Publicado em março-abril de 2012 - ano 53 - número 283
O urgente resgate do direito à saúde!
Por Pe. Christian de Paul de Barchifontaine, mi
Introdução
Os grandes problemas da humanidade nos dias de hoje, em grande parte com soluções científicas e técnicas disponíveis, embora infelizmente não para todos, só poderão ser solucionados por meio da reconstrução da comunhão humana. Esta deverá permear todos os níveis com base na solidariedade, entendida como a determinação firme e perseverante no empenho pelo bem comum e também para que cada um seja verdadeiramente responsável pelo outro. O que se preconiza como valor fundamental é a pessoa humana, considerada em sua globalidade física, psíquica, social e espiritual. Eis grande desafio para o exercício da cidadania.
Nossa reflexão tem o intuito de apresentar rápida radiografia do contexto socioeconômico e social, apresentando alguns elementos mais importantes constitutivos da pós-modernidade, tais como a globalização econômica excludente em curso, a primazia do econômico sobre o social, algumas raízes históricas da injustiça no Brasil, a necessidade de educação cidadã e o resgate do direito à saúde para todos.
1. Alguns dados importantes do nosso contexto socioeconômico e social
1.1. Rápida radiografia da pós-modernidade
Vivemos em tempos de pós-modernidade, em que se reverenciam estilos de vida e de filosofia, com base nos quais se constrói uma ideia tida como arquissinistra: o niilismo, o nada, o vazio, a ausência de valores e de sentido para a vida. Mortos Deus e os grandes ideais do passado, a arte, a história e o desenvolvimento, passou-se a valorizar a condição individual e a sua própria salvação intramundana. O pensamento pós-moderno carrega consigo a proposta de que, para as pessoas, não há sentido no processo de busca do entendimento dos movimentos da história, para assim se entregarem ao presente, ao prazer momentâneo, ao consumo e ao individualismo.
Como parte do movimento da pós-modernidade incluem-se as novas tecnologias, como a informática, a cibernética e a telemática, e o descartável, entre outros fatores que repercutem fortemente no processo de transformação da organização social. Na esfera psicológica, concebem-se as regras morais, valores sociais e religiosos como aprisionamento. Preconiza-se junto às pessoas do tempo pós-moderno maior importância à sua sensibilidade do que à sua inteligência, de forma que se desenvolvam sensações e emoções sem limites, com o mínimo de dor.
Atrelado à condição pós-moderna está o cultivo de uma mentalidade imediatista, em que tudo é relativo e ilusório, sem ideologia e ideais verdadeiros, enfatizando o libertar dos instintos reprimidos e deixando-se levar pela sensibilidade, de modo que se aproveite ao máximo do presente e não haja preocupação com o futuro, pondo de lado até mesmo questões ligadas à morte. A pessoa dos tempos pós-modernos é induzida a viver um “pacifismo consensual”, representado ideologicamente pela expressão “Paz e Amor”: a paz num nivelamento em que ninguém diz o que é certo, em que não existem normas de conduta nem valores a serem seguidos, muito menos uma moral transcendente; o amor situa-se numa liberalização sem limites, sem fidelidade, sem compromisso, sem duração. Nessa mesma linha de pensamento pode-se inserir questões relacionadas à apatia política e à valorização da imagem.
1.2. O crescimento da globalização econômica excludente
O capitalismo, teoria que se fortaleceu no século XIX, pode ser o grande responsável por esse progresso desenfreado, atingindo, sobretudo na década de 1980, o acirramento das desigualdades sociais, a ponto de ser nominado de “capitalismo selvagem”. O termo “selvagem” parece refletir com propriedade o sentimento hobbesiano de que “o homem é lobo para o próprio homem”.
Nesse contexto de luta pela sobrevivência e adaptação necessária ao sistema, perderam-se de vista os ideais nobres, como respeito e dignidade pela vida e pelo outro, permitindo que cada um seja, por esse princípio, adversário comum dos outros.
A crise do paradigma ético encontra-se igualmente atrelada a todo esse movimento desenfreado de busca “por um lugar ao sol”. O individualismo ocupa lugar de destaque em todo esse cenário social. Diante disso, a questão central remete-nos à busca de um conjunto explicativo dos possíveis caminhos a serem percorridos pela humanidade. Um dos pontos de compreensão desse quadro encontra-se no movimento instaurado no final do século XX, a globalização.
A questão que se apresenta é: Como podemos construir um mundo mais justo, com menos desigualdade social? Precisamos pensar que a economia deve estar a serviço do bem-estar social. Para isso, não podemos deixar que “os filhos das trevas sejam mais espertos que os filhos da luz”; tampouco se deve permitir que a dignidade das pessoas seja ultrajada e violentada pela ganância de um segmento. O bem-estar de poucos não deve ser custeado pela maioria excluída; uma maioria que não desejou ser excluída, mas muitas vezes se acostumou com o assistencialismo social que a pôs à margem de qualquer tentativa de inclusão.
Se a voz da maioria configura o sistema democrático, elege seus governantes, constitui o estado de direito, por que não ouvir essa mesma maioria que vive à margem da sociedade? É hora de consumirmos esse “artigo de luxo” que é o pensar, pois afinal não somos máquinas, somos seres humanos! A cidadania expressa um conjunto de direitos e deveres que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo. Quem não exerce sua cidadania fica marginalizado ou excluído da vida social e da tomada das decisões. O calar tem sido um dos caminhos historicamente seguidos por parcela da sociedade que tende a não levar a sério a coisa pública, considerando que os direitos seriam privilégios de uma minoria e a desigualdade social “algo natural”.
A cidadania não nos é dada, mas construída e conquistada com base na capacidade de organização, participação e intervenção social.
1.3. A primazia do “fator econômico” em detrimento do “fator social”
O pensamento econômico do capitalismo selvagem considera ser prejudicial à eficiência econômica a “intromissão” da moral e de valores sociais. Assim, torna-se difícil equacionar eficiência social como condição significativa para a eficiência econômica. São os economistas da atualidade os defensores dos “sacrifícios” necessários para a salvação do mercado. Nessa concepção, fora do mercado não há salvação. Insiste-se no fato de que só o mercado pode produzir eficazmente quantidades ilimitadas de bens de consumo para satisfazer os desejos ilimitados de todos, para que se possa assim instalar o “paraíso” na terra.
No sistema de mercado, toda produção é voltada para atender os desejos dos consumidores, daqueles que não são excluídos porque podem e têm condições de consumir. O desejo é muito mais poderoso que a realidade. Desejar estar no mercado substitui o estar efetivamente nele. O desejo é internalizado, não há necessidade de maiores pressões: o desejo aderiu ao projeto. E são necessários os sacrifícios humanos para a satisfação dos desejos dos mais aptos, dos eleitos, daqueles que conseguem trilhar o estreito caminho da competição e da eficácia.
O “mercado” na atualidade tende a consolidar uma forma de idolatria, qual seja, “a religião da mercadoria”, “a espiritualidade do mercado”. O dogma central dessa postura é que “o dinheiro tudo pode, move o céu e a terra”. A espiritualidade apresenta a tese de que a humanização se dá no e pelo consumo. Simbolicamente, os templos dessa “idolatria” são os bancos, com seus sacerdotes, os banqueiros e os financistas, que prestam o maior culto ao dinheiro; os bancos também têm os seus sacrários: os cofres-fortes. Atrelada a essa concepção consolida-se a procura compulsiva de espaços representativos do “poder consumista”, como shoppings e cidades de consumo. O que na realidade se exige é fé irrestrita e confiança ilimitada no caráter benéfico da lógica econômica.
Algumas concepções do sistema econômico não propõem mais a inclusão de todos no mercado, e sim reciclagem e diversificação da produção, para provocar o consumo dos que estão no mercado. Os outros, “os que sobram”, são mantidos a distância. Dá-se o desmanche social para enfraquecer os movimentos populares nas suas reivindicações políticas, econômicas e sociais.
Se o “mercado” não tem compromisso com o povo, com as pessoas, então será preciso resgatar o mercado como realidade humana. As relações de mercado são relações sociais que regem a produção, a distribuição e o consumo de bens e serviços. Tratando-se de relações sociais, o social, e não o individual, é que deveria ocupar a centralidade do mercado. Portanto, é preciso compreender que uma visão mais alargada de mercado pressupõe o atendimento das metas sociais, incluindo o das necessidades básicas do ser humano, entre as quais uma fundamental, a saúde.
2. As raízes do Brasil injusto que negam o direito à vida e à saúde
A seguir, algumas causas da injustiça social no Brasil, a qual dificulta o exercício da cidadania.
2.1. A herança escravocrata
Esta gerou uma mentalidade de indiferença em relação à desigualdade, à violência e à exclusão. É como se fosse “natural” que a opulência convivesse com a pobreza ou que as regalias de poucos coexistissem com a supressão dos direitos da maioria. Temos uma cultura que aceitou conviver com a violência – a mais cruel: a exclusão – e acreditou ser possível conciliar ideais libertários e democráticos com uma estrutura social absolutamente injusta. Os escravos, depois da abolição, deixaram de ser sustentáculo da economia e passaram a ser excluídos, marginalizados. Essa foi a primeira massa de excluídos. O aspecto dramático foi que os escravos foram substituídos por aqueles que a Europa expulsara.
2.2. A relação perversa entre os planos econômicos e as políticas sociais
É como se coubesse à política social reparar as desigualdades que a economia gera ou aprofunda. No passado, tinha-se a visão de que a economia deveria crescer primeiro, para depois se cuidar dos aspectos sociais. Decorre daí que, com base em uma herança escravocrata, se acumularam os fatores de desagregação. Com a aceleração do processo inflacionário, agravou-se a concentração da renda.
2.3. A ineficiência de nossas políticas sociais
Existem hoje, no país, condições para equacionar nossos problemas sociais. A democracia trouxe a participação, o debate e a indignação diante da injustiça. A sociedade vem cobrando dos governantes medidas corajosas e eficientes e está pronta para dar a sua contribuição.
O governo tem, portanto, a responsabilidade de adotar as políticas adequadas, indicar os rumos e mobilizar esse desejo de mudança. Mas o combate à injustiça social do Brasil é tarefa que transcende a ação exclusiva do Executivo. Requer uma ação conjunta da sociedade. Se não houver mobilização de todos, principalmente dos mais necessitados, as camadas mais influentes da sociedade farão pressão para que a situação permaneça como está, de modo que não percam os privilégios, o que significa, resumidamente, manter a desigualdade social.
A igualdade de oportunidades é um dos fundamentos da democracia e pressupõe acesso universal à educação e à saúde. Se mantida a assimetria social, serviços como saúde e educação beneficiarão apenas os que têm condições de decisão, que já têm poder e recursos; daí a importância da educação para o exercício da cidadania.
3. Entendendo o que significa cidadania
Vejamos rapidamente o conceito de Estado, sociedade civil e mercado para então definirmos o que entendemos por cidadania neste contexto. O Estado é o resultado da correlação de forças políticas, econômicas, sociais e culturais; é o conjunto de organizações e leis que regulamentam e permitem a vida de um país por meio de três poderes: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. O Estado tem por finalidade promover o bem comum. A sociedade civil é a sociedade organizada, que defende os interesses e os direitos dos cidadãos, vigilante para que o Estado cumpra seu dever de atender às necessidades básicas da população. O mercado é basicamente a organização da economia, envolvendo produção, troca e venda dos bens.
A cidadania é compreendida como o exercício da plenitude dos direitos, como garantia da existência física e cultural e reconhecimento das pessoas como atores sociais, manifestando-se concretamente pelo exercício do voto e pela participação nos conselhos municipais ou estaduais de saúde, de educação e de idosos, entre outros. A realização individual e comunitária da cada pessoa é sempre considerada um valor acima do Estado e do mercado. No centro de todo processo político tem de estar o cidadão. Mas quem é o cidadão? O cidadão é uma pessoa revestida de plenos direitos civis, políticos e sociais que, como uma de suas obrigações, trabalha pela proteção vigilante do Estado, no usufruto dos direitos. Para atingirmos essa realidade, necessitamos ser educados.
4. O grande desafio da educação para a cidadania
Educar, no fundo, é preparar cada pessoa para esse papel social. Nas sociedades complexas atuais, a participação em projetos comuns ultrapassa em muito a ordem da política em sentido estrito. É na sua atividade profissional, cultural, associativa, de consumidor que cada membro da coletividade deve assumir as suas responsabilidades perante os outros. Há, pois, que preparar cada pessoa para essa participação, conscientizando-a dos seus direitos e deveres, mas também desenvolvendo as suas competências sociais e estimulando o trabalho em equipe na escola.
Assim, educar é moldar o caráter das pessoas para que possam alcançar a condição de cidadãs cooperativas na construção da sociedade solidária. A formação do cidadão é o cultivo da liberdade, da solidariedade, da tolerância, da convivência democrática, da luta contra a discriminação e a desigualdade social. Os valores da educação para a cidadania se baseiam no modelo dialógico – a capacidade de estabelecer diálogo racional com todos. E os valores-guia são: diálogo, respeito, tolerância, empatia, compreensão, solidariedade, dignidade da vida humana, igualdade, liberdade, entre outros.
De qualquer forma, é certo que o processo de avanço das garantias dos direitos da cidadania depende fundamentalmente muito mais dos fatores reais de poder que integram a constituição do Estado do que das formas e modelos jurídicos. Decorre daí a importância das reivindicações da sociedade civil, organizada em movimentos sociais, em comunidades de base, ONGs etc., uma vez que, por meio delas, a cidadania e a democracia (conceitos indissociáveis) serão efetivamente conquistadas.
O conceito de cidadania está na ordem do dia, porque ela significa exatamente o avanço da própria democracia substancial, ou seja, aquela que caminha para a igualdade social e econômica. Assim, a base verdadeira dessa transformação está na educação política (em sentido amplo) do povo, envolvendo tanto a participação na vida coletiva quanto a educação para a ética na política. A educação é, na verdade, precondição para o exercício da cidadania. Além de ser um direito social básico e elementar, é o caminho – ou a condição necessária – que permite o exercício concreto da conquista dos direitos da cidadania, entre os quais o direito fundamental à saúde.
5. Em torno da necessária conquista do direito à saúde na prática!
A saúde é direito humano fundamental e, conforme a Carta Magna de nosso país (1988), deve ser garantido a todo brasileiro. A saúde não pode ser definida apenas como a ausência de doenças. É, antes de tudo, o resultado das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, lazer, liberdade e acesso a serviços de saúde.
Promover a saúde significa intervir socialmente na garantia dos direitos e nas estruturas econômicas que perpetuam as desigualdades na distribuição de bens e serviços. As políticas de saúde existem para implementar estratégias governamentais que visam corrigir os desequilíbrios sociais e propiciar a redução das desigualdades sociais.
Ao examinarmos a situação da saúde brasileira, encontramos uma série de problemas que são consequência das condições de vida da população e refletem desigualdades de várias ordens. São desigualdades provenientes de uma distribuição não equitativa de riquezas, recursos e oportunidades. Poucos têm muitos direitos, e muitos têm quase nenhum. Garantido na lei, negado na prática. O mesmo ocorre com a distribuição de renda e os recursos públicos.
A saúde do povo brasileiro não vai bem. A mortalidade infantil no país ainda é alta em comparação com outros países. A mídia faz festa diariamente com o “caos” na assistência médico-hospitalar pública brasileira. Hospitais lotados, filas de espera enormes, planos de saúde que excluem literalmente os idosos no momento em que mais precisam de cuidados, quase nada é coberto pelo convênio. Greves constantes de trabalhadores de saúde por melhores salários e condições dignas de trabalho. Aumento de casos novos de doenças como a dengue, a tuberculose etc.
É preciso que a ação de cidadania se exerça via controle social, com participação ativa e crítica nas instâncias oficiais, em que se decide sobre as políticas e recursos de saúde. Isso tem de ocorrer em âmbito federal (Conselho Nacional de Saúde), estadual (Conselho Estadual de Saúde) e municipal (Conselho Municipal de Saúde). É a sociedade organizada vigilante e controlando o Estado.
A saúde é um bem primário, porquanto corresponde a exigência fundamental da pessoa e constitui o pressuposto para a obtenção de outros bens. As diversas legislações de países avançados socialmente definem o conteúdo desse direito, sublinhando a responsabilidade das instituições públicas no que diz respeito à promoção, prevenção e cuidado para com as necessidades da saúde.
No caso do Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) é um sistema fundado na justiça e na solidariedade, ótima concepção filosófica. Infelizmente resta muito ainda para fazê-lo funcionar a contento, e, após 20 anos de sua criação, urge resgatá-lo da teoria e torná-lo funcional e operacional na prática, pois a vida de 150 milhões de brasileiros depende exclusivamente dele!
* Camiliano, enfermeiro, mestre em Administração Hospitalar e da Saúde, doutorando em Enfermagem na Universidade Católica Portuguesa (UCP). Docente no mestrado em Bioética do Centro Universitário São Camilo. Pesquisador do Núcleo de Bioética do Centro Universitário São Camilo. Atualmente, reitor do Centro Universitário São Camilo – São Paulo, Brasil ([email protected]).
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Pe. Christian de Paul de Barchifontaine, mi