Publicado em maio-junho de 2012 - ano 53 - número 284
Crer em Jesus Cristo hoje
Por Pe. Manuel Hurtado, sj
Esta é a vida cristã: vivermos “[…] com os olhos fixos naquele
que é o autor e realizador da fé, Jesus” (Hb 12,2).
INTRODUÇÃO
Que significa crer em Jesus Cristo hoje? Sua vida, sua pessoa e seu estilo de viver ainda nos dizem alguma coisa? A mais de 2 mil anos das primeiras comunidades que com ele viveram, somos instigados a interrogar nossa fé em Cristo. É essa interrogação que nos permitirá entrar no âmago do sentido do crer em Jesus Cristo hoje. Não se trata simplesmente de dar uma resposta conhecida, pronta, como a de muitos catecismos e livros de formação que circulam em nossas paróquias. Tampouco se trata de dar resposta que busque um recuo identitário e excludente, pouco dialógico, ao qual estão tentados alguns grupos cristãos contemporâneos. Torna-se necessária uma resposta mais de cunho pessoal e experiencial, resposta que transpasse nossas entranhas crentes. Uma resposta crente, sim, que, contudo, não ignore a contribuição das pesquisas históricas realizadas sobre Jesus, especialmente durante o século passado e inícios deste. É necessário voltar ao elementar da fé e da vida cristã.
A imagem de Jesus Cristo foi deturpada ao longo das épocas. Houve uma multiplicidade de imagens de Jesus Cristo em circulação, e muitas delas ainda circulam em nossos dias. A figura de Jesus de Nazaré esteve sempre exposta e indefesa, muitas vezes à mercê dos desejos desordenados dos seres humanos. O Jesus dos evangelhos foi se diluindo num mar incomensurável de ícones falsificados. Por isso, crer em Jesus Cristo hoje não é algo evidente. Constatamos que a fé cristã, nos dias atuais, não se transmite mais culturalmente como aconteceu durante vários séculos em nosso continente… A matriz cultural da fé cristã que tornava possível a sua transmissão já não é onipresente.
Sabemos bem que muitos que professam a fé cristã acreditam em tudo, menos em Jesus Cristo morto e ressuscitado! Sentimos que a vida cristã se separou paulatinamente do que lhe é central: viver seguindo o estilo de Jesus de Nazaré. O cristianismo foi aos poucos acumulando lastros inúteis, sobrepondo à imagem do Jesus dos evangelhos e ao cristianismo histórico uma série de práticas piedosas, devoções quase idolátricas e rituais exangues que conduziram à deturpação da espiritualidade, da oração e do culto cristão. Lamentavelmente, aquilo que era completamente marginal, secundário e prescindível tornou-se fundamental, primário e indispensável.
Nosso itinerário é simples. Trata-se de um caminho de volta a Jesus. Desenvolve-se revisitando alguns lugares fundamentais de sua vida. Se voltarmos aos caminhos de Jesus, é para reconhecê-lo neles. Se transitarmos pelos caminhos da comunidade cristã nascida depois da Páscoa, é para tentarmos percorrer, ao mesmo tempo, os caminhos de nossa própria comunidade de fé, isto é, revitalizar a nossa fé em Jesus, confessado como o Cristo. É para sermos cristãos ao estilo de Jesus Cristo, autor e realizador de nossa fé.
1. Voltar a Jesus: memoria Iesu
A estrutura mesma de nossa fé cristã é de caráter anamnético, isto é, nossa fé é possibilitada e configurada pela memória de um evento: Jesus Cristo. A vida cristã se realiza na recordação de Jesus de Nazaré. Paulo nos convida a aceitar uma tarefa fundamental e constante em nossa vida cristã: “Lembra-te de Jesus Cristo ressuscitado dentre os mortos” (2Tm 2,8). Poderia acaso haver vida cristã sem a recordação de Jesus? Poderíamos acaso crer em Jesus Cristo sem fazer memória cotidiana do homem de Nazaré?
Essa recordação passa pela lembrança de um caminho: o caminho de Jesus com os que o seguiam antes e depois da Páscoa. Se quisermos voltar a Jesus, devemos entrar nesse mesmo caminho que ele e seus seguidores percorreram. Nesse caminho de recordação, não estamos sozinhos. O Espírito Santo é quem está no coração mesmo do exercício da memoria Iesu. Com efeito, João nos diz que o Espírito Santo que o Pai enviará em nome de Jesus é que nos ensinará tudo e nos recordará tudo o que Jesus nos disse (cf. Jo 14,26).
Hoje a comunidade cristã constituída tem a responsabilidade de levar viva a memória de Jesus Cristo. De fato, não poderíamos ter acesso a Jesus se não houvesse homens e mulheres que dele fizessem memória. Por isso, o grande desafio da fé cristã está em saber que memória está sendo feita de Jesus Cristo. O flagrante perigo de nossa época é voltar a falsificar a imagem dele. São muitas as tentações contemporâneas, mesmo tentações eclesiais, de querer novamente fazê-lo à nossa própria imagem e segundo nossos próprios interesses. Justamente aí reside a importância de levar em conta os estudos históricos sobre Jesus. Isso pode garantir, em parte, que não o tornemos uma marionete que faça e diga o que nos convém. A recordação de Jesus deve necessariamente passar pela Galileia, mas não sem passar pelo Gólgota, lugar onde desaparece toda ambiguidade possível na fé em Jesus Cristo, no seu seguimento, na vida cristã.
Nós, comunidade cristã contemporânea, não fomos os primeiros a fazer memória de Jesus Cristo. Se hoje podemos recordar Jesus, é porque antes de nós foi feita a memória dele pela comunidade de fé, pela sua Igreja. Nesse sentido, podemos dizer que a recordação de Jesus Cristo passa pela reminiscência da história da Igreja que testemunhou essa memória viva dele, sem esquecer que esse testemunho também é feito da recordação dos esquecimentos e perversões da figura de Jesus, da recordação da “deslembrança” da singularidade desse homem de Nazaré confessado como o Cristo. A fé em Jesus Cristo existe como vitória da memória na luta contra o esquecimento. Jesus Cristo existe no risco do esquecimento, no risco do olvido dos homens…
Em síntese, não poderíamos fazer a memória de Jesus Cristo sem passar pela memória da vida da Igreja, memória que pode remontar até a “lembrança primordial” de Jesus Cristo que chega até nós pela mediação do testemunho das primeiras comunidades cristãs que o proclamavam e adoravam, vivendo e morrendo por ele. Essa “lembrança primordial” situa-nos bem antes dos desenvolvimentos doutrinais ou dos credos do século II. Sabemos que bem no começo não havia doutrinas nem dogmas. Tampouco havia um modo único, universalmente aceito, de acreditar em Jesus, nem sequer existia um modo único de segui-lo.
2. Crer em Jesus Cristo é crer ao estilo de Jesus
Se essa afirmação é verdadeira, devemos saber como Jesus cria. Ele precisava crer? Sim, definitivamente. É isso que importa em primeiro lugar. Ele vivia a experiência de crer inserido no âmago da condição humana, no meio do claro-escuro da história. Jesus era um homem que buscava e perscrutava o horizonte. Longe de ser um vidente, um iluminado, faz um caminho de buscas humanas, caminho onde os atos de fé se tornam seu pão cotidiano, especialmente nos momentos de escuridão e de crises. É precisamente nesses momentos que a confiança fundamental no Pai se faz necessária e se torna apoio na descoberta progressiva da sua missão e da surpreendente vinda do Governo de Deus que se manifesta em suas palavras e obras. Diante das dificuldades do caminho e das necessidades implicadas na história do fracasso aparente (era “necessário” que o Filho do homem sofresse muito! – Mc 8,31), Jesus abre-se radicalmente ao Pai em atitude de confiança total, abandonando-se por inteiro nas mãos de quem o acolherá no instante mais escuro da sua existência, no momento da paixão e da morte. Acreditar ao estilo de Jesus é acreditar a partir do mais profundo do abismo.
A fé vivida por Jesus revela uma confiança radical no Pai, especialmente nos momentos-limite da existência, mas não só naqueles momentos extremos. Essa confiança está presente no ordinário dos seus dias, manifestada na contínua e crescente intimidade com o Pai, nos longos momentos de oração pessoal e na compreensão do cerne das coisas humanas no grupo de amigos e amigas que aos poucos foi se constituindo pela vocação. Experiência vital que passa da aclamação mais admirativa da ação do Pai na criação e no coração dos pequeninos à dramaticidade mais profunda da humanidade sem defesa na angústia do Getsêmani. Nesses momentos derradeiros, é a fé-confiança de Jesus no Pai que aparece em primeiro lugar.
Crer em Jesus Cristo é crer ao estilo de Jesus, precisamente quando se crê na tentação, no sofrimento e na paixão, quando a “divindade se esconde”, quando Deus se torna discreto e só se escuta o silêncio extremo do abandono no “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Silêncio rompido só por outra palavra que interpreta o abandono-confiança: “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito” (Lc 23,46). A fé-confiança de Jesus, no limite, no extremo das possibilidades humanas, é acreditar no poder do seu Deus e Pai.
3. Crer em Jesus Cristo é crer no Deus de Jesus
Sabemos quem é Deus porque Jesus nos revela a identidade de Deus. “Ninguém jamais viu a Deus: o Filho unigênito, que está no seio do Pai, este o deu a conhecer” (Jo 1,18). Crer em Jesus é crer no Deus de Jesus, porque isso nos afasta do erro comum e constante de muitos cristãos de projetar sobre Jesus ideias preconcebidas de Deus. Só sabemos quem é Deus com base nas obras e palavras de Jesus. De fato, é Jesus quem mudou a ideia de Deus, impedindo-nos de inserir na palavra “Deus” uma série de ideias a respeito da divindade. Jesus é quem nos mostra qual é o conteúdo e a compreensão da divindade. Jamais o contrário. Agora só nos resta contemplar Jesus para contemplarmos o ícone verdadeiro de Deus.
Contemplando Jesus, damo-nos conta de que seu Pai não deseja ser servido, mas servir à humanidade. Contemplando a figura de Jesus nas bem-aventuranças, descobrimos que Deus não deseja ser temido e obedecido, mas quer ser reconhecido na dor e no sofrimento do inocente. Ao contemplar o conhecido “a mim o fizestes” de Mt 25, percebemos que Deus não é um Deus separado da vida do ser humano. Contemplando a profunda humanidade do homem Jesus, tomamos consciência de que Deus é humano e que só com base nessa singular humanidade de Jesus podemos intuir a singular divindade de Deus, isto é, uma divindade que passa pelo crisol da humanidade. Crer em Jesus Cristo é crer no Deus dos seres humanos e para os homens (Mt 1,23; 28,20; Rm 8,31). Em síntese, crer em Jesus Cristo implica crer que Deus não é sem nós, Deus não é sem os seres humanos.[1]
4. Crer em Jesus Cristo é seguir Jesus
O seguimento de Jesus configura e define a nova proposta de vida decorrente da sua pregação e da sua práxis. Essa nova proposta de vida continua mesmo depois do evento pascal, isto é, depois da morte e ressurreição de Jesus. Ora, sabemos que o seguimento dele diz bem o que é a vida cristã. No entanto, podemos nos perguntar se hoje ainda é válido falar em seguimento, visto já não ser possível seguir Jesus, literalmente, pelas estradas empoeiradas da Galileia. Certamente, quando falamos de seguimento, não o levamos ao pé da letra; pensamos, sobretudo, em seguir, metaforicamente, o rastro de Jesus. Numa palavra, seguir Jesus significa hoje viver ao estilo de Jesus.
A Galileia foi o lugar onde o seguimento começou (At 10,37). Mas de fato, nessas terras, houve duplo começo: o do seguimento pré-pascal e o do seguimento pós-pascal. Antes da Páscoa, Jesus chamou os discípulos nessa província, mas, depois da Páscoa, ela também foi ponto de partida para que os discípulos e discípulas continuassem no seguimento de Jesus, anunciando o evangelho. Sem dúvida, a Galileia é muito mais que um lugar geográfico, é um lugar teológico. Marcos é quem insiste que a Galileia é lugar do encontro com o Ressuscitado (Mc 14,27-28; 16,7). O retorno para a Galileia é equivalente a voltar à fé em Jesus Cristo. Precisamente aí é que as aparições do Ressuscitado aconteceram. A Galileia, terra onde o reconhecimento do Ressuscitado se realizará graças ao Espírito dado pelo Senhor. O Espírito que nos leva a crer que Jesus é o Cristo é o mesmo Espírito que nos faz dizer: “Jesus é Senhor” (1Cor 12,13). Doravante, será necessário reconhecer o Ressuscitado no caminho (Lc 24,13-35).
5. Crer em Jesus Cristo é levar em nosso corpo as marcas de Jesus
À maneira de Paulo, crer em Jesus Cristo implica levar as marcas de Jesus no próprio corpo. “Doravante ninguém mais me moleste. Pois trago em meu corpo as marcas de Jesus” (Gl 6,17). Essas marcas de Jesus em nosso corpo significam que levamos o selo de Jesus. Esse selo que é a garantia de que lhe pertencemos totalmente. Somos do Senhor Jesus. Ele nos marcou com o selo indelével do seu coração traspassado (Jo 19,34). Isso tudo evoca certamente em nós o conhecido texto do Cântico dos Cânticos: “Coloca-me como um selo sobre teu coração, como um selo em teu braço” (Ct 8,6). Também vêm à nossa memória as palavras do Evangelho de João: “Trabalhai não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna, alimento que o Filho do homem vos dará, pois Deus, o Pai, o marcou com seu selo” (Jo 6,27). Trata-se da marca do Espírito Santo que recebemos no batismo.
Esse último texto tem conotações trinitárias evidentes. Nas marcas de Cristo somos envolvidos na vida de Deus. É isso que nos lembra Ap 14,1: “Eis que o Cordeiro estava de pé sobre o monte Sião com os cento e quarenta e quatro mil que traziam escritos na fronte o nome dele e o nome do seu Pai”; e também Ef 1,13: “Nele, vós, tendo ouvido a palavra da verdade – o evangelho da vossa salvação – e nela tendo crido, fostes selados pelo Espírito da promessa, o Espírito Santo”. Assim, nós, acreditando no Filho, somos tocados pela vida da Trindade, levando a marca do Cordeiro, do Pai e do Espírito.
Mas o que significa levar as marcas de Jesus Cristo? Trata-se de assumir a “carga” (o fato de “levar” o peso!) que implica o seguimento do Crucificado. É essa carga que levamos no corpo marcado, “estigmatizado” cristãmente; isto é, nossa vida configurada à vida de Jesus Cristo, pela ação do Espírito Santo. Levar as marcas de Jesus equivale a viver ao estilo de Jesus Cristo. Nossas marcas aparecerão claramente quando lutarmos pela justiça, quando buscarmos a fraternidade, a igualdade, e gastarmos nossa vida pela vida em risco dos pequeninos e empobrecidos, quando os famintos e marginalizados ocuparem lugar central em nossa vida. Levar as marcas de Jesus é “ter em nós os sentimentos de Cristo Jesus” (Fl 2,5), é nos deixarmos enriquecer com a sua pobreza (2Cor 8,9). Antes de nós, o Senhor Jesus se identificou com os pobres da terra, com os que não contam nem para as estatísticas, com aqueles que não são ninguém. Isso é crer em Jesus Cristo.
6. Crer em Jesus Cristo é crer que ele está vivo, que Jesus é o vivente
A afirmação de que Jesus vive é de caráter fulcral para a fé cristã. Não é possível crer em Jesus Cristo sem afirmar que ele é o Vivente para sempre. Ele é a razão de nossa esperança. Essa esperança que triunfa da ameaça constante da morte. O Ressuscitado “encarna” os anseios mais fundamentais das pessoas de todos os tempos. Como Tomé, somos convidados a reconhecer o Senhor vivo na transparência do seu corpo ferido e ressuscitado, convidados a reconhecer no lado aberto do crucificado-ressuscitado aquele que vive, para poder também dizer: “Meu Senhor e meu Deus” (Jo 20,28).
Dizer que Jesus é o Vivente é crer que tudo aquilo que supõe a desumanidade do ser humano e toda a negatividade da vida está, de fato, superado na Vida de Jesus. Isso não significa achar que o cristão não tenha nada mais a fazer. Não! O sentido dessa afirmação é que todos os aparentes “sem sentidos” da vida humana ganham sentido na Vida de Jesus; que podemos viver na esperança de que a última palavra está dita na Vida definitiva de Jesus. Esse é precisamente um dos sentidos primordiais da ressurreição. Na ressurreição de Jesus, a plenitude do humano é atingida, a realização da vida humana, isto é, a humanização do ser humano é possível.
Pelo evento da ressurreição, Jesus Cristo é a plenitude do humano para sempre. É nesse sentido que Jesus é para nós o Vivente. Ele é aquele no qual a vida humana alcança sua plenitude para ser-nos comunicada. Vivemos pelo Vivente, somos seres humanos no Vivente. Isso é crer em Jesus Cristo; isso é crer na Vida do Ressuscitado-Crucificado. Esse é o sentido da pergunta dos homens com vestes fulgurantes (anjos!) que as mulheres encontraram no sepulcro de Jesus: “Por que procurais entre os mortos aquele que vive?” (Lc 24,5). Nossa fé em Jesus Cristo empurra-nos a enxergar as possibilidades de nossa humanidade profunda, a olhar nossas feridas, não nelas mesmas, mas nas feridas do Ressuscitado. Não podemos buscar o Vivente entre os mortos. Não podemos buscar nossa vida entre os cadáveres de nossa história pessoal e comunitária. Os estigmas de Jesus ressuscitado se tornam para nós, cristãos, o único caminho para contemplar o futuro transfigurado de nossa história traspassada, sofrida.
Uma palavra para não concluir
A fé em Jesus Cristo não se limita à simples confissão doutrinal da sua divindade; tampouco conhecer Jesus Cristo se limita ao conhecimento racional e exterior da sua pessoa. Crer em Jesus Cristo hoje é maneira concreta de viver como cristão, maneira concreta de segui-lo. A fé em Jesus Cristo só pode ser entendida hoje como vida configurada segundo o evangelho de Jesus, como vida que adere existencialmente à pessoa de Jesus Cristo. Talvez seja esse o sentido da oração de Paulo: “[…] que Cristo habite pela fé em vossos corações e que sejais arraigados e fundados no amor” (Ef 3,17).
Nós, cristãos, deveríamos ter claro que o cristianismo só tem sentido se lido e interpretado à luz de Jesus. Toda outra perspectiva ou chave interpretativa poriam em risco nossa fé cristã iniciada e realizada por e em Jesus, mas que vai além de Jesus. Ou seja, nossa fé cristã é cristológica, mas precisamente por isso e nisso ela é trinitária. Que fique claro: se nossa fé cristã é trinitária, é porque ela é cristológica. Nunca pelo avesso. Jesus é a revelação de Deus, porque nele Deus se encarnou (Jo 1,14). Não esqueçamos nunca: se algo sabemos de Deus, é porque Jesus no-lo revelou (Jo 1,18). Só podemos falar de Deus à luz de Jesus. Esse é o sentido do pensamento de B. Pascal: “Deus fala bem de Deus” (Pensamentos, n. 799).
Por isso é preciso voltarmos à Galileia. E voltarmos à Galileia (e a nós mesmos!) é imprescindível para voltarmos a Jesus. Mas não se trata de voltarmos para ficar estagnados no passado, presos na recordação melancólica de um pretérito irrepetível. Não. A memória de Jesus é memória para nos voltarmos ao futuro – não a um futuro incerto, mas ao futuro de Jesus, transformado pela Páscoa em nosso próprio futuro. A vida cristã, a fé em Jesus Cristo, consiste em nos deixar alcançar por esse futuro que só podemos viver como presente, sempre como primícias do vindouro. Nesse sentido, podemos dizer que o “tempo ordinário” do cristão é em realidade o Advento.
Paradoxalmente, o exercício da memoria Iesu, levando-nos ao passado, projeta-nos ao futuro, fazendo-nos crentes aqui e agora. Crer só é possível no coração da tensão entre passado e futuro. Crer como cristão é crer inclinado ao futuro que nos vem de Jesus, dizendo: “Vem, Senhor Jesus!” (Ap 22,20). Crer em Jesus Cristo é fazer caminho com ele. Fazer caminho com aquele que inicia e realiza nossa fé. E fazer memória de Jesus Cristo implica caminhar “com os olhos fixos naquele que é o autor e realizador da fé, Jesus” (Hb 12,2). Acreditar em Jesus Cristo hoje é uma forma de ser homem ou mulher ao estilo de Jesus, segundo as exigências do evangelho de Jesus Cristo. É essa nossa fé elementar em Jesus Cristo para hoje.
* Jesuíta, doutor em Teologia pelas Faculdades Jesuítas de Paris (Centre Sèvres), professor de Teologia Sistemática na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje) em Belo Horizonte. Último artigo publicado em cristologia: “Novas cristologias: ontem e hoje. Algumas tarefas da cristologia contemporânea”, Perspectiva Teológica, ano 40, n. 112, setembro/dezembro 2008. E-mail: [email protected]
BIBLIOGRAFIA
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GALILEA, Segundo. Seguir a Cristo. São Paulo: Paulinas, 1978.
MARTÍNEZ, Felicísimo. Creer en Jesucristo, vivir en cristiano: cristología y seguimiento. Estella (Navarra): Verbo Divino, 2005.
MOINGT, Joseph. La imagen de Jesús. Selecciones de Teología, Barcelona, v. 47, n. 185, 2008, p. 12-22.
NOLAN, Albert. Jesus antes do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1988.
PALÁCIO, Carlos. Que significa crer em Jesus Cristo hoje? Horizonte, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, 1/1997, p. 41-54.
SESBOÜÉ, Bernard. Imágenes deformadas de Jesús: modernas y contemporáneas. Bilbao: Mensajero, 1999.
[1] Cf. DH 425. O Concílio de Constantinopla II afirma que a união hipostática é katà súnthesin, i.e., “segundo a composição”. Diz-se: “A santa Igreja de Deus […] confessa a união de Deus Verbo com a carne segundo a composição, ou seja, segundo a hipóstase”.
Pe. Manuel Hurtado, sj