Publicado em março-abril de 2012 - ano 53 - número 283
Um grito ético por justiça e equidade no mundo da saúde
Por Pe. Leo Pessini, mi
Temos de ser iguais quando a diferença nos inferioriza, mas temos de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.
Boaventura de Sousa Santos
Introdução
A saúde é um dos valores mais básicos do coração humano, juntamente com o desejo de amar e ser amado e a busca de ter longa vida ou mesmo de querer viver para sempre! É uma questão vital em termos de construção de um futuro para a humanidade com qualidade de vida, que vá além do nível da mera sobrevivência sofrida, para as novas e próximas gerações. O mundo da saúde se transformou hoje numa questão de salvação (possibilidade de viver mais e com qualidade de vida) ou condenação (morte prematura) para milhões de pessoas no mundo.
Para além da clássica definição da Organização Mundial da Saúde – OMS (1946): “completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de enfermidades (…)”, a saúde é composta de alguns ingredientes muito simples da nossa realidade, tais como educação, recursos econômicos, ocupação/trabalho, terra para cultivar, um ambiente saudável, ar e água puros, entre outros. A saúde é o pré-requisito para o desenvolvimento pessoal e comunitário e articula-se com nutrição, educação, emprego, remuneração, promoção da mulher, crianças, ecologia, meio ambiente e outros.
É necessário agir para promover e proteger a vida humana e a saúde, não somente cuidando das necessidades individuais imediatas, das comunidades e relações interpessoais, mas também apoiando a construção de políticas públicas e projetos de desenvolvimento de abrangência nacional, regional e local, dentro de uma estrutura marcada pelos valores e referenciais éticos de solidariedade, justiça e equidade. Essa concepção socioecológica da saúde nos ajuda a entender não somente as causas físicas, mentais e espirituais de doenças, mas também as causas político-sociais que provocam, além das doenças, injustiça nessa área. Os mais necessitados de cuidados com a saúde são simplesmente excluídos. Essa realidade iníqua não deixa de ser uma injustiça que clama aos céus!
A área da saúde transformou-se em gigante complexo industrial e tecnológico, com investimentos astronômicos de recursos para pesquisas, equipamentos e treinamentos de profissionais especializados. Os protagonistas nessa área de investimentos almejam ganhar dinheiro e aumentar seu capital, mais do que ser uma presença motivada por valores humanos de cuidado da saúde dos mais vulneráveis da sociedade. É muito preocupante a hegemonia dos “valores” de mercado, sem nenhuma referência a valores éticos de saúde, qualidade de vida e bem-estar social.
Os sistemas de saúde das nações mais desenvolvidas do mundo estão em crise. Os recursos econômicos não são suficientes para suprir todas as necessidades relacionadas à saúde das pessoas, somando-se a isso a chamada “medicina dos desejos” (cirurgias estéticas…)! Ultimamente estamos presenciando ásperos debates políticos em busca de uma saída para esse impasse estrutural-governamental relacionado aos sistemas de saúde. Foi o que vimos recentemente nos Estados Unidos com o governo Obama, que incluiu no sistema 30 milhões de americanos que estavam à margem de qualquer direito a cuidados de saúde, sem falar do problema dos chamados imigrantes ilegais. É importante registrar que o último relatório da OMS sobre a saúde no mundo toca justamente na questão econômica dos sistemas de saúde (“Financiamento dos sistemas de saúde: o caminho para a cobertura universal”).
O mundo da saúde é hoje um campo de grandes injustiças, desigualdades e iniquidades! Atualmente, no Brasil, oito em cada dez habitantes dependem do Sistema Único de Saúde (SUS). Dos 196 milhões de brasileiros, pouco mais de 40 milhões têm planos de saúde; portanto, 150 milhões de brasileiros dependem única e exclusivamente do SUS. Assim, temos de lutar para que ele se aperfeiçoe e corrija erros, incompetências administrativas, falta de investimento e desvio dos já parcos recursos. Se estivermos juntos dos mais vulneráveis da sociedade brasileira, temos de trabalhar para que o SUS funcione bem e atenda às necessidades básicas de saúde, como está prescrito na nossa Constituição. O sistema público de saúde brasileiro tem uma concepção filosófica humanista-comunitária maravilhosa; é perfeita na teoria, mas na prática deixa muito a desejar, revelando-se um caos em termos de funcionamento.
Esta é a hora da esperança ética na busca por justiça e equidade. Sem melodrama ou mentalidade apocalíptica, lembramos que o século XXI, ou será o século que porá a ética no centro de tudo como prioridade, ou simplesmente será o século em que deixaremos de existir! Tendo presente esse contexto, refletiremos eticamente sobre a questão da justiça e da equidade no mundo da saúde em terras brasileiras.
1. Igualdade e equidade no sistema de saúde
Entendemos por sistema de saúde o resultado das condições econômicas e sociais do país, bem como da ideologia e dos valores éticos prevalentes na sociedade, cujo objetivo é proporcionar ótimo nível de saúde às pessoas, nivelar equitativamente a saúde, proteger as pessoas dos riscos de adoecer e satisfazer as necessidades de saúde individuais. A Organização Pan-Americana de Saúde (2002) definiu saúde pública como “o esforço organizado da sociedade, principalmente através de suas instituições de caráter público, para melhorar, promover, proteger e restaurar a saúde das populações por meio de atuações de alcance coletivo”.
Neste contexto, a equidade se refere a questões de distribuição dos cuidados de saúde e de acesso a eles. No nível mais concreto, é o modo pelo qual os pacientes são tratados nas instituições de saúde. A medicina científica de alta tecnologia está mais preparada do que nunca para curar e prevenir doenças, mas a maioria das pessoas autônomas, as indústrias e até mesmo o governo não podem arcar com os custos crescentes. Pacientes ricos podem experienciar o êxtase de se recuperar de uma doença que traz risco de morte, mas um número cada vez maior de pacientes menos afortunados sente raiva e frustração por não ser tratado quando necessita de cuidados e por ser deixado à margem das benesses do dito progresso. A perspectiva cristã fornece sólida fundamentação para a construção de um sistema de saúde baseado na solidariedade, na fraternidade, na igualdade e na justiça social; um sistema de saúde que abarca a todos: os doentes e os sãos. Sempre que a equidade e a justiça são violadas, a vida do ser humano corre risco e falar em saúde é mera utopia.
A equidade exige que bens e serviços essenciais, fornecidos somente a algumas pessoas da sociedade, estejam disponíveis para outras, que têm necessidades similares e compartilham a mesma dignidade. O cuidado essencial com a saúde não deve estar disponível somente para alguns. Se mesmo bens e serviços essenciais são tão escassos ou tão caros que não podem ser oferecidos a todos, então, de acordo com a teoria, eles devem ser disponibilizados na forma de sorteio. O valor igual de cada pessoa é reivindicado, então deveria ser protegido.
A lógica de tal conceitualização é admirável. Contudo, oferecer bens e serviços para o atendimento igualitário das necessidades humanas essenciais é algo tão complexo, que a lógica não funciona na prática. A lógica é simples, mas as diferentes realidades são complexas. A equidade impõe obrigações, mas por si só não resolve os problemas da distribuição dos cuidados de saúde. Esquemas extremamente simples como o mencionado para viabilizar a equidade simplesmente não ajudam. Para a equidade funcionar na prática, a economia e a política também devem funcionar, e muitos outros princípios e referenciais éticos devem ser praticados. A autonomia, por exemplo, não pode ser ignorada, bem como a dignidade do ser humano. Sem compaixão, a equidade não pode nem determinar a necessidade do cuidado de saúde nem oferecer os serviços necessários.
2. Sobre o conceito de equidade e se é possível mensurá-la
A equidade e a justiça estão estreitamente vinculadas. A justiça estabelece os padrões para a distribuição dos bens, e a equidade é um dos padrões. A justiça distributiva se refere à alocação de bens e serviços limitados. A distribuição dos bens e serviços para todos na mesma base é um dos significados tanto para a justiça quanto para a equidade. Idealmente, a justiça se esforçaria para tornar, na realidade concreta da vida de cada um, todos os seres humanos iguais quanto fosse possível. É o filósofo norte-americano John Rawls, em sua magistral obra Teoria da justiça, publicada no início da década de 1970, que trabalha o conceito de justiça como equidade (justice as fairness), aplicada à distribuição dos bens sociais. Para esse autor, a justiça “consiste em realizar uma sociedade como sistema equitativo entre cidadãos livres e iguais”. As perguntas centrais da ética são estas: O que é uma sociedade justa? Como construí-la? A justiça é a virtude da cidadania.
A igualdade é a consequência buscada pela equidade. A igualdade já não é o ponto de partida ideológico que tendenciosamente buscava anular as diferenças. É reconhecendo as diferenças e as necessidades diversas dos sujeitos sociais que podemos alcançar a igualdade. Esse é o ponto de chegada da justiça social, referencial dos direitos humanos abrindo caminho para o reconhecimento da cidadania. A equidade deve ser o referencial ético fundamental a guiar o processo decisório de priorização da alocação de recursos escassos. Associando a equidade com os valores éticos da responsabilidade (individual e pública) e da justiça, garante-se o valor do direito à saúde. A equidade, ao reconhecer as diferentes necessidades de sujeitos também diferentes, atinge direitos iguais que são o caminho ético para garantir concretamente os direitos humanos universais, entre os quais o direito à vida, efetivado na possibilidade de acesso aos cuidados necessários de saúde.
Qual é a eficácia de um sistema de saúde que deve fornecer bens e serviços básicos a todos? A resposta a essa pergunta depende de como os bens e serviços básicos são identificados e mensurados e do entendimento das pessoas que estão operando esse instrumento. Cada sociedade organiza, financia e fornece serviços de saúde de maneira diferente. As organizações de saúde tentam fornecer esse benefício dentro dos limites dos recursos disponíveis e das perspectivas políticas predominantes. Comparar um sistema de saúde com outro é difícil, pois a própria definição de cuidados de saúde pode diferir consideravelmente de uma cultura para outra. Cuidados de saúde, em algumas culturas como a nossa, pode ser sinônimo de curar doenças específicas e, em outras culturas, pode significar prevenir doenças em vez de simplesmente curar as enfermidades. O julgamento sobre o que seja equidade e iniquidade não pode ser separado de todas as metáforas de base e das crenças socioculturais reinantes nesta área.
As pessoas em geral concordam que o referencial ético da equidade é importante e que a equidade deve ser buscada e implementada. Mas também é verdade que elas têm outras crenças a respeito dessa questão. Muitos norte-americanos, por exemplo, acreditam no mercado livre e não no governo como fornecedor e distribuidor de bens, benefícios e serviços de saúde. Em outros países, as pessoas acreditam que o sistema de saúde é responsabilidade do governo. Dadas as diferentes crenças, a variedade de sistemas de saúde, a diversidade de valores culturais, os diferentes sistemas econômicos e os diferentes níveis de cuidados, a equidade se torna valor difícil de ser mensurado e mais ainda de ser implantado.
3. Equidade, igualdade e o conceito de direitos humanos
Na história da evolução da proteção do “bem saúde”, o seguro-saúde foi inserido como forma de proteger trabalhadores assalariados, que se tornavam vulneráveis ao adoecerem. Os trabalhadores com uma apólice de plano de saúde básico conseguiam certo grau de igualdade em serviço de saúde. Mais tarde, os governos interferiram para expandir a cobertura básica para outros grupos mais vulneráveis, entre os quais idosos e pobres. O sistema de saúde amplamente estendido deu vida à ideia de equidade no sistema como um direito básico. O conceito de direitos humanos motivou os industriais e os governantes a implantar programas de cuidados da saúde para os necessitados.
O conceito dos direitos humanos está conectado com equidade no sistema de saúde, tanto histórica quanto filosoficamente. A equidade, embora seja um conceito antigo, somente no final do século XX e início deste foi proposta como direito humano universal. Ela está ligada às necessidades básicas para uma vida humana decente, como libertação da escravidão, da tortura e da prisão arbitrária. Está no mesmo nível da liberdade de expressão, reunião e religião. A equidade no sistema de saúde está inclusa no conceito geral do direito a tratamento igual perante a lei. A inclusão do referencial ético da equidade entre os direitos humanos mais básicos certamente coloca em terra firme a nossa busca contínua pela igualdade no sistema de saúde.
4. Enfrentando as ameaças à equidade como um direito humano básico
O problema é que não importa o tamanho do esforço e quão limitados são os recursos e investimentos para estender os cuidados de saúde a todos: este ideal está ainda longe de ser alcançado. Em consequência, alguns simplesmente desistiram e substituíram autonomia por equidade. Autonomia individual, aliada ao capitalismo do mercado livre, cria uma visão que faz que os cuidados de saúde sejam algo que cada pessoa pague do seu próprio bolso. No entanto, ninguém deve pagar por outra pessoa nessa visão. Se a equidade, no sentido de que cada pessoa tem o direito à proteção e aos cuidados de saúde, não pode ser alcançada, o resultado é que qualquer tentativa de se aproximar do ideal está perdida. Aqui está um exemplo clássico de um bebê sendo jogado fora junto com a água da banheira.
Paradoxalmente, o mesmo conceito de direitos, que já ajudou a propulsar iniciativas de equidade de cuidados com a saúde, desafia os avanços conseguidos com muito custo. As pessoas se preocupam com direitos, mas o conceito de direitos ampliou-se. Para além de pacientes reivindicando um direito de acesso aos cuidados de saúde, temos os médicos que também reivindicam o direito de decidir de quem vão tratar. As empresas de planos de saúde e instituições de saúde também reivindicam o direito de satisfazer os interesses financeiros de seus acionistas. Industriais e empresários reivindicam o direito de competir mundo afora e não ficarem em desvantagem por terem de pagar por benefícios de saúde para seus funcionários. As empresas farmacêuticas reivindicam o direito de lucrar nos produtos de sua pesquisa e assim cobrar valores exorbitantes por sua medicação. Todas essas reivindicações estão no sentido contrário de viabilizar o direito ao acesso igual à saúde básica para todos.
A máxima “a cada pessoa conforme suas necessidades”, partindo do princípio da igualdade como uma interpretação de justiça, exige que a sociedade organizada e o Estado forneçam meios para garantir as necessidades individuais (cada pessoa sendo única e com diferentes necessidades). Essa ideia foi implementada na criação do National Health Service (Serviço Nacional de Saúde), após a Segunda Guerra Mundial, na Inglaterra e posteriormente em países como a Noruega, a Suécia, a Finlândia, a Austrália, a Nova Zelândia, bem como nos antigos países socialistas e em Cuba. O problema é dar conta das necessidades de todas as pessoas. Essas necessidades, de ordem física, psíquica e social, modificam-se, sofisticam-se e, mesmo em países avançados com situação econômica privilegiada, contrapõem-se à inexistência de recursos suficientes destinados a atender sua totalidade. E há outras necessidades que reivindicam os mesmos recursos limitados: alimento, educação, proteção, transporte, segurança, prevenção contra as drogas, suprimento de água etc. Esses elementos não são considerados necessidades de saúde, mas têm importante impacto na saúde. Aqui surge a necessidade imperiosa de estabelecer prioridades na distribuição dos recursos. É por isso que muitos bioeticistas reformulam a máxima “a cada pessoa conforme suas necessidades” para “a cada pessoa conforme suas necessidades até o limite que permitam os bens disponíveis” (Diego Grácia).
Recursos escassos tornam os cuidados com a saúde um desafio que nunca pode ser superado completamente. Mas um desafio pode ser enfrentado permanentemente ao gerar iniciativas novas e criativas e ao trazer melhorias graduais significativas na correção das iniquidades no sistema de saúde.
5. Desafios específicos para a equidade na área da saúde
Falamos anteriormente da equidade como um ideal a ser perseguido, mesmo se os cuidados de saúde forem restritos aos cuidados primários e preventivos. É possível imaginar que uma comunidade chegue a um consenso sobre cuidados primários, preventivos e agudos com a saúde? Se esse consenso for alcançado, o que mais os cuidados essenciais, básicos ou adequados cobrem? A que mais todas as pessoas deveriam ter acesso: plano odontológico, serviços de reabilitação para vício do álcool e drogas, cuidados em casa por enfermeira, pré-natal, serviços de planejamento familiar e medicamentos? Responder a essas interrogações depende basicamente da existência ou não de recursos.
Tornar os cuidados básicos, adequados ou essenciais iguais e acessíveis a todos não é impossível, mas requer um esforço contínuo. A equidade deve, porém, manter um objetivo moral que impulsione os esforços para mudança. Vejamos, a seguir, algumas circunstâncias que criam desafios para a equidade no sistema de saúde e devem ser enfrentadas.
1. Manter cobertura básica universal para todos, em face dos crescimentos estáveis em populações imigrantes. Muitos grupos humanos migram apenas por motivos de saúde.
2. O problema de custos administrativos (burocráticos) que podem consumir rapidamente os parcos recursos destinados à saúde.
3. Microgerenciamento das decisões médicas, vistas como uma necessidade para os gestores e uma intrusão pelos médicos.
4. Despesas astronômicas relacionadas às práticas ilícitas e, em consequência, práticas médicas defensivas e devastadoras.
5. Política de saúde orçamentária limitadora dos recursos necessários à saúde diante de custos crescentes.
6. O tratamento de pacientes de alto risco.
7. Pressão econômica dos fornecedores de equipamentos médicos e produtos farmacêuticos.
8. Expansão das categorias de doença mental e pagamento por um sistema de saúde, sem diminuir a necessidade e a importância do cuidado com os que estão mentalmente doentes.
9. Combate à fraude e à corrupção no âmbito da saúde.
10. Eliminar, em nosso país, a distância entre a teoria, ou seja, o que é constitucional e garantido por lei em termos de SUS (que não deixa de ser grande conquista da Constituição de 1988), e a dramática realidade da vida concreta do povo, um verdadeiro caos, com recorrentes tragédias humanas que poderiam ser perfeitamente evitáveis.
A responsabilidade pública pela saúde, principalmente dos menos favorecidos, leva-nos a pensar que, quanto mais uma sociedade for baseada nos valores da justiça e equidade, mais deve rejeitar desigualdades sociais injustas e evitáveis. Uma sociedade justa e igualitária deve continuamente estimular a solidariedade coletiva, que tem como objetivo promover o bem-estar de todos, sem distinção de origem, raça, sexo, cor, idade e outras formas de discriminação.
6. Olhando para o futuro: alguns desafios
Precisamos nutrir a “utopia”, ou seja, construir em meio a este contexto social injusto e desigual, em que a doença e a pobreza falam mais alto do que o bem saúde, um horizonte de significado (o conceito evangélico de “reino de Deus”). Em nossas terras, o SUS tem de funcionar muito bem e devemos colaborar nessa direção. Essa é grande utopia a ser concretizada. Tal horizonte deve ser o guia para todas as nossas ações, escolhas, investimentos, buscas e pesquisas, pensamentos e sonhos nessa área em busca do “reino da saúde”. É preciso ousar profeticamente para a implementação de políticas sociais orientadas pelos referenciais éticos da justiça, equidade e solidariedade. Nosso grande objetivo é construir uma sociedade justa e igualitária, que permanentemente estimule a solidariedade coletiva voltada para a proteção do bem para todos sem preconceitos de nenhum tipo, seja de origem, raça, gênero, cor, religião, idade ou nacionalidade.
Mudança no conceito de saúde: de “caridade” para “direito”. Hoje em dia, esse direito está sendo transformado num “negócio”, num mercado livre sem coração! A necessidade de “empoderamento” dos pobres em termos de reivindicação (cidadania) e para fazer algo concreto e forçar o direito básico à saúde – garantida pela Constituição de muitos países (controle social do Estado pela sociedade civil) – ainda é um direito teórico e meramente virtual na maioria dos países da América Latina e Caribe. Em teoria, tudo é perfeito! Mas tudo é perfeito em retórica legal, já que, na realidade, as coisas são injustas. A mudança que todos esperamos e estamos buscando não vem de cima para baixo, mas da conscientização e da educação para a cidadania e o controle social.
Aqui o papel da pastoral da saúde é vital! Ela tem de fazer diferença pela sua presença e ser “o sal e a luz” neste contexto marcado pela escuridão de doenças e mortes evitáveis. Além de cuidar dos doentes (dimensão samaritana), deve trabalhar para mudar estruturas político-sociais desiguais (dimensão político-institucional). Outro desafio é preservar a identidade cristã das instituições de saúde mantidas pela Igreja e pelas congregações religiosas cujo carisma as insere no mundo da saúde a serviço dos pobres e doentes. Além disso, zelar pelos valores humanos e cristãos na formação dos futuros e atuais profissionais da área da saúde.
Na visão cristã, a saúde é vista como um “dom que Deus” confiou à responsabilidade humana. Essa responsabilidade se traduz no cuidado da própria saúde e da saúde dos mais vulneráveis, com competência tecnocientífica e humano-ética. Esse cuidado competente é um imperativo ético que se traduz, na prática, numa prioridade de ação para os discípulos missionários no mundo da saúde. O que foi prioritário para Jesus há de ser também para os seus seguidores. A ação de Jesus, sua proximidade e solidariedade com os pobres e doentes, liberta-os de toda espécie de sofrimento e enfermidade, devolvendo-lhes a sua saúde integral. O ser humano, neste início de século XXI, ao buscar saúde, está diante da busca pela salvação integral!
Nesse âmbito da saúde, faz-se necessário desenvolver a chamada bioética dos “quatro pês”: promoção da saúde, prevenção de doenças, proteção dos vulneráveis, presas fáceis de manipulação, e precaução ante o desenvolvimento biotecnológico, protegendo a população dos possíveis riscos de danos moralmente inaceitáveis – quer sejam uma ameaça à saúde ou à vida humana, quer sejam ameaças graves e irreversíveis – e injustos para com as gerações presentes e futuras. A responsabilidade pública pela saúde nos move a agir e refletir que, se uma sociedade se funda cada vez mais em valores da justiça, equidade e solidariedade, não deve aceitar as injustas e evitáveis desigualdades sociais, principalmente no âmbito da saúde. É mais do que hora de garantir a todos os brasileiros “o acesso universal, integral e equânime” aos cuidados necessários de saúde.
* Camiliano, professor doutor de Teologia Moral/Bioética no mestrado em Bioética do Centro Universitário São Camilo – SP. Membro da Comissão Nacional de Revisão do Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina (CFM). Autor de numerosas obras na área de bioética.
BIBLIOGRAFIA
CALAHAN, D. Equity, quality and patients rights: can they be reconciled? In: STEPKE, F. L.; AGAR, L. (Ed.). Interfaces between bioethics and empirical social sciences. Santiago: World Health Organization: American Health Organization, 1992.
CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO (CELAM). Discípulos e missionários no mundo da saúde: guia da Pastoral da Saúde para a América Latina e o Caribe. São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2010.
DRANE, J. PESSINI, L. Bioética, medicina e tecnologia: desafios éticos na fronteira do conhecimento humano. São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Loyola, 2005.
FORTES, P. A. C. Bioética, equidade e políticas públicas. O mundo da saúde, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 143-147, 2002.
______; ZOBOLI, E. L. C. P. Z. (Org.). Bioética e saúde pública. São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Loyola, 2003.
GOSTIN, L. O. Public health ethics: traditions, professions and values. Acta
Bioethica, v. 9, n. 2, p. 177-188, 2003.
ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE SALUD. La salud pública en las Américas. Washington: OPS, 2002.
PEGORARO, O. A. Ética é justiça. Petrópolis: Vozes, 1995.
PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C. P. Problemas atuais de bioética. 9. ed. São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Loyola, 2010.
RAWLS, J. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Disponível em: <www.who.int>.
Pe. Leo Pessini, mi