1. O escândalo da morte violenta torna-se banal
No distante ano de 1898 um ladrão de galinhas virou manchete de jornal. Hoje, silenciam-se até casos de assassinato. Os títulos dos jornais no máximo relatam algumas chacinas e casos isolados de tortura extrema. A morte violenta tornou-se rotina. Nos últimos anos, a violência está cada vez mais próxima de nossa vida pessoal. No passado, eram raros os casos de colegas, amigos e vizinhos terem sido assaltados. Nessas ocasiões, costumava-se ouvir histórias do bom ladrão que, ao terminar o assalto, deixava o dinheiro para o leite das crianças ou devolvia a carteira para não causar transtornos à pessoa assaltada. Hoje, o quadro mudou radicalmente. São exceções aquelas pessoas da nossa convivência que não sofreram algum tipo de violência. As histórias das vítimas parecem sair de filmes de terror: é o caso, por exemplo, de um bebê de 3 meses que só escapou da morte porque parou de chorar no momento certo, quando o ladrão, irritado pelo choro, ameaçou atirar.
Essa e outras histórias se multiplicam e deixam bem claro aquilo que o pároco de um bairro considerado “tranquilo” não cansa de repetir para os seus fiéis: ninguém tem certeza de que irá voltar para casa são e salvo. É essa presença constante da violência no dia a dia que estimula e incentiva a banalização da violência.
Sentimos impotência diante de acontecimentos que ultrapassam nossa compreensão. Queremos fechar os olhos, inventar razões para justificar a violência. Os mecanismos de autodefesa começam a atuar e, de repente, deslocamos a violência da nossa consciência. Ela atinge os outros, acontece por reações descontroladas, por imprudência, por circunstâncias infelizes; manifesta-se na periferia, bem longe da nossa própria realidade. Assim, banalizamos a violência, mas não a eliminamos. Ela tem mil e uma faces. Às vezes sua presença é sutil, escondida, mas não menos perigosa. Começa com a violação dos direitos das pessoas e termina nas dimensões estruturais. Precisamos conhecê-la para poder combatê-la.
Mas não basta somente o conhecimento das diferentes manifestações da violência. Estamos intimados a buscar também o desmantelamento dos mecanismos estruturais que causam ações e situações violentas. Somos chamados a descobrir as origens e as causas de sua banalização, assim como as suas consequências.
Tal conscientização é vital para a existência do ser humano hoje, assim como é vital para a construção de uma sociedade futura mais humana — sociedade favorável à vida em vez de promotora da morte.
2. Múltiplas faces da violência
Falar de violência implica refletir sobre o significado da palavra “violência”.
Em termos de definição geral, a violência “pode ser um ato momentâneo ou uma série de atos praticados de modo progressivo, com o intuito de forçar o outro a abandonar o seu espaço construído e a preservação de sua identidade como sujeito de relações econômicas, políticas, estéticas, éticas, religiosas e eróticas” (cf. Antônio Lemos Filho, O homem e sua banalização, texto disponível na internet, quando elaboramos este artigo: www.furb.rct-sc.br).
A violência não se restringe à esfera física, manifesta-se de distintas formas, incluindo todo um processo que, direta ou indiretamente, causa sérios danos às pessoas, comprometendo temporária ou definitivamente sua vida.
Esses danos, porém, podem ser causados seja em termos de violência privada (criminal ou não criminal), seja em termos de violência coletiva. A violência manifesta-se tanto em nível privado quanto coletivo.
2.1. Violência física
É mensurável e chama mais atenção à primeira vista. Impressiona pelo seu número crescente e pela sua brutalidade desenfreada. Faz reinar a lei do mais forte, oprimindo indivíduos ou grupos mais fracos.
2.2. Violência psíquica
É mais sutil, menos palpável. Não necessita de armas, mas se manifesta de maneiras distintas:
— em nível intrapsíquico: segundo Freud, a violência intrapsíquica seria aquela que a pulsão, pela força do seu impulso, exerce sobre o aparelho psíquico;
— em nível intersubjetivo: a pessoa dominante recorre basicamente a dois tipos de violência psíquica:
• à ameaça da retirada do amor e da proteção (por exemplo: a chantagem emocional do tipo “você faz o que eu quero ou não me ama”);
• ao uso perverso do raciocínio, que submete a vítima a contradições lógicas, a comunicações paradoxais às quais lhe é proibido escapar e cuja culpa se volta contra ela.
A situação seguinte serve para ilustrar esse processo: o professor devolve as provas aos alunos e, sorrindo, comenta: “Que bom, desta vez até o Paulo melhorou. Tirou um dois!”.
2.3. Violência encoberta
Trata-se de violência sutil e perigosa. Não é uma invenção dos nossos dias. Os seus mecanismos podem ser observados ao longo da história. Pode-se observar o uso de tais mecanismos tanto na corte do rei absolutista Luis XIV quanto em tantas situações atuais.
Na corte de Versailles, os súditos foram submetidos a regras rigorosas para legitimar o poder absoluto. A violação dessas convenções e regras (muitas delas encobertas, não formalizadas) não trazia punições físicas; todavia, trazia sanções muito mais sutis: a pessoa passava a ser ignorada aos olhos do soberano, ninguém mais falava com ela, seu nome desaparecia da lista dos convidados.
Hoje, as pressões são similares. Substitui-se o nome do soberano pelo nome do chefe, do presidente, do superior etc. A violência psíquica é usada para adaptar, para manipular, para isolar, para excluir, para discriminar pessoas. Ela exerce pressões fortes, mas encobertas, em nome da necessidade da normalidade, da reta doutrina, da ideologia da qualidade total, do sistema neoliberal e de tantas outras imposições.
2.4. Violência estrutural
A violência estrutural ocorre muitas vezes de modo despercebido, mas existe e impõe-se por meio das múltiplas faces das estruturas, dentro das quais a pessoa vive. Ela pode não aparecer nitidamente, mas age por intermédio de organizações, aparatos e instituições. Tais instituições, em muitos casos, foram inicialmente criadas para implantar ordem na sociedade e, com isso, evitar a violência. Ao invés, agora, são elas mesmas que geram violência. “A sociedade perceptora dessa violência assusta-se ao ver as marcas deixadas pela violência, mas não identifica em si a emanadora disso. Essa violência estrutural sobrevive pela incapacidade de apontar-se o ponto inicial… é silenciosa, estática” (A. L. Filho, texto disponível na internet, cf. acima).
A violência estrutural manifesta-se em todo o lugar. O ser humano está sujeito a ela, e, apesar disso, em muitos casos, não é capaz de identificá-la. Há inúmeros exemplos desse processo na sociedade de hoje: o sistema econômico que gera pobreza e desemprego, o neoliberalismo que aniquila o indivíduo e gera frustrações e agressividade, discriminação ou exclusão de grupos sociais em nome da normalidade ou de uma lei moral ou religiosa (mães solteiras, divorciados, homossexuais etc.).
3. Aspectos psicológicos da violência
É consenso geral entre psicólogos e biólogos defender que no ser humano existe apenas uma disposição ou predisposição inata a reagir de modo agressivo ou violento. Ou seja, a violência não seria inata, e sim a predisposição para reagir de modo violento diante de certas circunstâncias da vida.
Há várias explicações para o comportamento violento.
Segundo Freud, existe uma interação de pulsões agressivas e amorosas no ser humano: para controlar seu potencial agressivo, o indivíduo conta com seus impulsos amorosos inatos, que, por sua vez, serão mais ou menos desenvolvidos conforme o grau de estímulo recebido do meio ambiente em que cresceu e se desenvolveu. Para Freud, existe interação entre fatores predisponentes constitucionais e fatores condicionantes ambientais.
Para Erich Fromm, que dedicou muita atenção ao estudo das forças destrutivas do ser humano, existem dois tipos de agressões:
• as agressões vitais que estão a serviço da vida e são necessárias para a sobrevivência;
• as agressões negativas que não servem para a manutenção da vida, cujo objetivo não é sua manutenção, mas a agressão como fonte de prazer. Encontramos nesse mecanismo um fenômeno que reforça a assim chamada necessidade estrutural da violência.
Essa necessidade, por sua vez, encontra a sua raiz em estruturas de carência, assim como Sartre o demonstrou (em L’intellectuel face à la Révolution).
Estamos, portanto, diante de uma situação na qual a violência estrutural que constatamos na sociedade pode ser compreendida como a dimensão social de uma profunda carência sofrida por esta sociedade (cf. E. Drewermann, Strukturen des Bösen).
4. Causas e efeitos da violência
O estudo das diferentes manifestações da violência na sociedade de hoje é um subsídio indispensável para compreender a relação entre suas causas e seus efeitos. Seria muito simplista querer reduzir toda a complexa realidade da violência a uma sequência linear, em que determinado agir produz efeitos qualificados como violentos.
A sociologia de hoje tenta explicar a violência com base numa série de fatores que desencadeiam um conjunto de dispositivos que têm uma cadeia de efeitos que se cruzam entre si (cf. Violência em tempo de globalização, Hucitec, 1999, p. 93). Nesse sentido complexo, também as nossas reflexões devem, já nesta primeira fase, levar em consideração pelo menos os seguintes aspectos:
• as diversas manifestações da violência na sociedade;
• as causas desta violência.
Com base nesses pressupostos será possível estudar depois, numa segunda fase, toda a questão da banalização da violência.
4.1. Contexto sociocultural da violência
Vivemos num sistema globalizado, chamado de neoliberal. Esse sistema trouxe novas formas de convivência e fez surgir novos valores, novas normas, novas sanções.
Todo estudo da complexa questão da violência deve também levar em consideração este novo contexto socioeconômico e cultural. Ela deve ser entendida e definida à luz dos valores que cada grupo social constitui como referência. A definição de violência não pode ser generalizada para qualquer grupo, mas depende do contexto sociocultural no qual certo grupo vive e se move. Como nós, hoje, vivemos dentro do contexto de um sistema neoliberal globalizado, é com base nessa situação concreta, e não com base em princípios morais desencarnados, que devemos tratar a questão.
4.2. A sociedade neoliberal globalizada e a violência
A globalização da economia e o neoliberalismo trouxeram fenômenos importantes às tentativas de explicar a violência. Contra algumas das explicações estereotipicamente apresentadas é preciso reagir.
a) Desemprego e miséria não são a causa principal da violência?
A reestruturação econômica resultou num enorme contingente de desempregados e fez crescer a miséria. Como se buscava um “bode expiatório” para explicar a explosão da violência, a miséria foi apontada como causa principal da violência crescente.
Contra essa visão simplista que estigmatiza toda a população pobre, gerando exclusão e violência, é necessário apontar como uma das causas da violência a força de estruturas que em si são violentas e geram morte. A alternativa a tais estruturas de morte não é a repressão, mas a construção de uma sociedade mais igualitária que, por intermédio da sua própria estrutura, ajude a amenizar a violência em vez de promovê-la.
“Quando um país é socialmente mais homogêneo e todos se beneficiam de uma estrutura mais justa de sociedade, a tendência é que a violência diminua” (Isabel A. S. Bordin, Revista Viver, abril de 1999, p. 25).
b) Economia informal
Em sociedades com acentuada economia informal ou subterrânea, há outro fenômeno suplementar que não pode ser negligenciado. Nas estruturas econômicas informais “pode-se arrolar o crime organizado, que hoje ‘emprega’ contingentes extremamente significativos da população mundial” (cf. Violência em tempo de globalização, p. 120).
Reverter todo esse quadro é tarefa árdua e muito difícil. Os altos ganhos (“dinheiro fácil”) e a vida sem verdadeiras perspectivas fazem que muitos esqueçam que a guerra entre as quadrilhas já matou e vai continuar matando milhares de pessoas.
c) Quebra dos laços sociais
A expansão do crime organizado, porém, tem outras consequências além das já mencionadas. É fator importante num processo que favorece a desestruturação de laços comunitários. Quanto mais se enfraquecem as tradicionais redes de solidariedade (vizinhos, Igreja, clube de esporte etc.), tanto mais cresce o perigo, da divisão da sociedade em pequenos grupos isolados, rivais. Esse processo tende a desencadear a intolerância e a violência. Gera-se um círculo vicioso.
d) O ser humano no sistema neoliberal
O ser humano não vive no vazio, mas dentro de um sistema socioeconômico — atualmente dentro do sistema neoliberal. Quais são os impactos desse sistema sobre o ser humano?
O sistema do neoliberalismo promove uma sociedade tecnocrata, anônima, que visa a objetivos como a maximização do lucro e a exploração da força de trabalho do ser humano. A pessoa tem de funcionar, tem de ser eficiente, não pode falhar. A partir do momento em que não cumpre mais uma dessas exigências, será substituída por outra. Essa despersonalização causa frustrações e profundo vazio.
Como preencher esse vazio? Como satisfazer as necessidades emocionais? Como encontrar algo que poderia dar sentido à vida?
Numa sociedade secularizada, essa busca, muitas vezes, resulta numa fuga desesperada diante do próprio vazio, rumo a um mundo de agitação. Busca-se algo diferente, desejam-se emoções fortes e aventuras perigosas.
Numa primeira fase, as pessoas buscam isso no mundo virtual, num lazer específico, em esportes radicais ou nas drogas.
Numa segunda fase, esses estímulos (apesar de serem constantemente reforçados) não são mais suficientes. Pelo contrário, aumenta o desejo de experimentar situações extremas, de ir até o limite, de experimentar tudo — prazer, angústia, perigo. A busca desenfreada de encontrar experiências autênticas pode resultar numa perda dos limites, numa confusão entre o mundo virtual, o fictício e o real. A pessoa vai além de qualquer limite e, assim, torna-se violenta.
Esse processo está muitas vezes na origem da eclosão da violência, como destaca o psiquiatra e psicodramatista Alexandre Saadeh: “O ser humano é violento por natureza. O que segura um pouco a violência é o limite que há em todos nós. Mas, cada vez mais, há elementos que desestabilizam isso. Eu posso beber, posso cheirar, posso fumar crack. E aí se perdem de vez os limites”.
Percebemos, com base nos poucos exemplos aqui apresentados, que a origem de violência é muito mais complexa do que costuma ser apresentada. Mais complexo, consequentemente, é também o problema de sua banalização.
5. Processo da banalização da violência
Com base no que vimos, é agora possível analisar os mecanismos que transformam a violência em fenômeno banal e cotidiano. O processo da banalização da violência pode ser observado de maneira bem acentuada dentro da atual sociedade neoliberal. Os integrantes desta sociedade parecem apresentar certa predisposição em aceitar as explicações que fazem da violência que os cerca um fenômeno banal ou até normal. Encontramos nisso um mecanismo bem específico de fuga diante do problema — se a violência é normal, é banal, e, sendo banal, não vale a pena falar dela. Assim pode ser esquecido aquilo que incomoda.
5.1. Banalização da violência e sentido da vida
Parece que encontramos, no processo descrito acima, certo mecanismo de autoproteção por meio do qual o indivíduo tenta conseguir escapar da conscientização sobre a violência que o circunda. Tal fenômeno tem que ver com a autocompreensão da maioria dos integrantes da sociedade neoliberal. Eles, em última análise, fazem de si mesmos a ideia de que podem ser aniquilados, reduzidos a mero número, substituídos por outros, desvalorizados; por causa disso, têm-se como descartáveis.
Essa autocompreensão de grande parte dos integrantes da nova sociedade é um dos elementos-chave no processo de banalização da violência. Se a pessoa se sentisse diferente, ser especial criado por Deus à sua imagem e semelhança, ela se compreenderia como um ser único no mundo. Único como a raposa no Pequeno príncipe de Saint-Exupéry. Assim sua vida passaria a ter sentido, tornando-se insubstituível e preciosa.
Com base nessa experiência, passar-se-ia a valorizar também a vida da outra pessoa, criatura de Deus igual a mim. Assim, a vida plena não seria privilégio de alguns poucos — seria para todos, sem exceção. Dessa perspectiva, toda violência contra uma pessoa passaria a ser escândalo revoltante, que não poderia ser banalizada. A banalização da violência já não poderia mais acontecer como acontece hoje.
5.2. Banalização da violência e crise, de valores
Pode-se concluir que a, banalização da violência tem que ver com a banalização de valores essenciais, tais como a vida, o amor e o respeito para com o outro.
Jurandir Freire Costa, ao comentar a atitude de alguns jovens de classe média que atearam fogo num índio pataxó, em Brasília, em 1997, disse: “Não sabem mais distinguir o que é ou não monstruoso, pois foram educados num tempo em que o horror perdeu seu aspecto extraordinário, (num) universo do desperdício, da exploração e da asfixia dos ideais morais”.
Essa constatação não vale só para o caso específico mencionado.
Aquele ato reflete uma atitude fundamental de um segmento cada vez maior dentro da sociedade. O que está por trás de tais atitudes são vários fatores que levam o ser humano à banalização da violência e à banalização de valores essenciais.
O homem moderno vive num mundo de transformações rápidas que resultam numa verdadeira crise de valores. “A modernidade urbana apresenta um horizonte de valores plural, conflituoso, subjetivo, individualista, fragmentário” (cf. J. B. Libânio, As lógicas da cidade, Loyola, 2001, p. 178).
Lidar com um quadro tão complexo e contraditório já é em si muito difícil. “Agrava-se tal situação por deficiência das principais instâncias socializadoras dos valores: família, escola, Igrejas. Em seu lugar impera a mídia, que as desestrutura” (cf. J. B. Libânio, op. cit.).
5.3. Banalização da violência e meios de comunicação
O ser humano é continuamente confrontado com uma pluralidade de valores conflitantes, ditados por interesses de poder e dinheiro. A proposta que parte desses meios não visa à construção de um mundo melhor com base em valores essenciais. Os poderosos do mundo lutam, fazendo uso de propostas contraditórias, pelo domínio de pessoas e de bens. Mas tal luta não se restringe aos chamados “grandes”, inicia-se com a criança. Às crianças já não se apresenta mais como objetivo a construção de uma convivência baseada na fraternidade e no amor. Em vez disso, cria-se uma imagem do mundo em que a violência é considerada normal ou, pior, em que a violência é recompensada e tida como inevitável.
Esse processo é perigoso, sobretudo, porque as crianças buscam referenciais de comportamento e tiram do mundo fictício dos filmes de ação seus modelos de heróis. Essa identificação com os heróis violentos incentiva a imitação, sobretudo quando a pessoa vive em ambiente violento.
Tendências semelhantes às do mundo da criança encontram-se também no mundo dos adolescentes e adultos. Os modelos de comportamento tirados do mundo fictício ganham vida no mundo real. Perde-se a noção da vida e da morte, confundem-se os limites entre o mundo virtual e o real, banaliza-se a violência.
5.4. Banalização da violência num mundo sem perspectivas
Paralisação e falta de perspectiva também estão na origem da banalização da violência. Os jovens das classes pobres, muitas vezes sem formação, sem emprego, sem perspectiva para o futuro, são confrontados com a oferta de um “emprego” no mercado informal e ilegal.
A oportunidade de ganhar dinheiro, de preferência fácil, é tentadora. Deixam-se de lado os riscos. Novamente a violência é banalizada.
A falta de perspectiva e de sentido na vida está na origem da banalização da violência também em outras classes sociais. O tédio, o vazio, faz com que integrantes da classe média ou alta arrisquem a sua vida em jogos ou esportes radicais. Também aqui a violência é banalizada e a vida desvalorizada.
5.5. Exclusão de seres humanos no sistema neoliberal
Finalmente, a violência também é banalizada da perspectiva neoliberal. A sua concepção de um mundo dos ⅔ significa, como consequência, a exclusão de ⅓ da população do sistema econômico. Para este sistema, essas pessoas não contam, não são interessantes em termos econômicos. Elas podem morrer antes do tempo. A banalização da violência torna-se assim característica estrutural de toda uma filosofia socioeconômica.
6. Reagir contra o escândalo da violência e construir um mundo novo
Todos esses mecanismos estão interligados e geram violência. Geralmente essa violência é combatida com mais violência. Assim se estabelece um círculo vicioso onde não só cresce a violência, mas cresce também a sua banalização. Como consequência perde-se progressivamente a fé numa sociedade alternativa, da paz e da fraternidade.
Contra esses mecanismos precisamos reagir. É de suma importância lutar com todos os meios por um mundo que promova a paz em vez da violência, o amor em vez do ódio, a vida em vez da morte. O projeto para um mundo assim existe. O seu autor é Deus, que age na história por meio de nós. O seu projeto histórico chama-se Reino de Deus. Esse Reino, nas palavras de Renold J. Blank, “é processo dinâmico e conflituoso dentro do mundo, e o seu objetivo é a construção de uma nova maneira de ser, de uma nova situação histórica. Ela é marcada pela substituição de todas as situações injustas por situações justas; pela substituição de todas as situações de poder, egoísmo e orgulho, por estruturas de amor e de fraternidade; pela substituição de toda e qualquer atitude de mentira, por atitudes de verdade e de paz” (publicado em Trilhas, Revista Teológico-Pastoral do Centro Interdiocesano de Teologia de Cascavel, nº 3, 2000, p. 45).
Existe, portanto, um projeto alternativo para este mundo violento. Homens e mulheres são chamados a se envolver na sua construção. Cabe a nós aceitar esse convite, comprometer-nos com a concretização desse projeto. Deus não impõe a sua vontade. Ele tampouco realiza os seus planos por meio de atos mágicos, nem nos obriga pela força a assumir o projeto do seu Reino. Se, porém, o ser humano aceita o desafio, ele se envolve num processo de conversão do mundo real em direção à realização de uma convivência alternativa, cuja plenificação está nas mãos de Deus.
Na aliança com Deus, o ser humano obtém a capacidade de transcender as suas forças limitadas rumo à construção do Reino. A base dessa caminhada é a fé em Deus e a identificação com o seu projeto. Essa identificação é importante, porque a concretização de tal plano é demorada, cheia de riscos e obstáculos. Dificuldades, aliás, que fazem lembrar a caminhada penosa do povo de Israel através do deserto. Hoje, como naquela época, a transformação do povo em direção a uma nova sociedade faz-se por meio de um processo evolutivo de aprendizagem e conscientização. O início desse processo exige o rompimento da acomodação, da paralisação e do medo. Só assim podem ser libertadas energias antes absorvidas pela angústia e agora disponíveis para serem investidas em mecanismos que favorecem a mudança rumo a uma sociedade melhor.
Devido à complexidade dos mecanismos que interagem nesse processo, não existem receitas simples. Mas é importante que se iniciem mudanças na sociedade — que tenham como meta a ativação de forças dirigidas não só contra a violência, mas sobretudo contra a banalização da violência. Essa ativação de forças positivas exige um processo educativo que envolve uma série de elementos. Tem de começar com a criança e envolver todos os integrantes da sociedade. Os seus elementos mais importantes são os seguintes:
• Desenvolvimento moral. O comportamento moral é um dos elementos-chave em todo o processo de transformação. Ele não é inato (vê-se, por exemplo, nos estudos de Piaget), mas se desenvolve desde cedo na criança:
— a partir do desenvolvimento cognitivo que ajude a pessoa a diferenciar o certo e o errado;
— a partir das relações sociais da criança com os adultos e seus semelhantes.
Tal processo de desenvolvimento moral, porém, sofre grandes pressões do grupo social, de tal modo que até pode ser bloqueado. Por essa razão não se pode pensar apenas em elevar o nível moral do indivíduo. Deve-se visar à transformação de todo o grupo dentro do qual o indivíduo vive. Experiências em escolas mostraram que espaços nos quais se oferece abertura para o diálogo ou lugares onde se estimula a participação de todos nas tomadas de decisão incentivam toda a comunidade a operar num nível de raciocínio moral mais elevado.
O desenvolvimento moral depende de estruturas externas, como, por exemplo, a família, a Igreja, a escola, a comunidade e clubes recreativos. São eles que promovem, com base em mecanismos democráticos e fraternos, a solidariedade e o entendimento.
• Criar e fortalecer redes de solidariedade. Por intermédio dos mecanismos mencionados, nascem e fortalecem-se redes de solidariedade que são importantes para todo o processo de uma socialização bem-sucedida. “A comunidade de sentidos é também a comunidade de troca baseada no princípio de reciprocidade, fora da lógica do mercado” (cf. Violência em tempo de globalização, p. 98).
• Criar na sociedade espaços, atividades, oportunidades que sirvam como “válvulas de escape” para todas as frustrações e agressões acumuladas nesta vida de competição e estresse. (Mais uma vez mostra-se a importância dos centros culturais, esportivos, comunitários, que possibilitam a integração, a socialização e o crescimento humano.)
• A valorização da vida humana. Cada ser é único, com potencialidades positivas que podem ser ativadas. O fundamento desse processo é o amor. Uma pessoa que nunca foi amada dificilmente vai desenvolver o seu potencial positivo, dificilmente vai valorizar a própria vida e muito menos a vida dos outros.
• Deve-se, por isso, promover uma educação para o amor, a fim de que o ser humano possa se tornar pessoa, crescer em todas as suas dimensões. Aprender a amar e respeitar o outro, educar para a tolerância. Escola e sociedade deveriam valorizar o crescimento do ser humano na sua totalidade, em vez de somente valorizar o conhecimento objetivo e formal.
• Isso implica também uma educação para o senso crítico do ser humano. Um ser humano que:
— não se deixa manipular facilmente;
— não executa qualquer tipo de ordem dada em nome de leis ou da moral;
— que desenvolve um pensamento democrático e participativo, buscando orientar o seu agir com base nele.
• Educar para que a pessoa aja com responsabilidade e não recorra a normas, leis ou regulamentos para justificar a própria violência.
Criar um mundo onde todos possam usufruir de qualidade de vida. Essa é a exigência feita por Isabel Altenfelder Santos Bordim, ao alertar: “A sociedade não percebeu ainda que, sem melhorar a qualidade de vida de todos, não há como garantir o futuro de ninguém” (cf. Revista Viver, abril de 1999, p. 23).
Se a sociedade optar por esses múltiplos e inovativos processos, passará a posicionar-se a favor da vida e não contra ela — em termos religiosos, reconhecemos nisso uma sociedade rumo à construção do Reino de Deus. Se as pessoas encontram um sentido na vida e descobrem a plenitude da vida, a banalização da violência cessará.
Profª Christiane E. Blank