(27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979)
1. Contexto inicial de Puebla
Puebla é uma das grandes capitais do catolicismo mexicano tradicional — do catolicismo dos cristeros, um catolicismo de cruzadas, de fidelidade inabalável. Puebla, a cidade das mil igrejas, o museu do barroco colonial. Um imenso seminário, o seminário palafoxiano, do arcebispo Palafox, que o construiu. Ali se reuniram os 184 bispos convidados para a Terceira Conferência-Geral do Episcopado Latino-americano. O seminário estava bem guardado por três círculos de guardas jovens da extrema direita mexicana, bem como por três cercas de pastores alemães impedindo a entrada dos intrusos. A III Conferência do Celam isolou-se segura, como se estivesse em estado de guerra, bem defendida contra os assaltos do comunismo internacional. Nos meios de comunicação multiplicavam-se os apelos para a prudência, uma vez que a cidade estaria infiltrada de comunistas perigosos. Houve desfiles e manifestações contra a presença desses comunistas, que estariam escondidos nas imediações. O secretário-geral advertiu os jornais, as rádios e as televisões para que todos os cidadãos estivessem conscientes dessa ameaça. O papel do secretário-geral era cuidar da segurança dos bispos participantes. A cidade toda parecia encontrar-se em estado de sítio.
Quem eram esses comunistas? No meio deles estava eu, naturalmente! Eram entre 40 e 50 teólogos latino-americanos e mais alguns de outros continentes. Todos tidos como muito perigosos.
O secretário-geral da Conferência — que era o secretário-geral do Celam —, eleito por vontade da Cúria romana contra os votos da maioria da assembleia, havia feito uma campanha de vários anos para anunciar uma batalha terrível contra o comunismo na Igreja latino-americana. O comunismo estaria infiltrado em tudo: na teologia, nas CEBs, na nova leitura da Bíblia e sobretudo na Clar — Conferência Latino-americana dos Religiosos —, verdadeiro “ninho de cobras”. A campanha de denúncias defendia isto: a teologia da libertação é marxismo disfarçado, a Clar é um magistério paralelo, as CEBs são uma Igreja separada, condenada pelo Papa.
Logo depois de Medellín começou a campanha de denúncias. Quando Alfonso López Trujillo se apossou do Celam — em 1972, em Sucre — por imposição da Cúria romana. A partir de então, o Celam transformou-se numa espécie de máquina de guerra contra supostos inimigos. A Conferência de Puebla devia ser o momento culminante dessa ofensiva.
Nesse ambiente, o Celam organizou, em todos os países, reuniões, simpósios, seminários, encontros para preparar a opinião pública, denunciando os perigos que ameaçavam a Igreja. Finalmente, em dezembro de 1977, o Celam publicou e enviou a todos os países um Documento de Consulta, que devia ser a base do temário da conferência.
A reação foi quase unânime: houve protestos e rejeição generalizada. Diante das reações, o documento desapareceu. Em setembro de 1978, o Celam publicou outro documento, dito Documento de Trabalho — bem melhor que o anterior. Mas em abril de 1978, em Itaici (SP), a CNBB apresentou outro documento, alternativo, completamente diferente do redigido pelos peritos de Alfonso López. Com isso e com toda a campanha de resistência, o Celam obrigou-se a moderar o discurso. No entanto, o Documento de Trabalho não foi usado durante a Conferência.
O secretário-geral sabia muito bem que os “inimigos” estavam por perto. Para citar alguns mais conhecidos: ali estavam D. Helder Câmara, internacionalmente conhecido; D. Paulo Evaristo, cardeal Arns; D. Leônidas Proaño; D. Oscar Romero. Procurou-se impedir que tivessem contatos com os teólogos que estavam fora, mas não foi possível. Por intermédio deles, muitas ideias entraram sub-repticiamente nos textos finais da conferência, sem que os bispos soubessem de onde procediam. Eu próprio havia sido convidado pelo cardeal Arns, juntamente com frei Gilberto Gorgulho, e conseguimos entrar no local da conferência. Não vou dizer de que jeito, porque a astúcia ainda pode continuar a servir para outros…
Vários acontecimentos influíram profundamente na Conferência de Puebla. Primeiro houve a viagem triunfal do Papa João Paulo II pelo México inteiro. Foi a primeira das suas grandes viagens — e possivelmente a mais extraordinária. Era a primeira vez e justamente no México. Essa viagem conferiu às palavras do Papa importância fora do comum. Ora, sobretudo em Oaxaca, com os índios, e em Monterrey, com os operários, o Papa fez declarações em matéria social que davam pleno apoio às aspirações dos oprimidos. Essas declarações do Papa foram amplamente aproveitadas na Conferência de Puebla. Foram discursos providenciais.
Em segundo lugar, houve o respaldo da Evangelii Nuntiandi de Paulo VI (Exortação apostólica de 8/12/1975). Esse texto já havia sido muito comentado e explicado, sobretudo nas comunidades populares, e era reserva de argumentos para todos os defensores da libertação. Não se podia falar em evangelização sem falar em libertação. De certo modo, podemos dizer que a Evangelii Nuntiandi forneceu a base ideológica da conferência.
Em terceiro lugar, houve um incidente aparentemente anódino, mas com fortes repercussões. No dia 1º de fevereiro, o jornal independente do México Uno más uno publicou uma carta de Alfonso López Trujillo ao seu amigo D. Luciano Duarte, de Aracaju (Brasil). Essa carta havia caído por acaso nas mãos do jornalista mexicano do Uno más uno. Ele havia conseguido uma entrevista com o secretário-geral do Celam e gravou a entrevista. Alfonso López lhe havia dado a fita para a gravação, sem se lembrar de que um lado dela já estava gravado. Quando o jornalista voltou para casa, descobriu o que estava gravado também do outro lado. Era uma carta de Alfonso López em que este se expressava da maneira mais grosseira a respeito de teólogos latino-americanos. A carta escandalizou os bispos, porque usava um linguajar pouco apropriado para um bispo tão importante como o secretário-geral do Celam.
O próprio Alfonso López, quando soube da publicação no jornal, procurou comprar todos os exemplares que haviam chegado a Puebla, mas alguns escaparam. Desses exemplares saíram cópias, que foram encaminhadas aos bispos participantes da III Conferência do Celam. Durante vários dias, o secretário-geral refugiou-se no seu quarto. Isso permitiu que, na prática, ele perdesse a liderança da conferência, a qual passou a ser ocupada por D. Luciano Mendes de Almeida — que de fato dirigiu os debates. A assembleia rejeitou o regulamento elaborado pelo Celam, e nomeou, para dirigir os debates, uma comissão de cinco membros: McGrath, do Panamá; Flores, de Santo Domingo; Bambarén, do Peru; Laguna, da Argentina; Luciano Mendes de Almeida, do Brasil. Essa comissão exerceu na prática a presidência. Dos cinco, podia-se ver que quatro pertenciam à linha favorável à teologia da libertação e somente Laguna era da direita. Dos cinco, quem assumiu a direção de fato foi D. Luciano Mendes de Almeida. Este, além de detentor de profunda humildade que desarmava qualquer preconceito, foi hábil articulador. Sabia muito bem aonde queria chegar e era muito amigo dos teólogos assessores — embora discretamente, como em tudo o que fazia. D. Luciano elaborou o programa dos trabalhos e definiu as comissões. Para nós, aquilo era uma bênção do céu, algo totalmente imprevisto.
2. Discurso inaugural do Papa
Quanto ao discurso inaugural do Papa, todos esperavam palavras fortes de condenação à teologia latino-americana. De fato, quando ouvimos o discurso, o efeito foi tremendo. Era a proclamação da verdade de maneira tal que condenava a cristologia, a eclesiologia e a antropologia da nova teologia latino-americana.
Na Verdade sobre Cristo, o Papa condenava as “releituras” do evangelho. Explicava o que diziam essas releituras: “Mostrar a Jesus como comprometido politicamente, como um lutador contra a dominação romana e contra os poderes, e inclusive implicado na luta de classes. Essa concepção de Cristo como político, revolucionário, como o subversivo de Nazaré, não se coaduna com a catequese da Igreja”. Não era difícil identificar as fontes usadas pelo Papa, mas tais acusações tornavam-se de maior peso, uma vez assumidas por um Papa — embora, com certeza, não tivesse lido pessoalmente as cristologias latino-americanas.
Na Verdade sobre a Igreja, o Papa chamava a atenção sobre a separação entre a Igreja e o Reino de Deus e alertava contra uma atitude de desconfiança em relação à Igreja institucional: “Produz-se em alguns casos uma atitude de desconfiança para com a Igreja ‘institucional’ ou ‘oficial’, qualificada como alienante, à qual se oporia outra Igreja popular ‘que nasce do povo’ e se concretiza nos pobres”.
Em terceiro lugar, na Verdade sobre o homem, o Papa referia-se ao ateísmo. A verdade sobre o homem é a sua relação com Deus. Não havia aqui citações explícitas, mas podia-se entender que se tratava da acusação de marxismo ateu feita à teologia da libertação e às expressões populares das comunidades.
À distância, depois de 27 anos, as denúncias do Papa não parecem tão relevantes, mas, no contexto de Puebla, as expressões usadas por João Paulo II opunham-se à tradição teológico-pastoral proveniente de Medellín. Denúncias como as de Alfonso López Trujillo influenciaram os pronunciamentos do Papa.
O discurso do Papa causou bastante inquietação, pois parecia anunciar que a Conferência de Puebla seria uma condenação generalizada de todas as novidades trazidas por Medellín.
No dia seguinte, o discurso do cardeal Aloísio Lorscheider, presidente do Celam, veio anunciar que nem tudo estava perdido. D. Aloísio mostrou que o problema básico para a evangelização da América Latina era a situação de injustiça e de opressão em que viviam as massas latino-americanas. Esse discurso mudou tudo. Relativizou muito o discurso do Papa, chamando a atenção sobre a tradição de Medellín. De fato, o discurso do cardeal Aloísio Lorscheider teve mais efeito do que o do Papa nos debates da conferência.
3. Conteúdo do documento final
O documento final e oficial de Puebla é um texto bastante extenso. Foi o resultado do trabalho de 22 comissões. Na sua apresentação da publicação oficial de Puebla, João Paulo II dizia ser esse texto o resultado de intenso trabalho condensado “nestas páginas que pusestes em minhas mãos”. Na realidade, o que o Papa publicou não era bem o texto elaborado pelos bispos. Entre a aprovação pela assembleia e a publicação, uma mão misteriosa fez aproximadamente 500 correções ao texto aprovado pela conferência. O documento final, que o Papa aprovou, era o texto aprovado pelos bispos ou o corrigido pela mão misteriosa? Qual foi essa mão misteriosa? Seja como for, as correções suavizaram várias afirmações e de modo geral tenderam a relativizar o compromisso social da Igreja. Assim mesmo, é preciso reconhecer que as ideias principais dos bispos foram conservadas no texto oficial.
Num texto tão extenso, era previsto haver grandes desigualdades. Ao lado de alguns textos marcantes sempre citados desde a sua publicação, há capítulos inteiros que repetem afirmações óbvias sem transcendência.
Os textos mais citados de Puebla são mais fortes do que os textos de Medellín e, por isso, não é sem razão que se apresenta o documento de Puebla como confirmação e aprofundamento de Medellín. Lembro apenas alguns desses textos mais destacados.
3.1. No capítulo II (da primeira parte) — “Visão sociocultural da realidade latino-americana” — encontra- se o famoso texto sobre “as feições”. “Esta situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, feições concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo, o Senhor (que nos questiona e interpela):
— feições de crianças, golpeadas pela pobreza antes de nascer, impedidas que estão de realizar-se…
— feições de jovens, desorientados por não encontrarem seu lugar na sociedade e frustrados…
— feições de indígenas e, com frequência, também de afro-americanos, que, vivendo segregados e em situações desumanas…
— feições de camponeses, que, como grupo social, vivem relegados em quase todo o nosso continente, sem terra, em situação de dependência…
— feições de operários, com frequência mal remunerados…
— feições de subempregados e desempregados, despedidos…
— feições de marginalizados e amontoados das nossas cidades…
— feições de anciãos cada dia mais numerosos, frequentemente postos à margem da sociedade…
Compartilhamos com nosso povo de outras angústias que brotam da falta de respeito à sua dignidade de ser humano…” (Puebla 31-40).
3.2. O texto mais incisivo acha-se no capítulo I (da quarta parte): “Opção preferencial pelos pobres”. Esse capítulo foi citado em todas as reuniões e assembleias de comunidades populares até hoje. Quando as pessoas se referem a Puebla, a maioria pensa neste capítulo.
“A Conferência de Puebla volta a assumir, com renovada esperança na força vivificadora do Espírito, a posição da II Conferência-Geral que fez uma clara e profética opção preferencial e solidária pelos pobres, não obstante os desvios e interpretações com que alguns desvirtuaram o espírito de Medellín, e o desconhecimento e até mesmo a hostilidade de outros. Afirmamos a necessidade de conversão de toda a Igreja para uma opção preferencial pelos pobres, no intuito de sua integral libertação” (Puebla 1134).
“Os pobres, também alentados pela Igreja, começaram a organizar-se para uma vivência integral de sua fé e, por isso, para reivindicar os seus direitos.
A denúncia profética da Igreja e seus compromissos concretos com o pobre causaram-lhe, em não poucos casos, perseguições e vexames de vários tipos: os próprios pobres têm sido as primeiras vítimas de tais vexames” (Puebla 1137ss).
“Na Igreja da América Latina, nem todos nos temos comprometido bastante com os pobres; nem sempre nos preocupamos com eles e somos com eles solidários. O serviço do pobre exige, de fato, uma conversão e purificação constante, para conseguir-se uma identificação cada dia mais plena com Cristo pobre e com os pobres” (Puebla 1140).
“Esta opção, exigida pela escandalosa realidade dos desequilíbrios econômicos da América Latina, deve levar a estabelecer uma convivência humana digna e a construir uma sociedade justa e livre” (Puebla 1154).
“Para viver e anunciar a exigência da pobreza cristã, a Igreja deve rever suas estruturas e a vida de seus membros, sobretudo dos agentes de pastoral, com vistas a uma conversão efetiva” (Puebla 1157).
4. Denúncias, compromissos e temores
O que não se esperava era que houve denúncia à doutrina de Segurança Nacional — invocada pelos regimes militares daquela época. Entre os peritos do Celam havia quem negasse a existência dessa doutrina, e bispos identificados com a ditadura militar.
Também não se esperava que a conferência tomasse este compromisso para com as CEBs: “Como pastores, queremos resolutamente promover, orientar e acompanhar as CEBs de acordo com o espírito de Medellín e os critérios de Evangelii Nuntiandi, 58; favorecer o descobrimento e a formação gradual de animadores para elas. Em especial, é preciso procurar como possam as pequenas comunidades, que se multiplicam sobretudo na periferia e nas zonas rurais, adaptar-se também à pastoral das grandes cidades do nosso Continente” (Puebla 648).
O temor de que a conferência condenasse as CEBs era grande, pois havia muitas denúncias, sobretudo de parte do Celam e de prelados da Cúria romana. Temia-se que fossem condenadas como Igreja paralela ou como infiltração do marxismo na Igreja — denúncias frequentes naquela época. Por sinal, apesar desse compromisso formal, a campanha contrária às CEBs continuou. Invocaram alguns textos mais reticentes, como este: “Alguns dos aspectos do problema da ‘Igreja popular’ ou dos ‘magistérios paralelos’ se insinuam nesta linha: a seita tende sempre ao autoabastecimento quer jurídico quer doutrinal; integradas na totalidade do Povo de Deus, as CEBs evitarão com certeza estes escolhos e corresponderão às esperanças que a Igreja da AL nelas deposita” (Puebla 262; cf. também 98, 261, 630). Esses textos podem manifestar certa desconfiança, presente em vários membros da assembleia, mas estão muito longe de uma condenação. A tonalidade dominante sempre é positiva, o que, com certeza, não se esperava.
Apesar disso, o Celam continuou a campanha de suspeita contra as CEBs. Com essa campanha em várias regiões da América Latina, as CEBs foram proibidas ou desaconselhadas — invocando-se, para isso, o pretexto vago de que o Papa não gostava delas.
Claro que, por de trás desse conflito, encabeçado, de um lado, pela Cúria romana e pelo Celam, e, de outro, pelas CEBs, pelos movimentos bíblicos (como o Cebi) e pela teologia da libertação — que apoiavam os movimentos populares de transformação social —, havia um problema político.
As CEBs, os movimentos populares e a teologia da libertação apoiavam a resistência contra as ditaduras militares no Brasil, no Chile, no Paraguai, no Uruguai, no Peru e no Equador. Apoiavam as lutas contra as ditaduras da América Central — por exemplo, na Nicarágua, em El Salvador e na Guatemala.
O conflito estava aí. O problema maior não era o da vida interna da Igreja, mas político. Ora, como sabemos, há alguns temas que são tabus na Igreja. Um desses temas tabus é a política. Supõe-se que as decisões tomadas na Igreja são sempre inspiradas pelo evangelho. Sabemos que não é assim, mas isso não é reconhecido em documentos oficiais.
A Conferência de Puebla foi realizada no auge das oposições políticas e sociais na América Latina. De fato, a direita não conseguiu condenar os seus inimigos, acusados de ser comunistas ou marxistas. Mas ela continuou sua luta depois de Puebla e apesar de Puebla, procurando desqualificá-la.
5. Como interpretar Puebla?
Em seu conjunto, como interpretar Puebla enquanto acontecimento histórico?
Concluído o encontro, começou a batalha da interpretação. De imediato ficou a impressão de que os teólogos da libertação iriam ganhar a batalha da interpretação, pois a corrente conservadora não tinha teólogos para defender as suas teses, salvo na Argentina. No entanto, embora os conservadores não contassem com muitos teólogos na América Latina, dispunham de outros recursos.
Ocorre que tanto a esquerda quanto a direita tinham seu projeto para a América Latina. O projeto da direita era conseguir a condenação da teologia da libertação, das CEBs e das releituras bíblicas. Tratava-se de anular Medellín. O projeto da esquerda era confirmar Medellín e evitar as condenações anunciadas.
Nesse embate, a esquerda levou a melhor. Porém, ficou com uma consciência aguda da precariedade da sua situação, porque as forças que se lhe opunham não foram desarmadas. De fato, cinco anos depois conseguiram o famoso documento do cardeal Ratzinger (Libertatis Nuntius), que era uma condenação radical à teologia da libertação e tornava suspeitas as CEBs e os movimentos bíblicos — a suspeita de marxismo havia sido acolhida e assumida pelo magistério.
Depois de Puebla houve grande movimento de restauração da Igreja pré-conciliar. Porém, o documento de Puebla está aí. Não se pode negar que a conferência existiu nem suprimir o que foi proclamado por ela, com a aprovação do Papa. Por sinal, o documento não teria sido possível sem os discursos do Papa que se referiram à situação humana e social da América Latina.
Como foi possível o texto de Puebla? Quando foi publicada a lista dos membros convocados para a conferência, o sentimento dominante foi de desânimo. O que se poderia esperar de tal assembleia? Havia um grupo compacto de membros da Cúria romana, tendo à frente o cardeal Baggio. A maioria dos peritos convidados para a assessoria eram claramente hostis à teologia da libertação. Delegações episcopais quase inteiras — como as da Argentina, do México, da Colômbia (o chamado eixo direitista), da Venezuela e do Caribe — eram de acentuada linha conservadora. Entre os que discordavam dessa linha, era comum ouvir: os únicos que nos podem salvar são os brasileiros — o que de fato aconteceu, com o apoio de delegados sobretudo chilenos, peruanos, bolivianos e centro-americanos. Mesmo na delegação brasileira, a maioria era da ala conservadora.
No entanto, no meio de uma massa compacta de conservadores, também havia uma minoria convicta, decidida e comprometida a salvar Medellín. Havia veteranos de Medellín, bispos que enfrentaram as ditaduras, com longa trajetória de compromisso com os pobres. Eram poucos, mas deram a prova de que uma minoria decidida é capaz de mover uma maioria sem projeto.
Havia a presença de D. Oscar Romero, em quem muitos já reconheciam o futuro mártir — não pairando dúvidas de que levaria a luta até o fim, sem recuar. O martírio foi consumado um ano depois. Aí também estava D. Leonidas Proaño, cujo compromisso com os indígenas não podia deixar de impressionar os seus próprios adversários. Estava D. Helder Câmara, cuja atuação foi determinante no capítulo da libertação. Havia o cardeal D. Paulo Evaristo Arns e havia o presidente, o cardeal D. Aloísio Lorscheider — cujo discurso de abertura dos trabalhos foi determinante. E havia D. Luciano Mendes de Almeida, cuja liderança foi aceita por todos. Também lá estavam, entre outros, D. Cândido Padin, D. Clemente Isnard e D. Adriano Hipólito.
6. Passos seguintes a Puebla
Puebla está longe. O Celam conseguiu desarticular toda a concepção teórica e a realização prática do modelo de Puebla sem, no entanto, alcançar outro modelo. Deixou a Igreja com discursos vazios e numa imobilidade impressionante.
Quem exerce maior influência atualmente na Igreja são a Opus Dei, os Legionários de Cristo, a Renovação Carismática, os neocatecumenais, os focolarinos e vários outros movimentos. A característica comum de todos esses movimentos é que são de classe média e ignoram o mundo dos pobres. Estão ausentes do mundo dos pobres, e, por isso, os pobres passaram para as Igrejas protestantes de tipo pentecostal.
Os bispos perderam a liderança de fato da Igreja, salvo em dioceses muito pobres em que os movimentos burgueses não penetraram. Oficialmente, os bispos ainda têm as formas exteriores de pastores, conservam a mitra, o anel e o báculo, mas quem leva às pastagens são esses movimentos. Cada movimento tem a sua programação. As dioceses têm a sua programação, mas quem a segue — pelo menos nas dioceses das grandes cidades? Há tantas Igrejas quantos são os movimentos. Eles movem a Igreja, cada um para o seu lado. Os impulsos vêm deles, o que produz grande desintegração.
Não obstante tudo, ainda virá o dia em que a Igreja latino-americana voltará às suas fontes e, então, os textos mais decisivos de Puebla voltarão a ser estudados, meditados e postos em prática. Quando? Como diz o povo, só Deus sabe. Mas o que foi vivido naqueles anos constitui uma herança viva, um patrimônio sempre latente, sempre presente, que espera apenas circunstâncias favoráveis para reaparecer. Quem sabe se a nova geração dos jovens que têm atualmente entre 18 e 25 anos não vai redescobrir e reanimar a chama que ainda arde?
Pe. José Comblin