Publicado em março-abril de 2012 - ano 53 - número 283
Bíblia e Saúde pública: a vida com dignidade
Por Edna Maria Niero; Celso Loraschi
O direito à saúde deveria ser protegido no mundo inteiro. Consta da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) e está previsto na Constituição Federal do Brasil de 1988, em seu artigo 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado (…)”. A forma mais comum de ver essa condição vital, conforme a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), é a ausência de doenças e completo bem-estar físico, mental e social. Como processo contínuo, a saúde é mesmo uma experiência de bem-estar, resultante de um equilíbrio dinâmico, a qual reflete uma resposta aos desafios ambientais, expressa no modo de viver o cotidiano em sociedade.
A Constituição brasileira, nos artigos 196 a 200, não restringe a saúde apenas à garantia de serviços assistenciais ao cidadão acometido de alguma enfermidade, mas pressupõe, antes de tudo, importante deslocamento teórico-conceitual do tema saúde de um campo estritamente biológico para o campo político e histórico da construção dos direitos. Prevê políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças, além de serviços e ações que possam promover, proteger e recuperar a saúde das pessoas. Estabelece ainda que a saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.
A Lei Orgânica da Saúde nº 8.080/1990, que regulamenta o Sistema Único de Saúde (SUS), garante os princípios do direito à saúde, do acesso universal e gratuito, da integração de ações preventivas com as curativas e da participação da comunidade (controle social) que se dá, de modo especial, por meio dos conselhos de saúde (criados pela Lei Federal nº 8.142/1990), de caráter permanente e deliberativo, compostos de representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários. Esses conselhos têm a finalidade de atuar “na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros” (art. 1º, § 2º). As políticas públicas assumidas pelo Estado estão intimamente relacionadas ao grau de organização e pressão da sociedade civil para sua implantação. A participação da sociedade na gestão do SUS é um avanço que pode definir as prioridades da área da saúde e o acompanhamento da implementação das ações.
No entanto, a saúde como um direito social, constitucionalmente reconhecido, nem sempre é assegurada na prática. Evidente está que o direito não se materializa, simplesmente, pela sua formalização no texto constitucional e na legislação conexa. Há simultaneamente necessidade de o Estado assumir uma política de saúde consequente, assegurando os meios que permitam efetivá-la. A realidade denuncia quanto ainda esse direito é violado. Basta ir a um posto de saúde ou a um hospital público (os raros que ainda existem) e contemplar o rosto das pessoas que diariamente aí se aglomeram em busca de atendimento para a cura de suas doenças. A degradação sistemática do atendimento médico-hospitalar, em prejuízo das camadas pobres da população, constitui, hoje, a face mais agressiva da exclusão social em nosso país. A deterioração das estruturas físicas dos serviços de saúde, do financiamento para o setor, da fiscalização estatal sobre os serviços conveniados, além de hospitais fechados, equipamentos obsoletos ou inexistentes, leitos escassos, UTIs desativadas, profissionais desmotivados, longas filas de espera, usuários indignados e frustrados, faz parte do cotidiano de aproximadamente 150 milhões de pessoas sem o amparo dos planos de saúde. Sua situação não condiz com a dignidade inerente a todo ser humano.
1. A bênção da saúde
Na Bíblia, a palavra hebraica que melhor expressa o sentido de “saúde” é shalom, que remete ao pleno bem-estar do ser humano. Em latim, o termo salus significa ao mesmo tempo saúde e salvação: implica uma realidade abrangente de liberdade, justiça, fraternidade e paz. É um bem relacionado ao autor da vida. Deus é quem forma o embrião no seio materno, conhece cada parte do corpo humano e fixa os dias de sua existência (Sl 139[138],13-16). Deus é quem faz viver ou morrer; ele fere e também cura (Dt 32,39). A saúde, portanto, é concebida como dom divino. É uma bênção, entre tantas outras, que o Senhor concede aos que são fiéis à aliança e seguem seus mandamentos (Lv 26,3-13; Dt 28,1-14). A Bíblia também, em muitas de suas passagens, relaciona a doença, entre outros males, a um sinal de castigo por causa das transgressões aos mandamentos divinos (Lv 26,14-26; Dt 28,15-46).
Essa relação bênção-saúde e castigo-doença revela o grau de conhecimento que possuía o povo da Bíblia a esse respeito. Ainda não havia uma capacidade desenvolvida para adequado diagnóstico. Certamente o povo israelita vivia exposto a doenças típicas do clima subtropical próprio do Oriente Médio. Constata-se grande diversidade de doenças, a maioria com denominações genéricas, as quais nem sempre é possível identificar com exatidão: úlceras, tumores, crostas, sarnas, loucura e demência (Dt 28,27-28); cegueira, surdez, deficiência física, mutismo (Is 35,5-6); tísica, febre, inflamação, delírio (Dt 28,22); lepra e doenças de pele (Lv 13-14); contusões, machucaduras e chagas vivas (Is 1,6), afora várias outras. Do mesmo modo, no Segundo Testamento, além das já citadas, encontramos: hemorragia (Lc 8,43), hidropisia (Lc 14,2), paralíticos e lunáticos (Mt 4,24), endemoninhados (Mc 1,32), gangrena (2Tm 2,17), gagueira (Mc 7,32), indigestão e fraquezas (1Tm 5,23), entre outras.
Sendo a saúde concebida como bênção divina, é natural que o primeiro recurso para a cura de uma doença seja a oração. “Filho, não te revoltes na tua doença, mas reza ao Senhor e ele te curará” (Eclo 38,9). Vários salmos são súplicas e desabafos de pessoas doentes; a maioria expressa a visão da doença como consequência do pecado pessoal (Sl 6; 38[37]; 41[40]). A cura está ligada ao perdão dos pecados e, portanto, fundamenta-se na fé em Deus, no socorro que somente ele pode dar (Eclo 35,15-21). Nesse sentido, vários profetas atuam como mediadores da intervenção divina em favor dos doentes. O profeta Elias, por exemplo, é atendido em sua oração e recebe a cura para o filho da viúva de Sarepta (1Rs 17,17-24). Do mesmo modo Eliseu, para o filho de uma mulher de Sunan (2Rs 4,8-37). Por meio do profeta Isaías, Deus revela que ouviu a oração do rei Ezequias e, por isso, lhe concederá a cura de sua doença (Is 38,1-8).
Além da oração, os elementos da natureza são mencionados como meios para a aquisição da saúde: seguindo a orientação do profeta Eliseu, o sírio Naamã curou-se de sua lepra tomando vários banhos na água do rio Jordão (2Rs 5,1-14); ainda Eliseu, fazendo uso do sal, purificou as águas que causavam esterilidade (2Rs 2,19-22); em outra ocasião, misturando farinha à sopa envenenada, tornou-a saudável (2Rs 4,38-41); o vinho e o óleo são usados como primeiros socorros (Lc 10,34); a água é fundamental, e um pouco de vinho melhora o estômago e fortalece o organismo (1Tm 5,23); Isaías usa a massa de figo para curar a úlcera do rei Ezequias (Is 38,21); é bom comer mel (Pr 24,13) e é importante conhecer as virtudes das plantas e raízes (Sb 7,20), pois “da terra o Senhor criou os remédios, a pessoa sensata não os despreza (Eclo 38,4).
Vários textos bíblicos se referem à profissão do médico. Nem sempre revelam uma visão positiva, uma vez que a convicção predominante é que a cura provém unicamente de Deus. O rei Asa, por exemplo, é criticado porque, ao contrair “uma doença muito grave nos pés, não recorreu ao Senhor, mas aos médicos” (2Cr 16,12). Cair nas mãos do médico é sinal de castigo divino: “O que peca contra o Criador, que caia nas mãos do médico” (Eclo 38,15). Há textos favoráveis: neste mesmo capítulo de Eclesiástico aconselha-se a honrar o médico por causa dos seus serviços. O conhecimento que ele possui foi-lhe dado por Deus; por seu intermédio, Deus proporciona a cura e o alívio aos doentes (38,1-7). Após recorrer a Deus pela oração, recomenda-se procurar o médico, “porque o Senhor também o criou; não o afastes de ti, porque dele tens necessidade” (38,12). O médico, para ter êxito e salvar a vida do doente, deve rezar ao Senhor (38,13-14).
Conforme se constata nessas citações, a doença é vista predominantemente como um problema individual, sem relação com o sistema social, político, econômico e religioso. Esta relação vai sendo percebida, de maneira especial, no interior dos movimentos proféticos.
2. Profecia: saúde, direito e justiça
A consolidação da monarquia em Israel trouxe consequências sociais de exploração e abandono de grande parte da população. Os profetas pré-literários, especialmente Elias e Eliseu, atuam em proximidade às vítimas do poder, colaborando na solução dos problemas que afetam o cotidiano de sua vida: a fome, a doença, a morte e outras situações (1Rs 17,7-24; 2Rs 4,1-6,7). A necessidade é o critério que deve mover o amor, a fim de que ninguém seja excluído da vida digna. O socorro aos necessitados é condição para uma sociedade abençoada (Dt 15,4-5). O caminho por excelência apontado é a prática da partilha, o princípio que fundamenta o amor efetivo, um dos principais traços do verdadeiro rosto do povo de Deus.
Os profetas literários percebem com maior clareza a ligação entre os males da sociedade e a estrutura governamental. As estâncias que dão sustentação à monarquia, como o Templo e o palácio, de modo geral são vistas de forma crítica. Os problemas estão inter-relacionados e são resultantes da quebra da aliança com Deus, provocada por uma organização social em conformidade com os interesses dos poderosos.
Os movimentos proféticos surgem à margem do sistema político oficial. Captam a realidade dos pobres e se posicionam na defesa de seus direitos. Em nome de Deus, denunciam os que deveriam promover o direito e a justiça, mas, na verdade, produzem é a transgressão, resultando em gritos de desespero da maioria do povo; onde Deus esperava uvas boas, o que apareceu foram uvas azedas (Is 5,1-7), devido à corrupção de reis, juízes, comerciantes, chefes militares, latifundiários e sacerdotes. As ambições políticas, intrigas palacianas, ganância e acúmulo de bens absorvem o cotidiano dos que deveriam dedicar-se à promoção do bem comum. Os ideólogos do poder – falsos profetas e sacerdotes – encarregam-se de manter a consciência do povo alienada, abafando seus gritos, mantendo-o engessado na estrutura social dos dominantes e procurando convencê-lo de que é inferior e incapaz de qualquer atitude de mudança de sua situação.
São muitos os textos proféticos que expressam a maneira iníqua pela qual o povo é governado, como este do profeta Isaías: “Quanto ao meu povo, os seus opressores o saqueiam, exatores governam sobre ele. Ó meu povo, os teus condutores te desencaminham, baralham os caminhos em que deves andar (…) Que direito tendes de esmagar o meu povo e moer a face dos pobres?” (Is 3,12-15). E continua: “Toda a cabeça está contaminada pela doença, todo o coração está enfermo; desde a planta dos pés até a cabeça, não há lugar são. Tudo são contusões, machucaduras e chagas vivas que não foram espremidas, não foram atadas nem cuidadas com óleo” (Is 1,5-6). Também Oseias relaciona o comportamento dos dominantes com o desfalecimento do povo e a destruição da natureza (4,1-3).
Os profetas constatam ainda que o direito dos pobres e fracos é violado pelos mesmos que praticam um formalismo religioso, como se o culto e a oferta de sacrifícios por si só fossem meios seguros de garantir boas relações com Deus. Oseias opõe-se a essa prática e esclarece qual é a vontade de Deus: “É misericórdia que eu quero e não sacrifícios, conhecimento de Deus e não holocaustos” (6,6). Da mesma maneira, Isaías proclama, a plenos pulmões, qual é o jejum que agrada a Deus: “Romper os grilhões da iniquidade, soltar as ataduras do jugo (…), repartir o pão com o faminto, acolher os pobres desabrigados, vestir os nus (…)” (Is 58). Aponta para a possibilidade de mudança de atitudes, a fim de serem orientadas por um projeto de sociedade baseado no direito, na justiça e na solidariedade.
A imagem que reflete com nitidez a verdadeira atitude que deveria ser assumida pelas lideranças é a do pastor. Sua função é cuidar das ovelhas, protegê-las dos perigos que ameaçam sua vida, defendê-las dos ladrões, buscar a ovelha que se perde. Diante da situação de abandono em que se encontram as ovelhas, Deus mesmo assume a função de pastoreá-las: “Visto que os pastores não se preocupam com o meu rebanho, porque apascentam a si mesmos (…), eu mesmo cuidarei do meu rebanho, eu mesmo lhe darei repouso, buscarei a ovelha que estiver perdida, reconduzirei a desgarrada, enfaixarei a quebrada, fortalecerei a doente (…). Eu as apascentarei com justiça” (Ez 34).
A proposta dos movimentos proféticos com relação à saúde do povo é assim sintetizada por Carlos Mesters:
1. Saúde = reorganizar a sociedade. O trabalho em favor da saúde do povo faz parte da ação mais ampla da organização da sociedade e tem a ver com justiça, partilha, distribuição da terra etc. 2. Defender a vida = atacar as causas da morte. A preocupação maior dos profetas está na linha da medicina preventiva, pois eles defendem a vida e a aliança e denunciam claramente as causas da marginalidade e do empobrecimento do povo. 3. Solidariedade = acolher e denunciar para reorganizar. O trabalho em favor dos doentes está mais na linha da solidariedade. Mas a solidariedade não pode ser desvinculada da estrutura e da consciência. 4. Saúde = fé em Deus, nos irmãos. Compromisso com a saúde do povo e com Deus: são como dois lados da mesma medalha. Ou seja, temos que reaprender dos profetas a “re-ligião”, isto é, aprender como “re-ligar” novamente a observância das leis de saúde com o nosso compromisso de fé com Deus e com os irmãos (Mesters, 1986, p. 19-20, grifo do autor).
3. Saúde e sabedoria
No movimento sapiencial, encontramos inúmeros textos que se referem à saúde. Sábios conselhos, fundamentados na experiência cotidiana, contribuem para a preservação da saúde e do bem-estar. Orientam, por exemplo, contra o excesso: “Não sejas ávido de toda delícia nem te precipites sobre iguarias, porque na alimentação demasiada está a doença. Muitos morreram por intemperança, mas aquele que se cuida prolonga a vida” (Eclo 37,31). A moderação é boa maneira de manter a saúde (Eclo 31,20). A morte pode ser prematura para quem não sabe se cuidar (Sb 1,12).
O bem-estar físico está intimamente ligado aos sentimentos do coração: “Coração alegre, corpo contente; espírito abatido, ossos secos” (Pr 17,22). A alegria do ser humano aumenta seus dias (Eclo 30,22), enquanto a tristeza tira o vigor do coração e leva à morte (Eclo 38,18). Também “a inveja e a cólera abreviam os dias e a preocupação traz a velhice antes da hora” (Eclo 30,23-25). É importante não trilhar o caminho do mal, pois um “coração perverso não encontra felicidade” (Pr 17,20). Ao contrário, “temer o Senhor e evitar o mal será saúde para o corpo e refrigério para os ossos” (Pr 3,7-8). O sábio ainda se pergunta para que serve a riqueza sem a saúde: “É melhor um pobre sadio e forte do que um rico cheio de doenças” (Eclo 30,14).
O livro de Jó, especialmente, questiona a teologia da retribuição desenvolvida pelo sistema religioso oficial, desconstruindo a ideia de vinculação entre doença e pecado. No entanto, para os autores dessa novela bíblica, a doença pode transformar-se num meio pelo qual a pessoa se educa para o verdadeiro temor a Deus. É preciso prestar atenção a Deus, “que fala de um modo e depois de outro (…) e corrige o ser humano sobre o leito com a dor” (Jó 33,14.19). O livro do Eclesiástico, contrariamente ao legalismo imposto pelo sistema de pureza, incentiva a caridade para os que sofrem: “Não fujas dos que choram, aproxima-te dos que estão aflitos. Não temas visitar doentes, porque serás amado por isso” (7,34-35).
4. Jesus: saúde e justiça social
No Segundo Testamento, em vários textos, constata-se a mesma concepção antiga de que a doença é decorrente do pecado humano, como se percebe claramente no episódio da cura do cego de nascença (Jo 9,1-38). Jesus discorda: “Nem ele nem seus pais pecaram (…)” (Jo 9,3). Em alguns episódios, constata-se que a cura está relacionada com o perdão dos pecados (Mc 2,1-12; Jo 5,1-14), denotando que a recuperação da saúde se dá pelo resgate da integridade da pessoa humana violada pela ideologia dominante: “A ligação individualista e moralista, que culpa a própria pessoa pela doença que ela carrega, satisfazia à classe dominante e era usada para marginalizar os pequenos e sofredores (Jo 7,49; 9,34). Jesus coloca a ligação entre pecado e doença em nível de sistema e estrutura e devolve a todos a responsabilidade pelas coisas que acontecem. Há uma ligação de causa entre o sistema judaico e a falta de saúde do povo” (Mesters, 1986, p. 24-25). Com toda a convicção e liberdade, Jesus promove a saúde e a dignidade de cada pessoa, sem atrelamento às leis excludentes: trabalha em dia de sábado (Mc 3,1-6), toca em leprosos (Mc 2,1-12), deixa-se tocar pela mulher hemorroíssa (Mc 5,25-34) e tantos outros gestos. Ele justifica sua ação prioritária junto às vítimas do sistema de poder, dizendo: “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os doentes. Eu não vim chamar justos, mas pecadores” (Lc 2,17).
Jesus movia-se dentro dos princípios da misericórdia e da solidariedade: “Traziam-lhe todos os que eram acometidos por doenças diversas e atormentados por enfermidades, bem como endemoninhados, lunáticos e paralíticos. E ele os curava” (Mt 4,24). Fez-se profundamente solidário com todas as pessoas sofredoras, “a fim de se cumprir o que foi dito pelo profeta Isaías: ‘Tomou sobre si nossas enfermidades e carregou nossas doenças’” (Mt 8,17). Em seus ensinamentos, Jesus condiciona a salvação às atitudes de caridade para com o próximo necessitado, com quem ele se identifica: “Tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber (…)” (Mt 25,31-46). É pelo anúncio do evangelho aos pobres, pela cura dos doentes e pela libertação dos oprimidos que Jesus instaura o reino de Deus.
Os discípulos, após a morte e ressurreição de Jesus, continuam as suas obras, realizando em seu nome “sinais e prodígios”, entre os quais a cura dos doentes, como se lê no livro de Atos dos Apóstolos (cf., por ex., 3,1-10; 9,32-42; 14,8,18; 28,7-10). Um dos evangelizadores foi Lucas, o “médico amado” (Cl 4,14). O dom das curas é citado entre os carismas do Espírito Santo (1Cor 12,9). Uma das funções dos presbíteros era atender os doentes (Tg 5,14), do mesmo modo como os apóstolos foram enviados por Jesus a pregar pelo mundo afora; eles “curavam muitos enfermos, ungindo-os com óleo” (Mc 6,13).
5. Cuidar da vida
A missão de Jesus e dos seus seguidores com relação às pessoas doentes e necessitadas está revelada na parábola do samaritano solidário (Lc 10,25-37). A pergunta do doutor da lei: “Mestre, o que devo fazer para herdar a vida eterna?” abriu ótima oportunidade para Jesus indicar a excelência da prática do amor a Deus e ao próximo. O doutor demonstra, com muita competência, que conhece os mandamentos. É uma competência, porém, no nível do saber. O que certamente não esperava foi o imperativo de Jesus: “Faze isso e viverás”. Então pergunta o legista: “Quem é o meu próximo?”
Jesus lhe propõe uma parábola, cuja personagem central é “um homem”, uma pessoa sem nome, representante de todas as vítimas da exclusão social. Diante desse ser humano, revelam-se as visões em conflito, das quais decorrem duas práticas antagônicas. Os verbos as denunciam: o sacerdote e o levita viram e passaram adiante. O samaritano chegou junto dele, viu-o, moveu-se de compaixão, aproximou-se, cuidou de suas chagas derramando óleo e vinho, colocou-o em seu próprio animal, conduziu-o à hospedaria, dispensou-lhe cuidados, tirou dois denários, deu-os ao hospedeiro, dizendo: “Cuida dele (…)”. Na verdade, caracterizam duas propostas bem distintas: a oficial, do sistema religioso e político dominante, e a comunitária, de Jesus e seus seguidores. Enquanto aquela se fecha nos interesses e privilégios de uma elite, esta se põe prioritariamente a serviço da vida digna sem exclusão.
Em nosso país, não há dúvida quanto à existência de organismos e políticas públicas voltados efetivamente para o bem comum. O desafio que a Campanha da Fraternidade nos lança, atenta à realidade em que vive a grande maioria do povo e inspirada na palavra de Deus, é avançar com ousado amor. A responsabilidade é de todos. Os “sacerdotes e levitas”, isto é, os organismos de poder, não apenas formulem leis e as conheçam teoricamente, mas prestem atenção no clamor dos doentes e adotem a postura de proximidade e de acolhida das pessoas em situação de abandono, bem como apliquem os recursos públicos e prestem serviços eficazes no cuidado da vida de todos.
Considerados os problemas na dimensão coletiva, conforme reconhece o Ministério da Saúde, a solução não se dá apenas mediante decisões de âmbito hospitalar ou de assistência médica. Seu enfrentamento necessita de ações de saúde coletiva, com ênfase na prevenção das doenças, no trabalho interdisciplinar e na ação intersetorial, que somente são possíveis com a participação social, incluindo o controle dos gastos públicos na implantação de ações geradoras de saúde. A saúde é fruto de condições básicas de vida e trabalho. A doença representa dupla ameaça, no sentido de afetar tanto a saúde como a capacidade produtiva. Tem razão Dallari (1998, p. 55) ao dizer que “uma sociedade só pode ser considerada justa se todas as pessoas, sem nenhuma exceção, tiverem efetivamente assegurado seu direito à saúde desde o primeiro instante de vida”. Ter longevidade é importante, mas é preciso antes ter qualidade de vida. Em termos amplos, a saúde significa uma vida longa, digna, prazerosa, em que seja possível a realização plena do ser humano. A dignidade de cada um de nós não é questão secundária. É direito e princípio invioláveis. É o que autentica uma administração pública. Pelo fruto se conhece a árvore (Mt 12,33).
* Médica. Mestre em Ergonomia e doutorado em Engenharia de Produção com ênfase em Saúde do Trabalhador e Políticas Públicas. Médica do Trabalho na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
** Mestre em Teologia Dogmática com concentração em Estudos Bíblicos. Professor de Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos no Instituto Teológico de Santa Catarina (Itesc).
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Edna Maria Niero; Celso Loraschi