo 6,11). O que acontece nesse momento, no Evangelho do discípulo amado, é um ato eucarístico, ou seja, de celebração, de inclusão, de doação. Mais do que a sobra abundante dos pães e peixes em doze cestos, o texto joanino nos chama a perceber que a fraternidade e a amizade social não têm distinção religiosa, étnica, racial, política ou quaisquer outras. Não há no trecho nenhuma inquisição sobre o passado daquelas pessoas; aliás, mesmo após desfrutarem e vivenciarem a multiplicação dos pães, muitas delas se sentiram incomodadas com as palavras de Jesus e, ainda no capítulo 6, afastam-se da sua mensagem. O que Jesus faz é incluir as pessoas de modo incondicional; afinal de contas, no cristianismo primitivo, sentar-se à mesa com alguém, partilhar uma refeição categorizava o indivíduo, era sinal de pertença. A sacralidade na refeição não era exclusividade cristã. O tema da comensalidade fazia parte da cultura e, consequentemente, da religiosidade dos diversos povos que estabeleciam fronteira com os judeus e, posteriormente, com os primeiros cristãos (MANTOVANI, 2013, p. 92).

A ruptura que Jesus estabelece com a promoção da comensalidade é expandir as fronteiras do Reino de Deus. É ato de inclusão, de amor, de acolhimento. Esse ato de Jesus ligado à comensalidade revela seu interesse apriorístico em relação à pessoa humana. Sentar-se no mesmo espaço e partilhar do mesmo pão foi o modo que Jesus escolheu para tipificar a dimensão inclusiva da casa do Pai.

3. Marcas da comensalidade cristã

É possível mensurar algumas marcas na comensalidade proposta por Jesus. Em primeiro lugar, não há pré-requisito para a participação na mesa. A mesa acolhe pessoas indistintamente, sem se ater a classe social, confissão religiosa ou quaisquer outros predicados.

Em segundo lugar, a experiência da sacralidade, da partilha, só ocorre se houver pessoas disponíveis para doar, entregar indistintamente.

Com isso, em terceiro lugar, o espaço da celebração é ampliado, pois a experiência com Deus transcende quaisquer limites geográficos.

Em quarto lugar, a mesa é ampliada, ou seja, não há limite, sempre há espaço para mais uma pessoa à mesa.

Em quinto lugar, Jesus, ao dar graças pelos cinco pães e dois peixinhos, ensina um coração de gratidão e contentamento. Em vez de reclamar do que faltava, sua postura é dar graças pelo que se tem em mãos – ou seja, a gratidão antecede a provisão.

Por fim, em sexto lugar, algumas pessoas irão ver e desfrutar a provisão dos céus, mas, tal como na narrativa bíblica, quando se sentirem incomodadas com a mensagem do Evangelho, irão abandonar o barco. Não é esperando a retribuição que se divide o pão, ao contrário: é na entrega incondicional típica da doação que se sustenta toda a ação de Jesus; afinal de contas, “partilhar da mesma refeição não harmonizou o projeto de Jesus com os projetos da multidão” (MANTOVANI, 2013, p. 93). Portanto, o princípio bíblico não está pautado na retribuição, na cooptação ou no proselitismo religioso, e sim, ao invés, no desprendimento e na gratuidade típica da graça e do amor presente no Evangelho.

Conclusão

É preciso considerar que a ideia predatória do individualismo, do egoísmo e do desprezo ao próximo só será suplantada se houver mudança de mentalidade. A transformação no modo de pensar é o ponto inicial para ações sintonizadas com o projeto do Reino dos Céus. O sinal da comensalidade não tem origem no exagero ou no excesso, e sim na disposição em entregar.

Se, por um lado, os olhos dos discípulos estavam cativos aos fatos e evidências e questionavam, de modo categórico, “o que seria isso para tanta gente?”, por outro, a entrega dos cinco pães e dos dois peixinhos rompe com esse ceticismo pragmático e expande a percepção do alcance dos céus. Assim, o Quarto Evangelho põe ênfase na noção de que os sinais apontam para algo muito maior, de modo que a partilha, a doação, a generosidade são marcas indispensáveis para aquelas pessoas que buscam ser instrumentos nas mãos do Pai.

Em tempos em que enfatizamos a fraternidade e a amizade social, o discípulo amado nos faz pensar sobre quem temos sido: o discípulo que olha para o problema e esquece todo o resto ou o menino que entrega, confia e descansa, sendo, dessa forma, o que o apóstolo Paulo classifica como “vaso de barro que carrega grande tesouro” (2Cor 4,7). Disponhamo-nos a doar, não só os bens, mas o tempo, a atenção, os afetos, os abraços, a empatia, a solidariedade. Enfim, doemos, ainda que seja algo aparentemente pequeno e sem muito valor; entreguemos, pois, como resposta à dilatação dos afetos, veremos grandes multiplicações acontecerem.

Referências Bibliográficas

BROWN, Raymond E. A comunidade do discípulo amado. São Paulo: Paulus, 1999.

BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2004.

COMBLIN, José. Jesus, enviado do Pai. São Paulo: Paulus, 2009.

DODD, Charles. A interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Paulus, 2003.

JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1991.

KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento: história e literatura do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 2.

KONINGS, Johan. Evangelho segundo João: amor e fidelidade. São Paulo: Loyola, 2005.

MANTOVANI, José Pascoal. Os sinais do Evangelho de João. 2013. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Faculdade de Humanidades e Direito, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2013.

MARGUERAT, Daniel. Para ler as narrativas bíblicas: iniciação à análise narrativa. São Paulo: Loyola, 2009.

NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. Experiência religiosa e crítica social no cristianismo primitivo. São Paulo: Paulinas, 2003.

SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 2009.

WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual metodológico. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2007.

Prof. José Pascoal Mantovani*

*é clérigo metodista, teólogo, filósofo e pedagogo. Mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Atualmente é professor e coordenador do curso de Filosofia da Faculdade Paulus de Comunicação (Fapcom). E-mail: [email protected]