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Publicado em julho-agosto de 2012 - ano 53 - número 285

Comunicação litúrgica: ação sinergeticamente divino-humana

Por Frei José Ariovaldo da Silva, ofm

1. O que às vezes se entende por comunicação litúrgica

Pelo que se percebe em muitas práticas celebrativas por aí afora, comunicação litúrgica vem sendo identificada mais ou menos com barulho. Quanto mais barulho, discursos doutrinários altiloquentes, movimentação, agitação, frenesi, melhor e mais autêntica seria a comunicação litúrgica.

O padre sobe com seus “ajudantes” ao palco e se “comunica” (!) com o povão, que, em reação, delira em vibrantes “aleluias”, aplausos e comovidos prantos, lavando a alma. Note-se que o espaço chamado presbitério se transforma em palco de show, e os diferentes ministérios são vistos não como atores da celebração, mas como “ajudantes do padre”.

Comunicação litúrgica, então, seria isto mesmo: ele fala bem (mesmo que seja abobrinha moralista e sentimental massageando egos ávidos de poder e prazer); faz gestos espalhafatosos (mas que atraem, pois divertem!); veste-se com exuberância tal – ou, ao contrário, com pseudossimplicidade tal –, de “encher os olhos” (tudo isso diverte!)… Ele é “o cara”… Comunicador litúrgico!…

Mas, tratando-se de celebrar de fato a divina liturgia, isto é, de expressar sacramentalmente a presença viva do mistério pascal, leva os ritos “no chute”: às pressas, sem unção, sem devoção, ou com artificialismo sonolento, mero ledor de textos do missal, e/ou “inventando coisas” – querendo ser “criativo” –, ou tudo num formalismo tal, que, enfim, fica difícil perceber (e viver) o fato de que o mistério de Cristo está aí, gratuitamente, disposto a ser posto em comum, dividido, repartido…

Tudo, no fundo, gira em torno do ego próprio do padre e dos outros ministros ou da assembleia, que “assiste” ao espetáculo e se entretém: todos desconectados e, por conseguinte, alienados da raiz e centro da nossa fé, o Mistério, que está aí como tenro broto de feijão sufocado debaixo de uma terra dura e seca, penando para encontrar uma brecha a fim de vir ao sol e a muitos alimentar…

E muitos, talvez, ousam chamar a isso tudo “comunicação litúrgica”! Mas, então, o que seria comunicação litúrgica e como ela se dá? Vale a pena meditar um pouco sobre isso.

 

2. A palavra “comunicação” no seu sentido originário latino

Consultando os dicionários – etimológicos ou não – da língua latina, portuguesa e italiana, pode-se perceber o seguinte:

A palavra “comunicação” tem sua origem no verbo latino communicare.

Este verbo, por sua vez, liga-se ao adjetivo latino communis (de cum+múnus), normalmente traduzido como “pertencente a todos ou a muitos”, “comum”, “coletivo”.

De communis (comum, pertencente a todos ou a muitos, coletivo) vem o verbo communicare.

Consequentemente, communicare é normalmente traduzido em primeiro sentido como “pôr em comum, repartir, dividir alguma coisa com alguém, partilhar”. Daí o sentido de “reunir, associar, misturar”. Intransitivamente leva também o sentido de “falar, conversar, comunicar”. Mas ainda se traduz por “comungar”, como veremos.

É interessante constatar que, na língua italiana (uma das línguas mais próximas do latim), o verbo comunicare, além dos sentidos de “comunicar, tornar comum, participar, ter relação, conviver”, tem o sentido de “comungar, dar comunhão”. A palavra italiana comunicare significa também “comungar”.

É o sentido que o termo latino communicare tem normalmente no Missal Romano! Communicare/communicatio, na edição latina do Missal Romano, tem a ver com “comungar/comunhão”, como podemos conferir logo mais. Em outras palavras, já podemos intuir que, na liturgia, communicare/communicatio (comungar/comunhão) tem a ver com “pôr em comum, repartir, dividir algo com alguém, partilhar”.

E aí vem a pergunta: o que é “posto em comum, repartido, dividido conosco e entre nós, partilhado”, no jogo da divina liturgia, para que possamos falar, de fato, em “comunicação litúrgica”? E como isso acontece? São perguntas que permanecem em pé, cujas respostas vamos tentar perceber aos poucos, neste nosso “caminho a Emaús”.

 

3. “Communicare/communicatio” (comungar/comunhão) no Missal Romano

Como já anunciamos anteriormente, communicare/communicatio, na edição latina do Missal Romano, tem que ver com “comungar/comunhão”. Confiramos, pois, tais palavras em suas diferentes formas verbais e na forma substantiva!

 

Communicamus (comungamos)

– Na oração após a comunhão, no 5º domingo da Quaresma, é feito o seguinte pedido: “Concedei […] que sejamos sempre contados entre os membros de Cristo, cujo Corpo e Sangue comungamos (communicamus)”. Em outras palavras, só para adiantar: o Corpo entregue e o Sangue derramado (mistério pascal) de Cristo põem-se em comum (são comunicados) com nossos corpos em assembleia e nós (pela oração e ação de comer e beber juntos) pomos nossos corpos em comum (comungamos) com o mistério de “Cristo em nós, a esperança da glória” (Cl 1,27), e assim, nessa intercomunhão solidária, experimentamo-nos Corpo eclesial a viver a justiça, o amor e a paz.

– De forma quase idêntica aparece a segunda epiclese (invocação do Espírito Santo) das Orações Eucarísticas VI/A, B, C e D: “[…] que, pela força do Espírito do vosso amor, sejamos contados, agora e por toda a eternidade, entre os membros do vosso Filho, cujo Corpo e Sangue comungamos (communicamus)”.

 

Communicantes (em comunhão; vós que participais; comungando)

– Na Oração Eucarística I (Cânon Romano) se reza: “Em comunhão (communicantes) com toda a Igreja, veneramos a sempre Virgem Maria […]”. “Com toda a Igreja”, aqui, significa com toda a Igreja mesmo! Com a Igreja ainda peregrina rumo ao céu (o papa, os bispos, todos os que guardam a fé recebida dos apóstolos, os irmãos e irmãs pelos quais oramos, a própria comunidade reunida em torno do altar e, por que não, todos os que já “partiram desta vida marcados com o sinal da fé”) e com a Igreja do céu (Maria, são José, os apóstolos e mártires e todos os santos que oram por nós)! Com todo o corpo eclesial do céu e da terra temos algo em comum, ou seja, o mistério pascal de Cristo, que, pelo Espírito, “aqui” nos “re-une” na presença do Pai para o memorial pascal, para a oferta do sacrifício pascal, para a ação de graças, em espírito de serviço. Como, aliás, rezamos na anámnesis/ofertório da Oração Eucarística II: “Celebrando, pois, a memória da morte e ressurreição do vosso Filho, nós vos oferecemos, ó Pai, o pão da vida e o cálice da salvação; e vos agradecemos porque nos tornastes dignos de estar aqui [‘re-unidos’] na vossa presença e vos servir”. Aliás, logo no início da missa, a própria assembleia responde à saudação do sacerdote que preside: “Bendito seja Deus que nos ‘re-uniu’ no amor de Cristo!”

– Igualmente nas Orações Eucarísticas VI/A, B, C e D se reza: “E em comunhão (communicantes) com a bem-aventurada Virgem Maria, com os apóstolos e mártires e todos os santos, vos louvaremos e glorificaremos”.

– A antífona da comunhão da memória de Nossa Senhora das Dores (15 de setembro) proclama: “Vós que participais (communicantes) dos sofrimentos de Cristo, alegrai-vos, para que, ao manifestar a sua glória, vossa alegria não tenha limites”. Note-se que, aqui, a forma verbal communicantes foi traduzida em português pela expressão “vós que participais”, dando a entender que “participação” e “comunhão” se equivalem.

– A oração após a comunhão na missa votiva de todos os santos apóstolos diz: “Ó Deus, comungando (communicantes) na fração do pão e nas orações, fazei-nos perseverar com alegria e simplicidade de coração na doutrina dos apóstolos”.

 

Communicavit (comunicou)

– Na renovação das promessas sacerdotais, na Quinta-Feira Santa, o bispo se dirige aos sacerdotes presentes com estas palavras: “Filhos caríssimos, celebrando cada ano o dia em que o Senhor Jesus comunicou (communicavit) o seu sacerdócio aos apóstolos e a nós […]”. Note-se que aqui a forma verbal communicavit foi traduzida simplesmente por “comunicou”, dando a entender que “comunicar”, de fato, tem que ver com “pôr em comum”.

 

Communicent (comuniquem)

– Na oração de bênção sobre a esposa e o esposo (bênção nupcial), na celebração do matrimônio, faz-se também este pedido: “Concedei a N. e N. que, pelo sacramento do matrimônio, comuniquem (communicent) um ao outro os dons do vosso amor e, sendo um para o outro sinal da vossa presença, se tornem um só coração e uma só alma”. Também aqui “comunicar” tem muito que ver com “pôr em comum”.

 

Communicet (em comunhão)

– Na missa e orações por várias circunstâncias (outra oração pelo papa), se reza na oração da coleta: “[…] Concedei ao que faz as vezes do Cristo na terra confirmar na fé seus irmãos para que toda a Igreja se mantenha em comunhão (communicet) com ele, no vínculo da unidade, do amor e da paz […]”.

 

Communicatio (comunhão)

– Na fórmula de saudação inicial do ordinário da missa, o sacerdote diz: “A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão (communicatio) do Espírito Santo estejam convosco”. De fato, segundo o apóstolo Paulo, na diversidade de dons temos todos em comum (comungamos) o mesmo Espírito (cf. 1Cor 12,1-11).

– Reza assim a antífona da comunhão tanto da missa do 24º domingo do tempo comum como da missa pelo próprio sacerdote – C (missas e orações por diversas necessidades) e da missa votiva do Preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo: “O cálice de bênção pelo qual damos graças é a comunhão (communicatio) no Sangue de Cristo; e o pão que partimos é a comunhão (participatio) no Corpo do Senhor” (cf. 1Cor 10,16). Note-se que, na versão latina, as palavras communicatio e participatio praticamente se intercambiam em torno do mesmo sentido de comunhão (no original grego, simplesmente: κοινωνία )!

 

4. No jogo da divina liturgia, o que é posto em comum (comunicado):

uma reflexão pela frente…

Antes, uma espécie de parêntese. Curiosamente, diferentemente do Missal, o original latino da constituição Sacrosanctum Concilium sobre a sagrada liturgia (SC) usa uma única vez o verbo communicare (porém traduzido em português pelo verbo “participar” – cf. SC 18) e uma única vez, citando At 2,41-42, o substantivo communicatio (traduzido em português por “comunhão” – cf. SC 6). Duas vezes apenas usa o substantivo communio: uma ao referir-se à “comunhão do sacerdote” e outra ao falar da “comunhão sob duas espécies” (SC 55). Usando um texto do Sacramentário Veronense para proclamar que em Cristo nos foi “comunicada” (tradução portuguesa!) a plenitude do culto divino, usa o verbo indire (cf. SC 5). Outras vezes, ao falar da comunhão eucarística, usa uma vez o verbo sumitur (de sumere: tomar [sobre si], encarregar-se, assumir), traduzido em português por “nos é comunicado” (cf. SC 47), e outra vez usa o verbo sumunt (de novo de sumere), traduzido em português por “comungam” (cf. SC 55). Talvez tenha havido um desconhecimento (ou esquecimento?) da riqueza de sentido primordial que a palavra communicare/communicatio tem nas orações do Missal, a maioria das quais vindas da mais antiga tradição litúrgica da Igreja romana. Entretanto, mesmo não usando a palavra communicare/communicatio, o documento conciliar apresenta com outras palavras, no seu bojo (cf. SC 5-10), o sentido contido nos textos do Missal, isto é, do mistério posto (ou que se põe) em comum na sagrada liturgia, da qual somos convidados a tomar parte.

De fato, a SC privilegia muito mais o verbo participare (em sua forma infinitiva, adjetiva e no gerúndio), ocorrente 14 vezes (cf. SC 8, 10, 11, 17, 21, 33, 48, 53, 56, 85, 90, 106, 113), e o substantivo participatio, ocorrente também 14 vezes, nos números 12, 14, 19, 26, 27, 30, 41, 50, 55, 79, 114, 121, 124. Isso também é significativo. Não estaria aí embutido, de alguma maneira, o sentido da comunicação litúrgica? No entanto, a meu ver, communicare/communicatio esconde e revela uma mística litúrgica bem mais envolvente, profunda e abrangente, como vemos no próprio Missal.

Mas voltemos ao Missal Romano. É significativo o fato de este usar tantas vezes a palavra latina communicare/communicatio e, na maioria das vezes, ela ser traduzida em português como “comungar/comunhão”. E aí retornamos à pergunta feita anteriormente: no jogo da divina liturgia, o que é “posto em comum conosco e entre nós”, que a palavra latina communicare/communicatio (comungar/comunhão) parece evocar? E como isso acontece e aparece?

Ensina-nos o Concílio Vaticano II que a obra da salvação, prenunciada por Deus, é realizada em Cristo, continua na Igreja e se coroa em sua liturgia (cf. SC 5-6). Percorramos, pois, por esse caminho, para ver aonde vamos chegar, nesta meditação mais ou menos despretensiosa…

 

5. A obra da salvação, prenunciada por Deus…

Deus tomou a iniciativa de “pôr em comum” com o ser humano seu próprio “sopro de vida” (Gn 2,7), criando-o “à sua imagem e semelhança” (Gn 1,27). O ser humano, por sua vez, em sua liberdade, punha em comum com Deus e todas as criaturas o seu dom de cuidar para que tudo vivesse em sua plena inteireza sob o mesmo Espírito comunicador de vida e paz. Era o paraíso!

Mesmo depois que o ser humano – distraído pelos enganos da serpente e, consequentemente, alienando-se livremente da Beleza vital de seu próprio corpo e de todas as demais criaturas (numa palavra, do paraíso) – deixou de comungar do sonho do Criador, não foi abandonado ao poder da morte. Deus o socorreu com bondade, para que, ao procurá-lo, o pudesse encontrar. De fato, esse jogo de “comunicação” entre o divino e o humano aparece de forma perfeitamente sintetizada na Oração Eucarística IV: “[Pai santo], criastes o homem e a mulher à vossa imagem e lhes confiastes todo o universo, para que, servindo a vós, seu Criador, dominassem (cuidassem de) toda criatura. E quando pela desobediência perderam a vossa amizade, não os abandonastes ao poder da morte, mas a todos socorrestes com bondade, para que, ao procurar-vos, vos pudessem encontrar”. Deus não deixou de comunicar (pôr em comum) ao ser humano seu sopro de vida, para que, ao acolher este Deus, ele (o ser humano nos sinais de sua história concreta) pudesse recuperar o sopro vital divino.

Pois bem, toda a história do Antigo Testamento foi um longo tempo de namoro/noivado, às vezes tranquilo, às vezes conflituoso e até dramático, entre o Deus misericordioso e compassivo e o ser humano fragilizado, de modo a ir preparando a humanidade para o resgate da plena comunhão dos primordiais tempos paradisíacos…

 

6. …advém e se realiza em Cristo…

Até que finalmente chegou o momento (a plenitude dos tempos!) em que, de fato, Deus se casou (comunicou/comungou) com a humanidade em seu estado primordial paradisíaco, a saber, na pessoa de Maria por ele criada. A comunicação (= comunhão) entre Maria e o Espírito de Deus foi então perfeita: entrelaçaram-se o Espírito de Deus e aquele corpo não corrompido da humanidade numa comunicação absolutamente transparente e sem empecilhos (cf. Lc 1,28.30.35.48), e desta comunhão surgiu o milagre de um “fruto bendito”, o “Filho do Altíssimo” (cf. Lc 1,42.32). Virgem que era, isto é, totalmente desvinculada dos “enganos” deste mundo e apenas conectada (comunicação/comunhão) com a pureza do mistério originário da vida (o Verbo eterno de Deus), em Maria possibilitou-se a maravilha (o milagre) da encarnação, a saber: a pureza do mistério profundo da vida, por obra do Espírito, assumiu forma humana sobre este nosso pequenino planeta Terra e, nele (nesse mistério), nós nos eternizamos. Como, aliás, cantamos no prefácio III da oração eucarística na solenidade do Natal do Senhor: “No momento em que vosso Filho assume nossa fraqueza, a natureza humana recebe uma incomparável dignidade: ao tornar-se ele um de nós, nós nos tornamos eternos”. Na gravidez de Maria, nossa mãe Terra e, nesta, todos nós nos tornamos grávidos da presença viva do amor divino e eterno que a tudo permeia. Mistérios da comunicação divina no humano e vice-versa!

Ou, como proclama o Evangelho de João: “E o Verbo se fez carne e armou sua tenda entre nós”. E o que aconteceu? “Vimos a sua glória, a glória do Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1,14). Vimos, pudemos tocá-lo e nossos corpos foram “tocados” por ele: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os olhos, o que contemplamos e nossas mãos apalparam no tocante ao Verbo da vida […], nós também vos anunciamos a fim de que também vós vivais em comunhão conosco. Ora, a nossa comunhão é com o Pai e seu Filho, Jesus Cristo” (1Jo 1,1.3). Por isso, nessa comunhão com Cristo, nossa missão agora é também continuar a “tocá-lo”. E como? “Tocando” os corpos dos irmãos e irmãs com gestos de amor, como Deus nos amou (cf. 1Jo 3,11-24; 4,7-21). Assim, experimentamos o que significa comunicação humana no divino e comunicação divina no humano: comunhão.

Temos, nesse sentido, um exemplo lindo na história de Zaqueu. O pequenino Zaqueu permitiu que Jesus entrasse em sua casa, isto é, deixou aquele Jesus com um projeto do Pai bem definido e evidente comungar de sua intimidade. E o que aconteceu? “Esquecendo” a perigosa distração dos seus rentáveis negócios e conectando-se (em comunicação/comunhão profunda) com sua alma, isto é, com sua imagem e semelhança de Deus que a pessoa de Jesus espelhava, foi transformado por ele em templo da solidariedade (comunhão) com os pobres. Assim, Jesus podia garantir ao simpático Zaqueu que a salvação entrou na sua casa, isto é, na casa do seu “corpo fazendo-se corpo” com outros corpos por ele amados (cf. Lc 19,1-10).

Toda a trajetória de vida de Jesus, desde sua encarnação até sua morte na cruz, foi vivida num dramático jogo de duas paixões: a paixão do Esposo que vem para se aninhar e semear a libertação em nossa Tenda e a paixão da esposa (humanidade) que o acolhe ou, apaixonada por outros amantes, lhe fecha as portas…

Então, como diz a constituição sobre a sagrada liturgia, “toda a obra da redenção humana e da perfeita glorificação de Deus, da qual foram prelúdio as maravilhas divinas operadas no povo do Antigo Testamento, completou-a Cristo Senhor, principalmente pelo mistério pascal de sua sagrada paixão, ressurreição dos mortos e gloriosa ascensão. Por esse mistério, Cristo, ‘morrendo, destruiu a nossa morte e, ressuscitando, recuperou a nossa vida’ (prefácio da Páscoa). Pois do lado de Cristo, dormindo na cruz, nasceu o admirável sacramento de toda a Igreja’” (SC 5).

 

7. …continua na Igreja e se coroa em sua liturgia, numa esplêndida

sinergia divino-humana

Sinergia, aqui, tem que ver com “energia conjunta” do Esposo/Cristo e da Esposa/Igreja permeada do Espírito, numa ativa intercomunicação amorosa; encontro ativamente comprometido entre dois amores.

No gesto máximo de solidariedade do Esposo para com sua amada (= ele comungando com a própria morte do ser humano fragilizado!) manifesta-se a máxima grandeza do amor, ou melhor, a vitória do amor, que, assim sendo, transforma a nossa morte em vida. E já não somos mais dois separados (criatura e Criador), mas um só, formando em Cristo um só corpo eclesial, numa esplêndida sinergia (comunicação) divino-humana. Torna-se realidade o que Jesus pediu em sua “oração eucarística”, durante a sua última ceia, às vésperas de sua glorificação (cf. Jo 17): “Que todos sejam um como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, para que eles estejam em nós e o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17,21).

Assim, podemos afirmar com imensa gratidão que, agora, nos ritos litúrgicos da Igreja, está realmente presente o mistério de Cristo. Consequentemente, podemos dizer: as ações rituais da Esposa são gestos do próprio Esposo, e vice-versa. Em outras palavras, as ações rituais são expressões vivas da “nova e definitiva aliança” (comunhão) selada no sangue do Cordeiro. Nelas o Esposo comunga (comunica, põe em comum) com sua Esposa (e vice-versa!) a vitória do amor para que, a partir daí, com a contribuição de todos(as), a humanidade e todo o planeta Terra possam usufruir daquela qualidade de vida que Deus sonhou para toda a criação.

Cristo, de fato, está realmente presente (comungando conosco!) na globalidade da celebração litúrgica desta Tenda/Igreja que somos nós. Essa era a consciência da tradição mais antiga dos cristãos, ultimamente resgatada pelo Vaticano II (cf. SC 7).

Tal presença procurava se expressar da melhor maneira possível pela ritualidade da liturgia. A divina liturgia (obra da Trindade) se comunica (se põe em comum) conosco no rito que nos é dado realizar em memória da Páscoa.

Tal presença foi representada também pela forma artística dos espaços da celebração. Por exemplo, na abside de basílicas antigas, vemos bem representada a presença viva de Cristo no meio da assembleia, presidindo-a. A figura de Cristo – vejam seu rosto, seu “olhar”! – está ali solene, com os olhos abertos (olhos abertos!… olhem esse detalhe!) sobre a assembleia. Significa precisamente a presença viva do grande protagonista da liturgia da Igreja. Ao entrar nesse espaço sagrado ou, sobretudo, ao participar da liturgia nele celebrada, o próprio espaço, assim, leva-nos a viver uma experiência de comunicação viva e real entre o mistério de Cristo e nós (e vice-versa!). O mistério, assim, mexe com nossos espaços interiores e nós, em troca, lhe respondemos e correspondemos com nossos sentidos e sentimentos.

A consciência da presença real, isto é, do invisível com o visível e no visível, é fundamental para que aconteça de fato a experiência de comunicação litúrgica. Mas trata-se de presença muito intensa; tão intensa, que a gente não vê; ela como que se ausenta, de tão intensa e impregnante que é. Segundo Michel Carrouges:

 

O culto está necessariamente fundado na presença de Deus. Mas esta presença não se dá senão através de certa ausência. A presença é certa, mas inteiramente transcendente e escondida, enquanto a ausência é evidente. Ambas são interdependentes. Se a ausência fosse total, estaríamos no ateísmo, e o culto seria um puro absurdo. Se a presença fosse total, não haveria necessidade de igrejas e de ritos para suprir a ausência. A liturgia é uma obra de passagem […] Enquanto realiza uma comunicação com Deus, é um mistério que não se pode pegar (agarrar) […] enquanto obra humana, a liturgia é uma representação, como o teatro […] (apud TENA, 2004, p. 175).

 

Portanto,

 

[…] por um lado há uma comunicação do inefável, que se oferece por causa do “uma vez por todas” da Hora de Cristo. É o chamado opus operatum próprio dos sacramentos, e sabemos que seu fundamento está precisamente neste caráter divino, cristológico, das ações sacramentais como ações de Cristo, na força do Espírito. Neste sentido a liturgia é por si mesmo lugar “objetivo” de comunicação (TENA, 2004, p. 175).

 

Ao mesmo tempo,

 

a liturgia é também obra humana, e o é essencialmente. Não somente humana como realidade pessoal, mas, mais concretamente, como obra material, visível. Tertuliano afirmava este princípio em sua célebre frase: “Caro salutis est cardo” (“A carne é o eixo da salvação”). São Bento dava de forma lapidar aos monges a norma de recitar os salmos de maneira frutuosa: […] fazê-lo de tal maneira que nosso espírito esteja em sintonia com o que dizemos (Mens concordet voci). O que dizemos – a vox – é fundamental na liturgia. A lógica da encarnação fundamenta a lógica da liturgia (Ibid.).

 

Mas também é bom reter que as realidades visíveis que formam o conjunto ritual e são, ao mesmo tempo, pauta e expressão do espírito que anima os participantes não se limitam ao âmbito terreno. Como lembra o Vaticano II: “Na liturgia o humano está ordenado e subordinado ao divino, o visível ao invisível, a ação à contemplação e o presente à cidade futura que buscamos” (SC 2).

O conceituado liturgista A. M. Triacca resume essa admirável intercomunicação divino-humana com estas palavras: “A celebração não se reduz às ‘manifestações’ celebrativas que coincidem com o que os participantes realizam; a celebração é ação das Três Pessoas divinas, da qual os participantes são convidados a tomar parte. Trata-se de uma ação sinergeticamente divino-humana (= theantrópica)” (apud TENA, 2004, p. 176).

 

8. E para ir finalizando: um exemplo simples

Digamos que você, numa celebração litúrgica, exerce o ministério de leitor(a): pessoa que se dirige ao ambão e dali proclama a Palavra. Mas você também é membro do Corpo de Cristo. Portanto, você é mais que seu corpo visível. Nesse seu corpo, para além de todas as suas máscaras e couraças, você é um corpo deificado, você é a sua própria essência, filho(a) de Deus: “Não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20)… O problema é que, cada vez mais distraídos com tantos padrões e “tem-quês” que tomaram conta de nossos corpos e, pior ainda, cada vez mais antenados com mil e uma coisas que o mundo moderno nos favorece, facilmente nos desconectamos do Espírito que nos permeia… Alienamo-nos, e assim, nesse exílio de nossa própria Casa, se torna quase impossível comunicar Espírito e Vida. Transmitimos apenas palavras, sons, ruídos mais ou menos agradáveis, pois, como diz Rubem Alves, “nossos canais ficaram entupidos”.

Mas vamos lá: antes de você se dirigir ao ambão, você para, toma consciência desse seu corpo deificado (você continua filho/a de Deus!) e que agora exercerá um ministério, o ministério da Palavra que se comunica a outros corpos (a SC insiste numa participação “consciente” e “interior” de todos/as na liturgia). Você silencia, aquieta, concentra-se e, para ajudar a se concentrar melhor, presta atenção apenas no ritmo de sua respiração, que traz o sopro da vida e expele as impurezas do corpo… Você entra em sintonia com seu corpo deificado, para além (ou aquém) de todas as suas máscaras e couraças agregadas a esse corpo… Você se comunica (comunga) com sua própria essência, o Espírito que está em você. Faça isso!… Pare, silencie e fique apenas conectado(a) com esse Essencial, tanto de seu corpo como do rito que lhe é dado realizar.

O que acontece? Seu corpo espontaneamente se transforma. Seus passos, sem forçar, ao se dirigirem ao ambão, assumem naturalmente o ritmo calmo, sereno e comedido do Espírito que permeia seu corpo. Os seus passos já não são seus passos. São os passos do próprio Mestre que se dirige ao ambão para pôr em comum com os outros os segredos do seu coração. Por quê? Porque você está andando, agora, embalado(a) a partir de dentro, a partir da sua comunhão consciente com o Espírito que conduz você ao ambão.

O que acontece? Uma vez no ambão, seu corpo, seu rosto, seus olhos, seu contato com o livro, embora sejam seus, já não são seus: são o corpo, o rosto, os olhos, os gestos do próprio Mestre que se apresenta com carinho e compaixão diante de uma assembleia toda ouvidos para ouvir e toda corpo para acolher a Palavra. Isso a assembleia percebe e, percebendo, interage no mesmo Espírito e já celebra. Por quê? Porque ela experimenta em você um brilho novo, diferente: o brilho de uma mística que vem do seu interior, porque você está conectado(a) com o Mistério do seu corpo e de todos os corpos.

O que acontece? Ao proclamar a leitura, sua voz, embora seja sua voz, já não é sua voz: é a voz do próprio Mestre que, suave e pausadamente, com firmeza, clareza e convicção, comunica (põe em comum) à assembleia sua presença de salvação e consolo. Isso a assembleia percebe e, percebendo, comunga com a Palavra, que, entrando pelos olhos e pelos ouvidos, penetra o coração…

Isso vale para todos os atores e atrizes da celebração litúrgica: presidente, acólitos, leitores e salmistas, animadores, músicos e instrumentistas, sacristães, ministros da comunhão eucarística, a própria assembleia… E para cada ação ritual, por mínima que seja.

 

A modo de conclusão

E concluo esta “meditação” com estas palavras do renomado liturgista espanhol Pere Tena:

Na liturgia não fazemos fundamentalmente um discurso, mas uma ação. A liturgia é “ergon”, “urgia” (ação), não “logía” (discurso racional), mesmo que haja uma teologia da liturgia; mas esta teologia se funda precisamente sobre a ação litúrgica: é a mistagogia. Não se trata, portanto, de “explicar” o que se vai fazer ou o que se faz; trata-se de fazer o que se está dizendo. É, de novo, a regra do “mens concordet voci” (a mente esteja em sintonia com a voz).

Se não levamos em conta tudo isso, podemos falar de comunicação litúrgica evangelizadora? Podemos afirmar que a celebração litúrgica, dentro de sua perspectiva de obra humana e divina, estará cumprindo sua missão? Caberá, certamente, aceitar que a ação divina sacramental realiza […] seu efeito de comunicação ex opere operato. Mas a força global que a celebração possui, em seu desenvolver ritual, ficará mais ou menos frustrada segundo a ausência ou debilidade das condições de sua realização. Diremos, com Michel Carrouges, e com o desejo que a frase seja bem interpretada, que “sem participação mística, as cerimônias do culto não são mais que gesticulações delirantes” (TENA, 2004, p. 193).

 

* Frade franciscano e sacerdote, doutor em Liturgia; professor de Liturgia no Instituto Teológico Franciscano (ITF), em Petrópolis (RJ). É membro fundador da Associação dos Liturgistas do Brasil (Asli), da qual foi primeiro presidente. Faz parte da Equipe de Reflexão da Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). É membro da comissão consultiva para acabamento da Basílica Nacional de Aparecida. Faz parte do Centro de Liturgia D. Clemente Isnard, ligado ao Instituto Pio XI da Universidade Salesiana (Unisal), em São Paulo. Faz conferências e presta assessoria em cursos, seminários e Semanas de Liturgia em institutos teológicos, dioceses e paróquias pelo Brasil afora. Publicou diversos livros, entre os quais: O domingo, páscoa semanal dos cristãos; Os elementos fundamentais do espaço litúrgico para a celebração da missa: sentido teológico, orientações pastorais, pela Paulus; O Movimento litúrgico no Brasil. Estudo histórico; O mistério celebrado: memória e compromisso.

 

 

BIBLIOGRAFIA

BECKHÄUSER, A. Comunicação litúrgica: presidência, homilia e meios eletrônicos. Petrópolis: Vozes, 2003.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. nn. 294, 947, 955, 1076, 1088, 1092 (cf. Índice analítico, verbete “Comunicação”).
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Frei José Ariovaldo da Silva, ofm