Publicado em setembro-outubro de 2023 - ano 64 - número 353 - pp.: 20-27
A Mulher E Seu Protagonismo Nas Primeiras Comunidades Cristãs: Uma Leitura De Ef 5,21-33
Por *Érica Daiane Mauri
A carta aos Efésios apresenta um Código de Deveres Domésticos que precisa ser lido e compreendido dentro do contexto sociocultural em que surgiu, em meio às comunidades cristãs da segunda geração, a fim de não incorrermos no equívoco de limitar o protagonismo e a ação dasmulheres diante das relações sociais e comunitárias atuais.
Introdução
Entre as cartas atribuídas ao apóstolo Paulo, temos a chamada carta aos Efésios, que recebe, neste ano, uma atenção especial da Igreja no Brasil por ser o texto escolhido para estudo e reflexão e para iluminação da práxis cristã no mês da Bíblia. Trata-se de escrito inspirador de muitas teologias, como a cristologia universal – Cristo Pantocrator – e a eclesiologia da Igreja como o corpo místico e Cristo como sua Cabeça/Senhor.
Além de uma cristologia e eclesiologia própria, a carta aos Efésios apresenta um Código de Deveres Domésticos (Ef 5,21-6,9) que causa certo desconforto à vida comunitária da Igreja atual, principalmente no que se refere à aceitação de relações de submissão tanto da mulher quanto de trabalhadores-escravos.
Apesar da orientação da Igreja de que a interpretação dos textos bíblicos seja realizada mediante um estudo atento, a fim de descobrir o sentido que o autor desejou transmitir em meio às específicas circunstâncias, tradições e culturas da época e às particularidades das relações
entre os destinatários (DV 12), muitos cristãos atuais incorrem no erro de aplicar ipsis litteris as orientações sobre a moral doméstica presente na carta aos Efésios. Neste artigo, pretendemos compreender melhor o contexto e as moções que resultaram na elaboração do Código de Deveres Domésticos da referida carta, com o intuito de iluminar as atuais práticas das comunidades cristãs.
1. A atuação da mulher nas primeiras comunidades cristãs e sua
submissão na Igreja de Éfeso
O texto de Efésios 5,21-33 causa estranheza quando o lemos comparativamente tanto com a realidade sociocomunitária da Igreja nos tempos atuais quanto com os feitos e ditos de Jesus presentes no Evangelho e mesmo nas demais cartas de autoria do apóstolo Paulo.
Jesus, em sua vida e missão, inaugura novo modo de se relacionar com as pessoas, caracterizado pela compaixão, igualdade, inclusão e fraternidade. Todos os grupos sociais postos à margem das relações socioculturais e religiosas contemporâneas a Jesus encontram nele e em seu projeto de Reinado de Deus um lugar de pertença; com sua dignidade restaurada, todos são chamados a ser sujeitos na construção e manutenção dessas novas relações. Jesus agia desse modo com os doentes, pobres, pecadores e, é claro, com as mulheres.
Tanto a sociedade judaica quanto a greco-romana estavam fundamentadas nas estruturas patriarcais. O chefe da família (pater familias) era responsável por todos os membros da casa (mulheres, crianças e escravos), e seu poder, exercido com o respaldo sociorreligioso, restringia a liberdade e a dignidade desses membros. O lugar da mulher, nas estruturas sociorreligiosas do judaísmo do primeiro século, era o ambiente da casa, onde cuidava dos filhos, das atividades domésticas e do tear. Sua vida pública era restrita, sendo impedida de ter acesso aos estudos e até de ser discípula de algum rabino; além disso, ao sair de casa, “usava um véu cobrindo sua face, guardando o anonimato. Suas conversas deviam ser breves, e não podia ser cumprimentada publicamente. Jamais exercia a função de juíza e de testemunha […]. No templo e na sinagoga ocupavam um lugar separado dos homens” (SAB, 2011, p. 82).
Jesus subverte as estruturas impostas às mulheres e a estas destina sua mensagem do Reino e da salvação, com a mesma dignidade com que a anuncia aos homens. Jesus aceita mulheres como suas seguidoras e discípulas (Lc 8,1-3); a elas ensina como Mestre (Lc 10,38-42); defende publicamente a igualdade de direitos e o respeito entre homens e mulheres (Jo 8,1-11; Mt 5,28); toca-as e deixa-se tocar, cura-as e fala publicamente com elas (Jo 4,27; Lc 7,36-50; 8,43-48); reconhece nelas grande fé (Mt 15,28), um modelo de discipulado (Mc 12,41-44; 14,3-9), e surpreendentemente as incumbe de serem anunciadoras e testemunhas da ressurreição, porta- vozes das primeiras orientações para a comunidade pós-pascal dos discípulos (Mc 16,1-8; Mt 28,1-10; Lc 24,1-2; Jo 20,1-10). Jesus inclui as mulheres na dinâmica de destinatárias, promotoras e anunciadoras da Boa Notícia do Reinado de Deus.
Esse novo modo de relação/protagonismo instituído por Jesus perdura nas comunidades instituídas pelos apóstolos. Paulo, inúmeras vezes, deixa transparecer em suas cartas o protagonismo feminino em meio às comunidades que organizou. De diversas maneiras, ele se refere às mulheres e à sua atuação na vida das comunidades. Elas são mencionadas como missionárias, pregadoras (quase todas), diaconisa (Febe), profetas (Priscila e Áquila: expuseram suas cabeças; Pérside: que afadigou no Senhor), companheiras de prisão (Júnia e Andrônico; Trifena, Trifosa e Pérsida, companheiras na tribulação), apóstolas (Júnia e seu marido: ousadia de Paulo), líderes das comunidades (Febe de Cencreia/Corinto; Maria; Filólogo e Júlia, a irmã de Nereu, e Olimpas de todos os santos; Evódia e Síntique de Filipos; Ápia em Filêmon), pessoas de ternura (a mãe de Rufo, “mãe” de Paulo; Febe, “nossa” irmã). Elas eram colegas de trabalho de Paulo e de outros homens, com todos os dons do carisma que aconteceu para a animação da Igreja (REIMER; SOUZA; FERREIRA, 2018, p. 212-213).
Paulo experimenta em profundidade o encontro com o Messias Jesus de Nazaré. O apóstolo dos gentios assume a missão de anunciar a Boa Notícia a todos de modo coerente com o que recebeu. Essa nova experiência com o Cristo contribuiu para que Paulo “ultrapassasse os exclusivismos étnicos, sociais e de gênero” (REIMER; SOUZA; FERREIRA, 2018, p. 210). Sua atitude para com as mulheres rompe, na medida do possível, com as estruturas socioculturais e religiosas tanto da sociedade judaica quanto da greco-romana; assim como o Mestre, ele as considera sujeitos e dignas da graça em suas comunidades. Na carta aos Gálatas, Paulo supera a histórica divisão entre judeus e gregos, entre escravos e livres, entre homem e mulher (Gl 3,28). Assim, “o objetivo de Paulo era formar comunidades vivas que superassem essas três dicotomias” (REIMER; SOUZA; FERREIRA, 2018, p. 210).
As comunidades cristãs constituíam um espaço de igualdade e dignidade de todos diante de Deus e dos irmãos e irmãs. Os carismas eram igualmente exercidos, tanto por homens quanto por mulheres, em favor da Igreja e da missão evangelizadora.
Cabe, então, refletir sobre o que mudou na realidade das comunidades para que a carta aos Efésios registrasse: “as mulheres sejam submissas em tudo aos seus maridos” (Ef 5,24).
Efésios é considerada uma carta deuteropaulina; ou seja, assim como a carta aos Colossenses e a 2ª Tessalonicenses, foi escrita provavelmente por um discípulo do apóstolo Paulo, em um período posterior à sua morte (ocorrida em Roma, entre 67-68 d.C.). A carta reflete a realidade eclesial das comunidades cristãs do final do primeiro século (entre os anos 70 e 90 d.C.), as quais vivem um distanciamento dos apóstolos e dos primeiros missionários, em virtude da morte e do martírio, e uma ressignificação da vinda definitiva de Cristo (parúsia), que, diferentemente do que se esperava a princípio, não ocorreu de forma imediata. Na realidade social, as comunidades começam a sofrer certas desconfianças e algumas perseguições da sociedade em que estavam inseridas.
As comunidades cristãs, ao se organizarem diante dessas novas realidades, são influenciadas pelo contexto sociocultural greco-romano, estruturado com base no protagonismo de uma elite masculina que fundamenta as relações da sociedade e do núcleo familiar. A sociedade era piramidal: no topo do poder estavam os nobres, os homens da corte do império e os altos funcionários do Estado (senadores e generais do exército), seguidos da classe dos homens livres, considerados cidadãos romanos; na base da pirâmide estavam os escravos, que não participavam da política, não tinham direito à propriedade e à liberdade de locomoção e cuja função era produzir bens e serviços. Esse modelo tem seus fundamentos na hierarquização das relações e no patriarcalismo.
Nesse padrão de sociedade, a família era concebida como uma “representação menor das relações sociais, em que o poder estava centralizado nas mãos de homens adultos e senhores de escravos. Para manter esse sistema, nada melhor que reproduzir em cada família essas relações. Ali, cada segmento tem seu papel bem definido” (GASS, 2004, p. 46) e quem exerce a função de senhor/chefe é o pater familias.
As comunidades cristãs da segunda geração parecem assumir esse modelo, em maior ou menor grau, e fortalecem a hierarquização e a patriarcalização de suas relações internas. Se, no início da transmissão da Boa Notícia de Jesus Cristo, tais estruturas sociais haviam sido, em parte, relativizadas na constituição das relações no interior das comunidades, garantindo uma participação mais inclusiva das mulheres, agora, no final do primeiro século, aquele modelo de sociedade é adotado como regulador das relações comunitárias.
Essa opção é notada pela presença dos Códigos de Deveres Domésticos, como o que encontramos em Ef 5,21-6,9. Os Códigos Domésticos “são formas literárias cuja característica é a transferência parenética [exortação moral] de conteúdos da filosofia econômica grega para grupos individuais […]. São parêneses acerca da submissão, cujo espaço é a casa” (REIMER; SOUZA; FERREIRA, 2018, p. 209). Tais códigos estão presentes na sociedade greco-romana e são adaptados para a realidade das comunidades cristãs.
Uma das adaptações é a atribuição de alguns deveres ao pater familias. No que se refere ao texto de Ef 5,21-33, sobre a relação esposo-esposa, ao homem/esposo cabe amar sua esposa e provê-la dos bens necessários para sua sobrevivência. De certo modo, ocorre uma limitação, mesmo que
mínima, do poder do homem, ao vincular suas ações ao modelo do amor-doação de Cristo, o que resulta em um avanço para os códigos cristãos, comparado aos greco-romanos.
Uma das hipóteses sobre o porquê de esses Códigos de Deveres Domésticos começarem a normatizar as relações familiares dos membros das comunidades cristãs é compreendê-los como um subterfúgio para proteger as comunidades de más interpretações, conflitos e possíveis perseguições da sociedade em que estavam inseridas. Os códigos efetuavam o papel de “propaganda” para a sociedade de que as comunidades cristãs não tinham o objetivo de protagonizar a desordem das matrizes sociais. Assim, “em prol da boa ordem e da necessária sobrevivência da Igreja ante reais e iminentes perseguições, orienta-se para adaptar/amenizar o anúncio da liberdade/libertação jesuânica e paulina” (REIMER; SOUZA; FERREIRA, 2018, p. 219).
2. Os riscos de uma interpretação descontextualizada de Ef 5,21-33
O Código de Deveres Domésticos apresentado em Efésios corresponde a uma submissão, consciente ou não, das relações comunitárias às estruturas socioculturais vigentes. A atuação das mulheres na comunidade é restringida; elas saem da condição de sujeitos ativos e voltam à condição de passividade imposta pela sociedade judaica e greco-romana. Mesmo quando o texto orienta que os maridos devem amar e prover suas esposas, essa atitude é uma expressão da relação ativo/marido-passivo/esposa consolidada na época (COMBLIN, 2013, p. 95).
Um risco para a atuação da mulher na comunidade consiste na defesa de que a mediação da graça, sua relação com Cristo/cabeça, ocorra por meio do marido, e não por meio da comunidade; ou seja, é preciso estarmos atentos para não justificar, com base na carta, uma compreensão equivocada de que a graça e os carismas são atribuídos às mulheres somente se elas estiverem na condição de esposa/submissas de um marido compreendido como seu senhor/cabeça. Algo, de fato, perigoso e totalmente errôneo! Ef 5,21-33 pode configurar um risco para a vivência cristã nos dias atuais, quando, de modo equivocado, se atribui a elementos culturais da época do autor e de sua comunidade o status de sacralidade, fixando uma realidade sociocultural como sagrada.
A Igreja orienta que, para compreender a mensagem dos textos bíblicos, é preciso averiguar os elementos histórico-culturais e outros fatores relevantes do surgimento e fixação do texto. Nesse sentido, fica claro que a sujeição exigida às mulheres, no contexto das comunidades cristãs do final do primeiro século, é decorrente de uma condição sociocultural de aceitação das estruturas hierárquico- patriarcais estabelecidas.
Como compreender, de forma legítima, à luz da mensagem de Cristo e do testemunho das primeiras comunidades apostólicas, o papel da mulher nas relações comunitárias? Uma leitura mais ampla da própria carta aos Efésios pode ajudar. Em Ef 5,21 a submissão é exigida a todos os membros da comunidade, não como uma condição de domínio e opressão, mas como serviço mútuo apresentado pelo próprio Jesus (Mc 10,44-45). Em Ef 6,9 temos a afirmativa de que o Senhor que está nos céus “não faz distinção de pessoas”.
A mensagem da carta nos apresenta que, em Cristo, somos todos iguais em dignidade e receptores da “riqueza da sua graça” (Ef 2,7), unidos a ele por uma só fé e por um só batismo (Ef 4,4), todos chamados a nos tornarmos “imitadores de Deus, como filhos amados”, e a caminhar no amor, como Cristo nos amou (Ef 5,1-2).
A carta aos Efésios afirma que Cristo “destruiu em sua própria carne o muro de separação, a inimizade” (Ef 2,14). Portanto, “não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vocês são um só corpo em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Todos somos filhos e filhas com igual dignidade, mediante o batismo, unidos a Cristo por meio de seu corpo místico, receptores da graça e dos dons necessários para a edificação da sua Igreja.
Conclusão
A carta aos Efésios, em seu Código de Deveres Domésticos, restringe, por razões socioculturais de sua época, o protagonismo feminino na relação comunitária. Um protagonismo confirmado pelos ensinamentos de Jesus e testemunhado nas primeiras comunidades apostólicas, que compreendiam a mulher como sujeito ativo na evangelização e na condução das ações comunitárias, como construtora e testemunha do Reinado de Deus. Nossas comunidades, de modo profético, devem retomar as relações igualitárias presentes nos primórdios do cristianismo, fortalecendo a atuação da mulher nos processos de evangelização e de constituição de uma sociedade pautada pelos valores do Reino de Deus.
Referências Bibliográficas
COMBLIN, José. Epístola aos Efésios. São Paulo: Fonte Editorial; Aparecida: Santuário, 2013.
CONCÍLIO VATICANO II. Dei Verbum: Constituição Dogmática sobre a revelação divina. 14. ed. São Paulo: Paulinas,
2007.
GASS, Ildo Bohn. As comunidades da segunda geração cristã. São Leopoldo: CEBI, 2004.
NOVA Bíblia Pastoral. São Paulo: Paulus, 2017.
REIMER, Ivoni Richter; SOUZA, Carolina Bezerra de; FERREIRA, Joel Antônio. Paulo e a questão de gênero em
sociedades patriarcais. In: FIGUEIREDO, Telmo José Amaral de; CATENASSI, Fabrizio Zandonadi (org.). Paulo:
contextos e leituras. São Paulo: Paulinas, 2018. p. 209-228.
SERVIÇO DE ANIMAÇÃO BÍBLICA (SAB). O Eterno entra na história: a terra de Israel no tempo de Jesus. 6. ed. São
Paulo: Paulinas, 2011.
*Érica Daiane Mauri
*Érica Daiane Mauri é mestre e doutoranda em Teologia pela PUC-PR, com linha de pesquisa centrada naanálise e interpretação da Sagrada Escritura. E-mail: [email protected]