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Publicado em janeiro-fevereiro de 2014 - ano 55 - número 294

Deus na cidade

Por Cardeal Jorge Mario Bergoglio (papa Francisco)

Deus vive na cidade, e a Igreja vive na cidade. A missão não se opõe a ter de aprender da cidade – de suas culturas e de suas mudanças – ao mesmo tempo que saímos a pregar o evangelho. Isso é fruto do próprio evangelho, que interage com o terreno no qual cai como semente. Não somente a cidade moderna é um desafio, mas, bem mais, o foram, o são e o serão toda cidade, toda cultura, toda mentalidade e todo coração humano.

Com olhar de crente e de pastor

            Quando rezo pela cidade de Buenos Aires, agradeço o fato de que seja a cidade em que nasci. O carinho que brota de tal familiaridade ajuda a encarnar a universalidade da fé que abraça a todas as pessoas de toda cidade. Ser cidadão de uma grande cidade é algo muito complexo hoje em dia, já que os vínculos de raça, história e cultura não são homogêneos e os direitos civis tampouco são plenamente partilhados por todos os habitantes. Na cidade, há muitíssimos “não cidadãos”, “cidadãos pela metade” e “sobrantes”: ou porque não gozam de plenos direitos – os excluídos, os estrangeiros, as pessoas sem documentos, os jovens sem escolaridade, os anciãos e enfermos sem plano de saúde –, ou porque não cumprem com seus deveres. Nesse sentido, o olhar transcendente da fé que leva ao respeito e ao amor ao próximo ajuda a “escolher” ser cidadão de uma cidade concreta e a pôr em prática atitudes e comportamentos que criam cidadania.

O olhar que quero partilhar com vocês é o de um pastor que busca aprofundar-se em sua experiência de crente, de homem que crê que “Deus vive em sua cidade”.[1] Em seu Sermão sobre os pastores, santo Agostinho distinguia duas coisas: a primeira é que somos cristãos, e a segunda, que somos bispos. Ao nos situarmos diante da cidade moderna, com seus imaginários sociais tão diversos, pode ajudar esse exercício de distinguir olhares. Não para deixar de olhar como pastor para o rebanho que nos foi encomendado, mas para aprofundar-se nesse olhar de fé simples que o Senhor tanto gostava de encontrar, sem que lhe importasse raça, cultura ou religião. Porque o olhar de fé descobre e cria cidade.

Jesus na cidade

            As imagens do evangelho que mais me agradam são as que mostram o que Jesus suscita nas pessoas quando se encontra com elas na rua. A imagem de Zaqueu, que, ao inteirar-se de que Jesus entrou em sua cidade, sente despertar o desejo de vê-lo e corre para subir na árvore. A fé fará que Zaqueu deixe de ser um “traidor”, a serviço próprio e do império, e passe a ser cidadão de Jericó, estabelecendo relações de justiça e solidariedade com seus concidadãos. A imagem de Bartimeu, que, quando o Senhor lhe concede a graça desejada – “Senhor, que eu veja” –, o segue pelo caminho. Pela fé, Bartimeu deixa de ser um marginal jogado à beira do caminho e se converte em protagonista da própria história, caminhando com Jesus e o povo que o seguia. A imagem da hemorroíssa, que lhe toca o manto no meio de uma multidão que apertava o Senhor por todos os lados e atrai seu olhar respeitoso e cheio de carinho. Por meio da fé, a hemorroíssa se inclui em uma sociedade que discrimina as pessoas por certas enfermidades consideradas impuras.

São imagens de encontros fecundos. O Senhor simplesmente “passa fazendo o bem”. As pessoas ficam maravilhadas ao ver o que há no coração de tantos que, excluídos pela sociedade e ignorados por muitos, ao entrar em contato com o Senhor se enchem de vida plena, e essa vida cresce integralmente, melhorando a vida da cidade.

Em sintonia com o evangelho, a afirmação feliz de Aparecida: “A fé nos ensina que Deus vive na cidade” é uma resposta de fé diante do desafio imenso que representam as cidades atuais. Leva-nos a querer “recomeçar a partir do encontro com Cristo”,[2] e não a partir de modelos urbanos e culturais. Como dizia em “O sacerdote e a cidade”,[3] Aparecida constata uma mudança de paradigma na relação entre o sujeito cristão e as culturas que se elaboram nesses grandes laboratórios que são as cidades modernas: “O cristão de hoje não se encontra mais na linha de frente da produção cultural, mas recebe sua influência e seus impactos”.[4] As tensões que a análise das ciências nos põe diante dos olhos podem causar medo e sentimentos de impotência pastoral. Entretanto, a certeza de que Deus vive na cidade nos enche de confiança, e a “esperança da Cidade Santa que desce do céu”[5] nos infunde coragem apostólica. Como a Zaqueu, a boa notícia de que o Senhor entrou na cidade nos dinamiza e nos faz sair à rua.

O tom de Aparecida para olhar “a pastoral urbana”

            A parte “A pastoral urbana” é um bom exemplo do esforço de Aparecida para encontrar o tom evangélico para olhar a realidade. Se alguém reler os cinco primeiros pontos, nota-se um intento de olhar mais sociológico, por assim dizer. Ressoam primeiro a mudança de paradigma e a complexidade da cultura plural (509), as novas linguagens (510), as complexas transformações socioeconômicas, culturais, políticas e religiosas (511), as diferenças sociais, as tensões desafiadoras: tradição-modernidade, globalidade-particularidade, inclusão-exclusão… (512). Porém, sucede algo curioso: o desenvolvimento desta linguagem tem um ponto de inflexão no parágrafo seguinte. É como se se tratasse de tomar ar diante de tanta complexidade: valoriza-se, então, o passado (“a Igreja em seus inícios se formou nas grandes cidades de seu tempo e se serviu delas para se propagar”) e se assinalam experiências de renovação. A impressão é que estas são “pouca coisa” diante da magnitude das mudanças descritas anteriormente. O texto quer convidar à alegria e à valentia, entretanto surge a palavra “medo em relação à pastoral urbana”: tendências a fechar-se, a estar na defensiva, sentimentos de impotência diante das grandes dificuldades das cidades (513).

Vêm então os três pontos seguintes em que o tom da linguagem muda notavelmente. O ponto 514 é um pequeno hino de fé, uma espécie de salmo no qual a cidade brilha como lugar de encontro. Escutemos como soa:

 

“A fé nos ensina que Deus vive na cidade,

no meio de suas alegrias, desejos e esperanças,

como também em suas dores e sofrimentos.

As sombras que marcam o cotidiano das cidades,

violência, pobreza, individualismo e exclusão,

não podem impedir-nos que busquemos

e contemplemos o Deus da vida

também nos ambientes urbanos.

As cidades são lugares de liberdade e oportunidade.

Nelas as pessoas têm a possibilidade de conhecer

 mais pessoas,

 interagir e conviver com elas.

Nas cidades, é possível experimentar

vínculos de fraternidade, solidariedade e universalidade.

Nelas o ser humano é chamado a caminhar

sempre mais ao encontro do outro,

conviver com o diferente,

aceitá-lo e ser aceito por ele”.

 

            O tom mudou e faz com que mude o olhar. Ressoa aqui a pergunta que se fazia e nos fazia o papa em seu discurso inaugural: “O que é a realidade sem Deus?”[6] A mesma pergunta nós podemos fazer com relação à cidade: o que é a cidade sem Deus? Sem um ponto de referência fundamental e absoluto (ao menos buscado), a realidade da cidade se fragmenta e se dilui em mil particularidades sem história e sem identidade. Em que termina um olhar sobre a cidade se não se centra em uma fé aberta ao transcendente? Para ver a realidade, faz falta um olhar de fé, um olhar crente. Senão, a realidade se fragmenta.

Aparecida assumiu esse desafio ao privilegiar um “olhar de discípulos missionários sobre a realidade” (DAp 19-32) que centra todos os demais olhares:

Necessitamos, ao mesmo tempo, que nos consuma o zelo missionário para levar ao coração da cultura de nosso tempo (e a cultura pulsa e se elabora nas cidades) aquele sentido unitário e completo da vida humana que nem a ciência, nem a política, nem a economia, nem os meios de comunicação poderão proporcionar-lhe. Em Cristo Palavra, Sabedoria de Deus (cf. 1Cor 1,30), a cultura (e cada cidade) pode voltar a encontrar seu centro e sua profundidade, a partir de onde é possível olhar a realidade no conjunto de todos os seus fatores, discernindo-os à luz do evangelho e dando a cada um seu lugar e sua dimensão adequada (DAp 41).

            O parágrafo seguinte é um canto à esperança. O olhar sobre a Cidade Santa que desce do céu instala a ideia de proximidade e de acompanhamento. Nosso Deus é um Deus que armou sua tenda de campanha entre nós (515).

O último parágrafo é um esboço de hino à caridade, no qual o serviço da Igreja é fermento que transforma e realiza a Cidade Santa na cidade atual (516).

Desta maneira, os pontos 517-518, que constituem longa lista de concretizações pastorais, escrevem-se em um tom propositivo e de recomendação. Explicitamente se mudou o tom, já que na primeira redação se dizia “optamos por” uma pastoral urbana que… Na redação final, ficou: “a conferência propõe e recomenda” uma nova pastoral urbana que… saia ao encontro, acompanhe, seja fermento.

Imaginário teológico cristão para a cidade

            Neste tom de consolação, surgiram as categorias de encontro, acompanhamento e fermento que Aparecida nos propõe para sair às ruas da cidade atual. As consequências pastorais dessas atitudes e de outras aparecerão nas diferentes apresentações deste congresso. Quero agora dar um passo adiante – em uma espécie de réplica existencial e espiritual – para aprofundar-me no efeito que tais atitudes produzem em nosso olhar, em nosso imaginário teológico. Se é verdade que se passou de um sujeito cristão cujo olhar estava “por cima” da cidade, modelando-a, a um sujeito imerso na amálgama da hibridação cultural e suscetível a suas influências e impactos, é necessário reconectar-nos com o “específico cristão” para poder dialogar com todas as culturas: com uma cultura cristã, inspirada na fé, cuja estrutura de valores faz-nos sentir em casa; com uma cultura pagã, cujos valores se podem discernir com certa clareza; e com uma cultura híbrida e múltipla, como a que se gesta agora, que requer maior discernimento.

Ser povo e construir cidades são coisas que caminham juntas; e ser povo de Deus e habitar na cidade de Deus também. Nesse sentido, o imaginário teológico pode ser levedura para todo o imaginário social.

Já no Êxodo, no povo peregrino e em formação, cada acampamento tem em si o germe de uma cidade; e a promessa da terra que emana leite e mel se concretiza no Apocalipse, escatologicamente, na cidade santa, a Jerusalém celeste que desce do céu.

As imagens reveladas da cidade prometida (a terra prometida) e da cidade presenteada (que desce do céu como uma noiva) respondem aos anseios sempre operantes em todo imaginário social humano, operantes na construção da cidade, e os dinamizam.

Também as imagens do sonho truncado de Babel – a cidade autossuficiente que chega ao céu – e da anticidade consolidada que se estende na terra – Babilônia – expressam (e, se quisermos, ajudam a exorcizar) os medos e angústias do ser humano ao sentir que participa da construção da anticidade que o devora.

As imagens mais fecundas que o imaginário evangélico oferece a todo imaginário social são as imagens do Reino dos céus. Seus cidadãos não o defendem com armas (como disse Jesus a Pilatos); ao vivê-lo como puro dom (como tesouro no meio de um campo), partilham com todos seus benefícios (os ramos da árvore que foi um pequeno grão de mostarda são cobiçados por todos os pássaros do céu e o convite ao banquete de casamento se estende aos pobres e excluídos); o trabalho na vinha dignifica a todos igualmente, e as relações de perdão de dívidas e de produzir cada um o melhor de si (parábola dos talentos) fecundam os anseios cidadãos mais profundos.

Neste ponto, estou convencido de que nos aprofundar no imaginário evangélico da cidade, para propô-lo em toda sua riqueza à cidade atual, é um serviço que prestamos e que pode ampliar a esperança comum partilhada com todos os que habitam nossa cidade e motivar um agir comum presidido pela caridade.

Olhares que iluminam e olhares que obscurecem a cidade

            Como se vê, já desde o ponto de partida se concebe “o específico cristão” como “levedura que já está fermentando a massa”. Isso é o mesmo que sentir-nos “prensados” por um Deus que já está vivendo na cidade, mesclado vitalmente com todos e com tudo. É uma reflexão que nos surpreende sempre já com as mãos na massa, comprometidos com a situação do ser humano concreto tal como se apresenta, envolvidos com todos os seres humanos em uma única história de salvação.

Nada, portanto, de propostas ilustradas, rupturistas, assépticas, que partem do zero, que tomam distância para “pensar” como se teria de fazer para que Deus vivesse em uma cidade sem Deus. Deus já vive em nossa cidade e nos impele – enquanto refletimos – a sair ao seu encontro para descobri-lo, para construir relações de proximidade, para acompanhá-lo em seu crescimento e encarnar o fermento de sua Palavra em obras concretas. O olhar de fé cresce cada vez que pomos em prática a Palavra. A contemplação melhora no meio da ação. Agir como bons cidadãos – em qualquer cidade – melhora a fé. Paulo recomendava desde o começo ser bons cidadãos (cf. Rm 13,1). É a intuição do valor da inculturação: viver profundamente o humano, em qualquer cultura, em qualquer cidade, melhora o cristão e fecunda a cidade (ganha-lhe o coração).

O pastor que olha para sua cidade com a luz da fé combate a tentação do “não olhar”, do “não ver”. O não ver, que o Senhor reprova com tanta insistência no evangelho, apresenta muitas formas: a cegueira pertinaz dos escribas e fariseus, o deslumbramento não só diante “das luzes do centro”, como diz o tango,[7] mas também da mesma revelação com que são tentados os apóstolos “sob aparência de bem”,[8] também o não olhar dos que “passam a distância”… Porém, há um nível mais básico desse “não olhar”. É difícil categorizá-lo, porém se pode descrevê-lo. Em alguns discursos, entrevê-se que a perspectiva brota de uma espécie de “nivelação de olhares”, se me é permitido falar assim. O olhar de fé não é valorizado existencialmente como dom de Deus ao ser humano que se situa na fronteira da existência para ser olhado e olhar o Deus vivo, mas se considera o olhar de fé como “resultado”, por assim dizer, como “o que já se falou sobre algum tema em algum documento”. Esse olhar de fé é confrontado com os olhares da ciência ou dos meios e quase imediatamente é catalogado de “antiquado” ou “não atualizado” diante do olhar de alguma ciência que mostra coisas novas. Neste olhar, quem fala ou escreve se situa a si mesmo em uma espécie de lugar privilegiado a partir de onde “objetiva” a postura tradicional e o novo paradigma.

É verdade que todo olhar e refletir têm um caráter comparativo, porém o ponto-chave é se existe vontade de “ruptura” ou, como disse Bento XVI, falando das interpretações do Concílio Vaticano II, vontade de “renovação na continuidade de um único sujeito que cresce e se desenvolve permanecendo sempre o mesmo”.[9]

Em termos de vida, poderíamos dizer que o “não olhar” é o de um sujeito “abstrato” (não vivo) que olha coisas abstratas a partir de paradigmas abstratos. Por outro lado, o olhar de fé é o de um sujeito vivo – o povo de Deus a caminho, como disse o papa –, que olha eclesialmente realidades viventes no meio das quais Deus vive também.

O que quero dizer é que os “não olhares” são de “não sujeitos”, e a cidade, da mesma forma que a Igreja, necessita de olhares de sujeitos (eclesiais e cidadãos, segundo o caso).

Como podemos estar seguros de que o olhar de fé não cai na mesma coisa que criticamos? Creio que não se pode valorizar esse olhar a priori, o qual só se justifica por seus frutos. Carece do impacto midiático das hermenêuticas rupturistas, porém dá fruto a longo prazo. Que frutos?

Em primeiro lugar, os atos de fé acrescentam e melhoram a própria fé. Ao mesmo tempo, ajudam a discernir e rechaçar várias tentações.

Pode-se dizer que o olhar de fé nos leva a sair cada dia e sempre mais ao encontro do próximo que habita na cidade. Leva-nos a sair ao encontro porque esse olhar se alimenta na proximidade. Não tolera a distância, pois sente que a distância desfaz o que deseja ver; e a fé quer ver para servir e amar, não para constatar ou dominar. Ao sair à rua, a fé limita a avidez do olhar dominador e a cada próximo concreto, ao que olha com desejos de servir, ajuda a focalizar melhor seu “objeto próprio e amado”, que é Jesus Cristo vindo em carne. Aquele que diz que crê em Deus e “não vê” o seu irmão se engana.

As melhoras na fé nesse Deus que vive na cidade renovam a esperança de novos encontros. A esperança nos livra dessa força centrípeta que leva o cidadão atual a viver isolado dentro da grande cidade, esperando o delivery e conectado só virtualmente. O crente que olha com a luz da esperança combate a tentação de não olhar, que se dá por viver cercado de muros nos bastiões da própria nostalgia ou pela sede de apenas curiosar. O seu não é o olhar ávido do “vamos ver o que aconteceu hoje” nas notícias. O olhar esperançoso é como o do Pai misericordioso que sai todas as manhãs e as tardes ao terraço de casa para ver se o seu filho pródigo regressa e, apenas o avista de longe, corre-lhe ao encontro e o abraça. Nesse sentido, o olhar de fé, uma vez que se alimenta de proximidade e não tolera a distância, tampouco se sacia com o momentâneo e o conjuntural e por isso, para ver bem, se envolve nos processos que são próprios de tudo o que é vital. O olhar de fé, ao envolver-se, age como fermento. Como os processos vitais requerem tempo, acompanha. Salva-nos da tentação de viver neste tempo “fragmentado” próprio da pós-modernidade.

Se partirmos da constatação de que a anticultura cresce com o não olhar, que a maior exclusão consiste em nem sequer “ver” o excluído – o que dorme na rua não é visto como pessoa, mas como parte da sujeira e abandono da paisagem urbana, da cultura do descarte, do “despejo” –, a cidade humana cresce com o olhar que “vê” o outro como concidadão. Nesse sentido, o olhar de fé é fermento para um olhar cidadão. Por isso, podemos falar de um “serviço da fé”: de um serviço existencial, testemunhal, pastoral.

Olhar que inclui sem relativizar

            Por acaso estou dizendo que a fé, por si só, melhora a cidade? Sim, no sentido de que somente a fé nos liberta das generalizações e abstrações de um olhar ilustrado que somente dá como frutos mais ilustrações. A proximidade, o “envolvimento” e o sentir como o fermento faz crescer a massa levam a fé a desejar melhorar o que é próprio seu, o específico cristão: para poder ver indivise et inconfuse o outro, o próximo, a fé deseja “ver Jesus”. É um olhar que, para incluir, se limita e se clarifica a si mesmo.

Se nos situarmos no âmbito da caridade, podemos dizer que esse olhar nos salva de ter de relativizar a verdade para poder incluir. A cidade atual é relativista: tudo é válido, e quiçá caiamos na tentação de, para não discriminar, para incluir a todos, às vezes sentirmos ser necessário “relativizar” a verdade. Não é assim. O nosso Deus que vive na cidade e se envolve em sua vida cotidiana não discrimina nem relativiza. Sua verdade é a do encontro que descobre rostos, e cada rosto é único. Incluir pessoas com rosto e nome próprios não implica relativizar valores nem justificar antivalores, e sim que não discriminar e não relativizar implica ter fortaleza para acompanhar processos e a paciência do fermento que ajuda a crescer. A verdade de quem acompanha é mostrar caminhos para a frente, mais que julgar encerramentos passados.

O olhar do amor não discrimina nem relativiza, porque é misericordioso. A misericórdia cria a maior proximidade, que é a dos rostos, e, como quer ajudar de verdade, busca a verdade que mais dói – a do pecado –, porém para encontrar o remédio verdadeiro. Esse olhar é pessoal e comunitário. Traduz-se na agenda, marca tempos mais lentos que os das coisas (aproximar-se de um enfermo requer tempo) e gera estruturas acolhedoras e não expulsivas, coisa que também exige tempo.

O olhar de amor não discrimina nem relativiza porque é olhar de amizade. Os amigos são aceitos pelo que são e a eles se diz a verdade. É também um olhar comunitário. Leva a acompanhar, a somar, a ser um a mais ao lado dos outros cidadãos. Esse olhar é a base da amizade social, do respeito pelas diferenças, não somente econômicas, mas também ideológicas. É também a base de todo o trabalho do voluntariado. Não se pode ajudar a quem está excluído se não se criam comunidades inclusivas.

O olhar do amor não discrimina nem relativiza porque é criativo. O amor gratuito é fermento que dinamiza tudo o que é bom e o melhora, e transforma o mal em bem, os problemas em oportunidades. O pastor que olha com olhar de ágape descobre as potencialidades ativas na cidade e cria empatia com elas, fermentando-as com o evangelho.

Estas três propriedades do olhar e do agir do pastor não são fruto de uma descrição piedosa, mas de um discernimento que provém do “objeto” (se nos é permitido falar assim, já que o Senhor ressuscitado é muito mais que um objeto) que contemplamos e da pessoa a quem servimos. Um Deus vivo no meio da cidade requer aprofundamento no caminho deste olhar que propomos.

Não é como um olhar ao umbigo o “olhar como olhamos”. Porque a cidade, como os desertos, produz miragens. Com a melhor intenção, pode ser que nos enganemos. A fé sempre se vê desafiada a superar miragens. Já nos desenganamos (alguns quiçá demasiadamente) das miragens das ideologias políticas, de olhar não apenas as cidades, mas também todo o continente, a partir de ideologias que propunham caminhos rápidos para conseguir a justiça. O preço foi a violência e uma desvalorização da política que só recentemente está começando a reverter-se.

Hoje há outras miragens. Talvez por contraposição temporal se pode discernir sua raiz. Se as miragens políticas exigem um passo rápido à ação, as miragens ilustradas bem mais “retardam”. O ponto aqui é se a teoria se torna tão complicada, que, em vez de suscitar “saídas apostólicas”, suscita “discussões sobre planos apostólicos”.

Conclusão

            Deus vive na cidade, e a Igreja vive na cidade. A missão não se opõe a ter de aprender da cidade – de suas culturas e de suas mudanças – ao mesmo tempo que saímos a pregar o evangelho. Isso é fruto do próprio evangelho, que interage com o terreno no qual cai como semente. Não somente a cidade moderna é um desafio, mas bem mais o foram, o são e o serão toda cidade, toda cultura, toda mentalidade e todo coração humano.

A contemplação da encarnação, que santo Inácio apresenta nos Exercícios espirituais, é um bom exemplo do olhar que aqui se propõe.[10] Um olhar que não fica atolado nesse dualismo que vai e vem constantemente dos diagnósticos ao planejamento, mas se envolve dramaticamente na realidade da cidade e se compromete com ela na ação. O evangelho é um querigma aceito e que impulsiona a transmiti-lo. As mediações vão se elaborando enquanto vivemos e convivemos.

Na contemplação da encarnação, santo Inácio nos faz “olhar como olha” o mundo a Santíssima Trindade. O olhar que Inácio propõe não é o que vai do tempo à eternidade em busca da visão beatífica para logo “deduzir” uma ordem temporal ideal. Inácio propõe um olhar que permite ao Senhor “encarnar-se novamente” (EE 109) no mundo tal como está. O olhar das três pessoas é um olhar “que se envolve”. A Trindade olha tudo: “a toda a planície ou redondeza do mundo e a todos os homens”, e faz seu diagnóstico e seu plano pastoral. “Vendo” como os seres humanos perdem a vida plena (“descem ao inferno”), “se determina em sua eternidade (Inácio penetra no desejo mais íntimo e definitivo do coração de Deus, a vontade salvífica de que todos os seres humanos vivam e se salvem) que a segunda Pessoa se faça homem para salvar o gênero humano” (EE 102). Esse olhar universal torna-se concreto imediatamente. Inácio nos faz olhar “particularmente a casa e aposentos de Nossa Senhora, na cidade de Nazaré, na província da Galileia” (EE 103).

A dinâmica é a mesma de João no lava-pés: a consciência lúcida e ampla do Senhor (sabendo que o Pai tinha colocado tudo em suas mãos) leva-o a cingir-se com a toalha e lavar os pés dos seus discípulos. A visão mais profunda e mais alta não leva a novas visões, mas à ação mais humilde, situada e concreta.

Levando em conta estas reflexões, e para concluir, podemos dizer que o olhar do crente sobre a cidade resulta em três atitudes concretas:

– O sair de si ao encontro do outro resulta em proximidade, em atitudes de proximidade. Nosso olhar sempre tem de ser saidor e próximo. Não autorreferencial, mas transcendente.

– O fermento e a semente da fé resultam no testemunho (se, sabendo estas coisas, as põem em prática, serão felizes). Dimensão martirial da fé.

– O acompanhamento resulta na paciência, na hypomoné, que acompanha processos sem maltratar os limites.

Por este lado me parece que vai o serviço com que, como homens e mulheres crentes, podemos brindar a nossa cidade.

 


[1] Documento de Aparecida, n. 514.

[2] Cf. DAp 12.

[3] Cf. Jorge Maria Bergoglio. El sacerdote en la ciudad a la luz del Documento de Aparecida. San Isidro, 18 maio 2010.

[4] DAp 509.

[5] DAp 515.

[6] Bento XVI, Discurso inaugural, n. 3.

[7] “Um dia distante / se foi minha esperança! / As luzes do centro, / ímã de loucuras, / levaram suas ânsias por mil desventuras! / Talvez uma noite detenha sua marcha / o trem das onze, e volte meu amor!” (“O trem das onze”).

[8] Pedro desafiando o Senhor após tê-lo confessado como Messias, os irmãos filhos do trovão querendo que chova fogo sobre a cidade que não recebe o Senhor…

[9] “Tudo depende da justa interpretação do concílio – ou como diríamos hoje –, de sua justa hermenêutica, da justa chave de leitura e aplicação. Os problemas da recepção nasceram do fato de que duas hermenêuticas contrárias se encontraram, se confrontaram e entraram em litígio. Uma causou confusão, a outra, silenciosamente, porém sempre mais visivelmente, deu frutos. Por um lado, existe uma interpretação que gostaria de denominar ‘hermenêutica da descontinuidade ou ruptura’; ela não raramente foi endossada pela simpatia dos mass-media e também por uma parte da teologia moderna. Por outro lado, está a ‘hermenêutica da reforma’, da renovação da continuidade do único sujeito da Igreja, que o Senhor nos deu; é um sujeito que cresce no tempo e se desenvolve permanecendo sempre o mesmo, único sujeito do povo de Deus a caminho”. Como diz Scola, o papa não opõe “descontinuidade-continuidade” ou “ruptura-continuidade”, senão que fala de descontinuidade e rupturas versus “hermenêutica da reforma” ou renovação na continuidade do único sujeito-Igreja, especificado como “povo de Deus a caminho” (A. Scola, “Credo ecclesiam”, em Communio 1, p. 5ss, outono 2011).

[10] “O primeiro ponto é ver as pessoas, umas e outras; e primeiro as da face da terra, em tanta diversidade, tanto de trajes como de gestos, uns brancos e outros negros, uns em paz e outros em guerra, uns chorando e outros sorrindo, uns sãos e outros enfermos, uns nascendo e outros morrendo etc. Segundo, ver e considerar as três pessoas divinas, como em seu trono real ou trono da sua divina majestade, como olham toda a face e redondeza da terra e todas as pessoas em tanta cegueira, e como morrem e descem ao inferno. Terceiro, ver Nossa Senhora e o anjo que a saúda, e refletir para tirar proveito de tal visita” (EE 106).

Cardeal Jorge Mario Bergoglio (papa Francisco)

Palavras iniciais no Primeiro Congresso Regional de Pastoral Urbana da região eclesial e pastoral de Buenos Aires. Texto publicado na coletânea de Conferências do Congresso intitulada Dios en la Ciudad (Buenos Aires, San Pablo, 2012).
Tradução: Pe. Antônio Lúcio da Silva Lima, ssp