Publicado em número 243 - (pp. 17-22)
As sete palavras-chave do Concílio Vaticano II
Por Pe. José Comblin
A redação desta revista solicitou-me que fizesse uma apresentação das sete palavras-chave do Vaticano II. Claro que qualquer escolha desse tipo é um pouco arbitrária. No entanto, sem dúvida há algumas palavras bem representativas do significado do Concílio — ainda que não houvesse consciência clara desde o início daquilo que essas palavras deviam significar. Os últimos documentos são, com certeza, mais representativos porque os bispos estavam mais conscientes daquilo que queriam — sobretudo daquilo que se esperava deles naquela hora da história.
Surpreendentemente, o Concílio realizou-se no final de uma época histórica. Dois anos depois da conclusão do Concílio, explodiram as revoltas dos estudantes nos principais centros do mundo, e essas revoltas eram os primeiros sinais de uma imensa revolução cultural que ia começar nos anos 70 do século XX. Tratava-se de uma nova economia, inspirada numa globalização imperial na qual as multinacionais se tornariam, em menos de 40 anos, as donas do mundo; um movimento de mudança cultural cujo sinal mais evidente era a emancipação das mulheres. Realizou-se a desconstrução de todas as culturas tradicionais, e a TV construiu uma nova cultura de massas que conquistou grande parte do mundo. Tudo isso não foi, nem podia ser, imaginado pelos Padres do Concílio. Eles procuraram fazer uma adaptação da Igreja a um tipo de sociedade em via de extinção. Logo depois, apareceu a nova sociedade, e, até agora, a Igreja não reagiu. Não somente não reagiu, como também se dedicou a procurar impedir essa evolução, como se ainda tivesse audiência nesta nova sociedade.
Assim mesmo, depois destes 40 anos que mudaram o mundo como nunca antes na história — porque desta vez mudaram o mundo inteiro —, é possível salvar o que pode ser útil ainda hoje das mensagens do Vaticano II, na espera de um novo Concílio de estrutura completamente distinta, para oferecer um início de resposta a esta nova sociedade que está se construindo.
1. Primeira palavra: homem
No Concílio, os documentos foram escritos em latim, e, nessa língua, a palavra homo (“homem”) refere-se aos dois sexos — varão e mulher. Em português prevaleceu o costume de restringir o sentido da palavra “homem”, fazendo dela uma palavra que significa as pessoas de sexo masculino, o que torna a linguagem mais difícil. Homo deve ser traduzido por “ser humano”, embora essa expressão seja pouco elegante. Aqui tomamos a palavra “homem” no sentido da humanidade completa.
No seu discurso conclusivo do Vaticano II, o Papa Paulo VI quis destacar os pontos fundamentais da mensagem do Concílio. Nesse discurso ele deu a maior ênfase ao tema do “homem”. Na convicção dele, esse tinha sido o tema fundamental. O Concílio quis dirigir-se ao ser humano contemporâneo.
O Papa falou tanto do homem, e sobretudo do homem contemporâneo, que no final do seu discurso fez esta pergunta: “Tudo isto e tudo o mais que poderíamos dizer acerca do Concílio terá porventura desviado a Igreja em Concílio para a direção antropocêntrica da cultura moderna? Desviado, não; resolvido, sim. Mas quem observa honestamente este interesse prevalecente do Concílio pelos valores humanos e temporais não pode negar que tal interesse se deve ao caráter pastoral que o Concílio escolheu como programa”[1].
Com certeza, o Papa estava muito marcado pela Constituição Gaudium et Spes quando preparou o seu discurso de conclusão. De fato, podemos dizer que essa Constituição constitui a exposição mais clara das intenções do Concílio. A preocupação pela humanidade estava subjacente em todos os documentos porque sempre houve o interesse de apresentar as realidades da Igreja como resposta às necessidades ou às aspirações do homem moderno. Mas a Gaudium et Spes explicitou o que estava meio implícito nos outros documentos.
Desde então o ser humano mudou muito. Tivemos a concentração da economia nas mãos das multinacionais, a afirmação do império americano, o enfraquecimento de todos os Estados, uma cultura do individualismo, a desintegração social, a começar pela família e pelo mundo do trabalho, o fenômeno da exclusão dos “inempregáveis”, a multiplicação de religiões novas que tornam obsoleta a estrutura secularizada da sociedade moderna. O que triunfa hoje são os fundamentalismos. As Igrejas tradicionais perderam a sua relevância. A situação do homem atual é bem diferente daquela que estava vivendo os seus últimos suspiros quando se reuniu o Concílio. Claro que as soluções oferecidas naquele tempo, são, na atualidade, obsoletas. Hoje, a Igreja terá de fazer mudanças muito mais radicais, se quiser ser ouvida no mundo, e não ficar fechada num gueto — como já está acontecendo. Mas, em todo o caso, o Vaticano II rompeu com a série de Concílios da cristandade — o que já é um grande mérito.
Uma palavra vizinha da palavra homem é a palavra mundo, também muito destacada pelo Vaticano II. O mundo são os seres humanos. No Vaticano II ainda não apareceram os problemas ecológicos e o mundo significa a humanidade com toda a sua complexidade, com todos os aspectos da vida humana.
2. Segunda palavra: liberdade
A Declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis Humanae foi um dos documentos que suscitaram maior oposição. Boa parte do episcopado ainda não havia percebido que a cristandade já pertencia ao passado. Continuava a viver como em época anterior à Revolução Francesa. No entanto, o otimismo prevaleceu e o documento foi aprovado.
Essa declaração limitava-se à liberdade religiosa. O reconhecimento da liberdade religiosa não era coisa tão extraordinária, mas o importante era que a palavra liberdade entrava no vocabulário eclesiástico. Além disso, com o reconhecimento da liberdade religiosa, tornou-se possível o ecumenismo e a evangelização de todos os povos.
A Constituição Gaudium et Spes dedicou um parágrafo à “liberdade” (n. 17). Aludiu a esse tema diversas vezes. De modo geral, ela acrescenta à palavra liberdade um adjetivo que tende a limitar a sua extensão. Fica claro que essa palavra dava medo — como continua a dar medo. João Paulo II sempre usava a palavra liberdade com um adjetivo. O Concílio diz “liberdade justa”, “liberdade responsável”, “liberdade honesta”, “liberdade ordenada”, “liberdade autêntica”. O próprio Papa Paulo VI, no seu discurso de conclusão, exaltando os valores humanos, fala das aspirações humanas “à vida, à dignidade da pessoa, à honrada liberdade, à cultura, à renovação da ordem social, à justiça, à paz”[2]. Somente a liberdade foi limitada por um adjetivo: “honrada”. Nem a paz nem a justiça, nem a dignidade, nem a cultura devem ser “honradas”.
Mas o que importa é que a palavra liberdade seja usada sem condenação. Na tradição anterior, quando um documento eclesiástico usava a palavra liberdade, era no sentido de condenar. Agora a palavra recebe um sentido positivo. O Concílio ainda está longe do que propõe São Paulo, mas já dá alguns passos nesse sentido.
A adoção da palavra liberdade foi decisiva, pois inaugurou nova época. Essa palavra foi até aplicada à vida dentro da Igreja. Isso significou mudança de clima. Alguns católicos já se sentiram animados a criticar certos documentos ou certas decisões da hierarquia, o que teria sido impensável anteriormente. Estamos longe ainda de uma Igreja em que os leigos se sintam livres, mas os primeiros passos foram dados.
3. Terceira palavra: povo de Deus
“O Concílio, mais do que das verdades divinas, se ocupou principalmente da Igreja, da sua natureza, da sua estrutura, da sua vocação ecumênica, da sua atividade apostólica e missionária”[3]. Assim dizia Paulo VI no discurso de conclusão do Concílio. Que o tema da Igreja estava sempre presente e que a Igreja conciliar queria definir o seu lugar e a sua estrutura no meio do mundo atual é evidente. O tema da Igreja está em todas as páginas. Porém há muitos elementos que eram tradicionais e foram pura repetições. Mas a intenção do Concílio era destacar alguns aspectos da Igreja mais atuais nos nossos tempos.
O Concílio quis explicitamente destacar o tema do povo de Deus, escolhido como prioritário para expressar a realidade da Igreja. Os temas do Corpo de Cristo ou do templo do Espírito Santo já haviam sido integrados na eclesiologia tradicional. Mas o tema do povo de Deus, apesar de ser central na eclesiologia do Novo Testamento, não havia merecido nenhuma atenção na eclesiologia tradicional. Seguindo os passos de Belarmino, a eclesiologia tradicional definia a Igreja pela sua estrutura hierárquica. A Igreja definia-se pelos seus poderes. Os leigos eram simplesmente receptivos, passivos. O seu papel consistia em receber o que a hierarquia lhes dava — os chamados meios da salvação — e em obedecer. A hierarquia era a forma e os leigos eram a matéria.
O Concílio quis explicitamente corrigir essa eclesiologia. De certo modo, podemos legitimamente pensar que o que estava mais na mente dos Padres conciliares era exatamente a superação da eclesiologia tradicional, que já estava em contradição com todos os movimentos apostólicos do século XX.
Pela expressão povo de Deus, os Padres conciliares queriam afirmar o papel ativo de todos os batizados, particularmente dos leigos. Os leigos têm participação ativa em todas as obras de evangelização da Igreja e têm formas de participação nos ministérios da hierarquia. Não são cristãos de segunda categoria, pois todos são chamados à mesma santidade, todos têm vocação missionária. Todos os cristãos são iguais, embora haja diversidade de ministérios entre eles. A missão dos leigos consiste em dar testemunho do Reino de Deus no meio do mundo e trabalhar para transformá-lo, para que se torne presente nele o fermento do Reino.
Antes do Concílio, os Papas jáhaviam aceitado a colaboração ativa de certos movimentos de leigos como participação na missão da hierarquia. Mas agora o Concílio proclama que não se trata de participação nos ministérios da hierarquia, mas de vocação própria.
Esse reconhecimento do papel ativo dos leigos não foi seguido de mudanças estruturais. O novo direito eclesiástico reconhece pouquíssimos direitos aos leigos. No entanto, o novo código reconhece a legitimidade do direito de associação dos leigos. Já não estão na dependência constante do clero. Isso vale principalmente para as mulheres, que não tinham nenhum meio para conquistar a autonomia. Porém, há evidente contradição entre as afirmações teóricas do Concílio e a prática. Até hoje as afirmações teóricas não têm aplicação concreta.
Ao lado da expressão povo de Deus podemos colocar as palavras vizinhas comunidade e comunhão, muito usadas pelos documentos conciliares. De fato, a abertura conciliar permitiu a proliferação de pequenas comunidades que despertaram a suspeita da hierarquia, mas perseveram com o apoio de alguns membros dela. Essas comunidades tomam apoio na teologia conciliar sobre a Igreja.
A promoção teórica dos leigos encontrou na prática bastante oposição na hierarquia, até que João Paulo II conseguiu restaurar quase por completo a imagem tradicional do bispo, que preserva a sua autoridade e impede que os leigos tomem iniciativas relevantes.
A Cúria romana suprimiu do seu vocabulário a expressão “povo de Deus” desde 1985. De igual maneira a Cúria procurou eliminar a expressão “comunidade eclesial de base”. Conseguiu eliminar essa “expressão perigosa” do documento sinodal da América. Continua lutando para que tal expressão nunca mais apareça num documento oficial. Continua falando dos leigos, mas com insistência na participação deles na missão do clero. Quer leigos a serviço dos movimentos diocesanos ou paroquiais, leigos disciplinados, obedientes e sem iniciativas. Quer que os leigos estejam à disposição do clero dentro de um quadro pastoral clerical em que eles não têm nenhum poder de decisão. Dessa maneira, a novidade conciliar fica esvaziada.
O perigo é que os chamados “novos movimentos leigos” — que de leigos nada têm, porque são totalmente clericais — se fechem em movimentos de gueto, alheios à vida social, ou melhor, ocupando posições de poder dentro do aparelho que dirige o mundo, mas sem contato com a população.
Estamos começando a nos interrogar à luz da história. Na Idade Média, durante séculos, os leigos pediram uma reforma da Igreja — que lhes facultasse ascensão dentro dela. Com o Concílio de Trento acabaram-se todas as aspirações da sociedade leiga. O erasmismo e o partido humanista foram destruídos, perseguidos e eliminados da Igreja católica. Em nome da luta contra o protestantismo, formou-se um sistema de gueto que fez aliança com os reis absolutos, os ditadores daquele tempo. Hoje há movimentos católicos poderosos que se infiltram no sistema das multinacionais e se legitimam em nome da luta pela ortodoxia, uma luta fundamentalista. Esses movimentos poderiam esmagar todas as tendências que se manifestaram no Vaticano II. A principal ameaça é que a Igreja católica adote o sistema de marketing que deu tanto sucesso às Igrejas protestantes chamadas eletrônicas nos Estados Unidos, e que a Igreja faça aliança com o sistema das multinacionais — rainhas absolutas na atualidade. Deus queira que a história não se repita!
4. Quarta palavra: colégio episcopal
A palavra colegialidade não foi usada pelos textos conciliares. Porém, desde então, ela foi usada frequentemente para comentar os textos e expressa uma das grandes aspirações da assembleia e da Igreja inteira.
Depois do Vaticano I, o episcopado viu suas atribuições sendo cada vez mais reduzidas. Pio IX havia lançado a Igreja romana numa grande ofensiva contra a modernidade. Ele queria mobilizar todas as Igrejas nesse movimento. Havia, em várias regiões, tentativas de reconciliação com o mundo moderno. Tudo isso foi implacavelmente reprimido, e Pio IX iniciou um movimento de nomeações episcopais com o critério da total submissão à Cúria romana. A partir dele começou a tendência de concentrar todas as nomeações episcopais nas mãos do Papa, e essa concentração de poder entrou no primeiro código de direito canônico (1917) sem resistência por parte do episcopado — por sinal totalmente absorvido pela Guerra Mundial. Desde Pio IX os bispos foram ficando cada vez mais controlados pela Cúria e esse movimento atingiu o auge no pontificado de Pio XII. Naquele tempo, ninguém imaginava o que aconteceria a partir de 1979 — porque era difícil imaginar que pudesse haver concentração de poder ainda maior do que no pontificado de Pio XII.
Quando João XXIII anunciou a convocação do Concílio Vaticano II, a Cúria romana organizou a sabotagem da preparação do Concílio. Não conseguiu impedir a sua realização, mas continuou organizando a oposição durante todo o Concílio. O temor da Cúria era que os bispos adquirissem maior autonomia, o que era justamente a esperança de muitos bispos. Durante todo o Concílio os bispos tiveram consciência de que havia um combate permanente entre eles e a Cúria romana e que o Papa não podia ou não queria decidir.
Desde o anúncio do Concílio, espalhou-se a ideia de que se tratava de completar o Vaticano I — que havia sido interrompido pela conquista de Roma pelas tropas da Itália. O Concílio Vaticano I tinha definido os poderes do Papa. Isso havia criado certo desequilíbrio, do qual os bispos eram as vítimas. Agora haveria uma oportunidade para completar o Vaticano I, insistindo nos poderes dos bispos. De fato, houve essa ilusão.
No Concílio falou-se muito dos bispos. Porém, na questão principal, que era a relação entre os bispos e o Papa, houve pouco avanço. Afinal, falou-se com tanta insistência do poder do Papa, que, como comentou o teólogo protestante Oscar Cullmann, o Vaticano II insistiu mais nos poderes do Papa do que o Vaticano I. No concreto, os bispos não se viram atribuídos de direitos novos. Não houve modificação na relação entre os bispos e a Cúria. Passados 40 anos do encerramento do Concílio, os bispos têm menos poder do que antes de Vaticano II, e a sua dependência, o controle por parte da Cúria, aumentou.
As conferências episcopais foram reconhecidas, mas logo a seguir enquadradas num sistema de controle que as manteve inócuas. Elas são os órgãos de transmissão dos planos elaborados em Roma com base em critérios de política pontifícia em que o valor supremo é o prestígio do Papa na sociedade.
Os bispos não têm a menor possibilidade de influir na Corte romana. Os chamados sínodos não vão muito além de cerimônias de homenagem ao Papa. O mesmo ocorre com as reuniões dos cardeais. Graças a um sistema de delação, as nunciaturas transformaram-se em agências de informação da Santa Sé. Elas transmitem a Roma o que os “informantes” lhes comunicam. A questão dos bispos fracassou com o Concílio, ganhando destaque a Cúria romana. As Conferências episcopais podem reunir-se, mas não têm poder de decisão em matéria de liturgia, de direito canônico, de nomeações de bispos e de julgamento dos teólogos, por exemplo. Os bispos também não podem tomar decisões de relevo para os seus seminários porque tais determinações competem a Roma.
5. Quinta palavra: diálogo
No célebre discurso inaugural do Concílio Vaticano II, pronunciado no dia 11 de outubro de 1962, João XXIII destacou dois temas que deviam, na mente dele, orientar não somente o Concílio, mas a marcha da Igreja nos tempos seguintes.
O segundo dos temas era: “A Igreja sempre se opôs a estes erros; muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez de sua doutrina do que renovando condenações”[4]. Isso parecia muito simples, mas na realidade era a inversão radical de uma prática de 1.600 anos. Tudo foi dito de modo tão simples que, na hora, muitas pessoas não prestaram atenção nessas palavras. Na realidade, elas deviam abrir uma nova época na história da Igreja.
O Papa não usou a palavra diálogo, mas essa palavra recebeu apoio claríssimo por parte de Paulo VI, e, desde então, ela faz parte do vocabulário eclesiástico. Era a tradução das palavras de João XXIII e a expressão da orientação que queria dar à Igreja. Daí em diante a palavra diálogo é repetida sem cessar. O que não quer dizer que a Igreja, na prática, esteja sempre atuando o diálogo. Mas, pelo menos, há certos procedimentos que já não são possíveis hoje em dia.
O Concílio usou abundantemente a palavra diálogo e sempre com a consciência de que estava realizando uma mudança radical. O diálogo significava uma mudança global de atitude da instituição eclesiástica em todas as áreas.
Deve haver diálogo entre a Igreja e o mundo: com os irmãos separados, com os judeus, com os não crentes, com todos os homens, entre a hierarquia e os leigos, entre bispos e sacerdotes. O diálogo é uma arte que deve ser cultivada e treinada nos seminários.
Na concepção do Concílio, o diálogo deve substituir as relações de dominação e de superioridade — que eram constantes na cristandade. Deve ser expressão da caridade, por levar em conta as pessoas dos outros que são diferentes, e não julgá-las com base em princípios abstratos supostamente universais. No tempo da cristandade, o clero devia impor a todos o sistema objetivo de crenças, preceitos ou ritos tradicionais sem levar em conta a subjetividade das pessoas. Agora, por fim, o Concílio reconhece a subjetividade e os valores das pessoas. Os bispos ou os sacerdotes agiam como representantes de uma ordem objetiva. Doravante o que se lhes pede é que estabeleçam relações de pessoa a pessoa com os outros, reconhecendo-os como diferentes. Trata-se de reconhecer a legitimidade da diferença em muitas áreas da vida pessoal ou social.
Na prática, depois do Concílio, muitos bispos e sacerdotes procuraram mudar o estilo das suas relações e o modo de agir no exercício da sua autoridade. Os próprios Papas, estimulados pelo exemplo de João XXIII, aproximaram-se da humanidade, deixando de lado aquela majestade que havia alcançado o auge com Pio XII — que parecia um ente celestial dotado de um poder total e absoluto.
Depois de 40 anos, podemos constatar que há mais cortesia e menos solenidade no relacionamento do clero com os leigos, dos padres com os bispos e dos bispos com a Cúria romana. No entanto, o diálogo não vai além da cortesia. Quando se trata de fazer concessões, de adaptar o sistema burocrático às situações locais, o diálogo acaba e o sistema mantém a sua intransigência. Na atualidade, o sistema curial parece ainda mais intransigente, porque as leis aumentaram e se tornam mais complexas, e a vigilância também aumentou. As formas são mais humanas, mas o fundo permanece inflexível.
6. Sexta palavra: serviço
A eclesiologia tradicional definia a Igreja como um sistema de poderes. Deus havia dado os seus poderes à Igreja, ou seja, à hierarquia. A Igreja podia definir-se por três poderes: o poder de dizer e ensinar a verdade por meio do magistério, o poder de santificar por meio dos sacramentos e o poder de governar por meio de um conjunto de leis obrigatórias. O conceito de poder fazia a ligação entre Deus e a Igreja, concebida como hierarquia. De certo modo, o episcopado era identificado com toda a Igreja, e, no entusiasmo da teologia medieval, um teólogo como Egídio de Roma podia ensinar que a Igreja era o Papa. Todos os poderes da Igreja estavam nas mãos do Papa. Ele era a Igreja, pois a Igreja era poder e ele tinha a plenitude desse poder.
Tal eclesiologia podia fazer sentido na época em que a relação da Igreja com o mundo era a luta entre o poder do Papa e o poder do imperador — ou o poder dos reis católicos. A eclesiologia romana devia exaltar o mais possível o poder do Papa para que pudesse contrabalançar o poder do imperador. Mas já faz tempo que essa problemática desapareceu. Aliás, nessa luta entre o Papa e o imperador pela direção da cristandade, onde estava o povo de Deus? Ao povo de Deus cabia fornecer exércitos a esses dois poderes.
O retorno à Bíblia tornou muito clara a oposição entre esse linguajar e o linguajar do Novo Testamento, em que prevalece o vocabulário do serviço. O próprio Jesus afirma que veio para servir, e não para ser servido. Os apóstolos aparecem como servidores do evangelho, ou do povo.
Por outro lado, os membros do clero que estavam mais em contato com a sociedade perceberam que essa afirmação de poder criava mal-estar e afastava da Igreja. O poder não é assim tão bem-visto na sociedade moderna. Depois de 200 anos de luta pela democracia, os dirigentes dos Estados tendem a apresentar-se como servidores do povo, e não como poderes sobre o povo. Eles são eleitos pelo povo e, na ideologia dominante, os poderes residem no povo, que os delega a diversas entidades ou pessoas.
O Concílio levou em conta esses dois aspectos e procurou evitar todo triunfalismo, toda proclamação enfática de poder. Usou abundantemente o vocabulário do serviço.
De acordo com o Vaticano II, a Igreja existe para servir, e não para ser servida. Ela não reclama para si nenhuma autoridade senão a de servir os homens. Os ministros da Igreja devem servir seus irmãos. A missão dos bispos é o serviço. Eles receberam o encargo de servir a comunidade, usam do poder e da autoridade não como quem manda, mas como quem serve. A autoridade dos superiores deve ser exercida em espírito de serviço. Os presbíteros são chamados para servir o povo de Deus. Devem educar-se ao espírito de serviço.
7. Sétima palavra: missão
De modo geral, é notório que os textos sobre a missão são muito fracos e carecem de unidade. No entanto, houve vontade dos Padres conciliares de mudar o sentido da missão na consciência e nas instituições da Igreja.
Até o Concílio, prevalecia ainda a visão tradicional que fazia das “missões” uma parte marginal da Igreja. O principal era a cristandade tradicional. Pequena parte do pessoal e dos recursos da Igreja estava destinada a evangelizar os povos situados fora dos limites da cristandade. Essa atividade missionária estava reservada a institutos específicos de homens e de mulheres e não atingia a vida das dioceses ou das paróquias. Essas mandavam algumas ajudas financeiras, mas a atenção dada às missões era muito secundária.
Na prática, a ação missionária estendeu-se principalmente e quase exclusivamente aos territórios em poder dos Estados europeus ou norte-americanos, estreitamente ligada à presença militar, política e econômica das potências coloniais. Era parte da colonização ou da dependência semicolonial, como na China.
A obra missionária consistia em reproduzir em todos os territórios do mundo a estrutura do catolicismo europeu. A ideia era salvar as almas. Ao lado dessa finalidade principal havia também a finalidade de civilizar. Nisso as missões se integravam na empresa colonial, que se justificava pela tarefa de “civilizar” os povos não europeus.
Alguns missionários precursores lutaram desde o início do século XX por uma Igreja local — inserida nas culturas locais. No fim de muitas lutas, conseguiram a ordenação de sacerdotes e de bispos nativos. Mas a estrutura não mudou quase nada até o Vaticano II. No Concílio interferiram dois fatos. O primeiro foi a consciência da importância das novas Igrejas na África e na Ásia. O segundo foi a percepção da descristianização dos países de antiga cristandade, com a consequência de que eles eram também terras de missão e precisavam ser evangelizados. A diferença entre os dois setores do catolicismo estava diminuindo. A América Latina ainda não tinha fisionomia própria, que viria em Medellín, como consequência do Vaticano II.
Essas novas preocupações se expressaram nos documentos conciliares. Foi lançada a famosa fórmula de que a Igreja toda deve ser missionária, constituindo novo símbolo da Igreja renovada. Um documento oficial renunciava à ideia de que ainda existia cristandade. Também proclamava a necessidade de nova evangelização. Antes do Concílio, a Ação Católica tinha como projeto cristianizar a vida pública, mas não a evangelização dos habitantes da Europa. Agora os Padres começavam a reconhecer que a crise era muito mais profunda do que se queria aceitar outrora. Não se tratava apenas de restituir o lugar da Igreja na sociedade; o desafio era que a Europa estava perdendo a fé e precisava de nova evangelização.
Os documentos conciliares convocam todos os católicos para que se tornem missionários. Era uma novidade absoluta. Até então, a instrução dada aos católicos era que deviam permanecer fiéis à religião dos seus antepassados, submetendo-se a todas as instruções da hierarquia. A evangelização era tarefa de alguns missionários especializados reunidos nos institutos missionários reconhecidos pela Santa Sé e organizados pela Congregação romana De Propaganda Fide.
Os documentos aludem à necessidade de adaptação da Igreja à diversidade dos povos, às diferenças de cultura. Na prática pouco se fez. A partir de João Paulo II, a Igreja católica tomou o rumo da restauração da cristandade, o caminho de uma nova concentração romana, de um reforço dado à uniformidade. Os novos movimentos foram os instrumentos ideais dessa nova uniformização do catolicismo. Eram movimentos internacionais que comunicavam aos católicos uma mensagem e uma estrutura — a mesma para todos os povos em que estavam presentes. Produziram uma nova centralização.
De qualquer maneira, o tema da evangelização estava lançado. O programa da evangelização do mundo tornou-se a prioridade da Igreja toda — pelo menos na teoria. Na prática, é muito difícil conciliar a evangelização com a restauração da cristandade e uma centralização exasperada.
Na América Latina, o tema da evangelização foi assumido pelos movimentos populares da Igreja e pela Conferência de Puebla. A partir dos anos 80, a evangelização ficou cada vez mais reduzida à propaganda — tal como é atualmente. Todas as campanhas de evangelização tornaram-se estéreis e a proporção dos católicos está diminuindo, enquanto cresce o número de protestantes pentecostais. O tema conciliar permanece como um desafio, à espera de circunstâncias mais favoráveis.
8. Conclusão
O Concílio Vaticano II pertence à história. O futuro mostrará se foi apenas um episódio ou se constitui um acontecimento significativo. Tudo vai depender do rumo que a Igreja escolherá. A América Latina está no centro das expectativas, já que mais da metade dos católicos são latino-americanos. Na Europa já não há esperança: a decadência é irreversível. Ali pode ser encontrado o melhor museu do catolicismo, mas apenas um museu. Daqui a pouco virão centenas de milhões de chineses para visitá-lo. Não é muito provável que esse museu desperte neles a fé. A Ásia e a África estão em plena expansão, mas ainda são minoritários.
Na América Latina, a opção pelos ricos constitui grave perigo. Se a Igreja se deixar envolver pelos ricos e for colocada a serviço da sua legitimação, tornar-se-á novamente, como na cristandade, a base da estrutura de opressão dos pobres. O futuro está em nossas mãos — se Roma não as atar!
[1] Cf. Documentos do Concílio Vaticano II, São Paulo, Paulus, 2001, p. 671.
[2] Idem, p. 670.
[3] Idem, p. 666.
[4] Idem, p. 28.
Pe. José Comblin