“No começo a Palavra já existia: a Palavra estava voltada para Deus, e a Palavra era Deus… E a Palavra se fez carne” (Jo 1,1.14).
A virada do século e o início de um novo milênio marcam a volta do sagrado. A religião está presente com toda a força e todos se deixam fascinar pelo sagrado. Há uma explosão de anjos e novas entidades que pairam sobre os seres humanos, sugerindo que eles trarão as soluções para os problemas humanos. Novos ritos superlotam os templos e novas crenças preenchem os espaços midiáticos. Levados pelo espetacular das curas, exorcismos, milagres, os cristãos(ãs) correm o risco de deixar de lado o mistério da encarnação. Acabam se esquecendo de que Deus tem nome e lugar na história. Viveu vida de gente: “Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana, amou com coração humano”[1]. Perdem de vista o mistério profundo de Deus presente na história humana e o que há de mais sagrado: o Deus encarnado que lava os pés de seus discípulos (Jo 13,1-15).
1. O inusitado da encarnação
Como nos lembra D. Pedro Casaldáliga em seus poemas, a encarnação marca definitivamente a vida dos seres humanos, pois a Palavra se apresenta em pessoa, toma “carne” (en-carna-ção), se faz gente, coloca sua “tenda” no meio de nós, torna-se um de nós (cf. Fl 2,6-9), como “imagem visível” de Deus invisível (Cl 1,15), como “expressão de seu ser” (Hb 1,3):
“No ventre de Maria, Deus se fez homem
Mas na oficina de José Deus também se fez classe.”
E trazendo essa realidade misteriosa bem para nossa realidade latino-americano-afro-caribenha, junto com Pedro Tierra, assim se expressa D. Pedro Casaldáliga:
“O Verbo se fez carne. O Verbo se fez pobre, o Verbo se fez índio…
Planta entre nós a sua maloca.”
A encarnação da Palavra exige levar a sério a presença de Deus na história e na criação. Por isso, Santo Atanásio afirmava que a nossa carne está como que “verbificada”, pois o Verbo vem restaurar a imagem de Deus nos seres humanos[2]. Dessa forma a partir da encarnação, sendo o Verbo encarnado homem verdadeiro, verdadeiro Deus, o absoluto não deve mais ser procurado fora da nossa condição humana, mas se deixa encontrar na história[3]. Ele se deixa encontrar no caminho e na partilha do pão (Lc 24,13-35). Ele está presente no serviço aos irmãos e irmãs que estão em dificuldade (Mt 25,35-40).
O que presenciamos hoje aponta para o risco já vivido pelas comunidades primeiras e bem retratado na comunidade à qual João dirigia suas cartas: “Muitos impostores vieram ao mundo dizendo que Jesus Cristo não veio em carne mortal: eles são o impostor e o Anticristo” (2Jo 7). Ou como se expressa em 1Jo 4,1 “Para saber se alguém é inspirado, sigam esta norma: fala da parte de Deus todo aquele que reconhece que Jesus Cristo se encarnou”. Esse risco — que foi chamado de docetismo e que tomava a figura e a história de Jesus como pura aparência[4], sem se inserir verdadeiramente na história humana —, pode estar de volta hoje, quando o que importa não é mais pregar o Evangelho do Reino, mas ir em busca de sinais e prodígios que desviam do caminho do seguimento de Jesus de Nazaré. Aliás essa preocupação também estava presente na pregação de Paulo, quando se dirigia à comunidade de Corinto: “Os judeus pedem sinais e os gregos procuram a sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos” (1Cor 1,22-23).
Essa presença do Deus encarnado em nossa história exige que levemos a sério a escolha que Deus faz pelos pequenos, pelos pobres, pelos marginalizados, como bem expressam os textos do Novo Testamento (Mt 11,25-26; Lc 4,14-30; Lc 1,46-56; 1Cor 1,26-29). Esse tomar partido do lado do fraco, do pobre, das primeiras comunidades e hoje a partir dos índios, negros, mulheres, aponta para o inusitado da encarnação: “Em razão de que a encarnação abrange a humanidade de todos os seres humanos de todas as raças e condições históricas e de ambos os gêneros, torna-se evidente que a capacidade de Jesus Cristo de ser o salvador não reside em sua masculinidade, mas em sua história de amor e de libertação no meio das potências do mal e da opressão… A teologia terá atingido a sua maioridade quando a particularidade que se destaca não é o sexo histórico de Jesus, mas o escândalo da sua opção pelos pobres e pelos marginalizados no Espírito do seu Deus-Sophia misericordioso e libertador. Este é o escândalo da particularidade que realmente interessa, centralizado que está na criação de uma nova ordem de plenitude na justiça”[5]. Não podemos fugir dessa afirmação central do cristianismo, pois, do contrário, cairemos nos braços macios de uma ideologia que tira Deus da história e a deixa sob o controle das forças dos poderosos. Levar a sério a encarnação é acreditar no mistério de Deus que atua no interior da história, chamando-a à sua plenitude (cf. 1Cor 1,28).
2. A história como lugar do encontro de Deus com os seres humanos e dos seres humanos com Deus
Todos os seres humanos, homens e mulheres de todos os tempos e culturas, buscam compreender o significado da vida e da morte, do bem e do mal. Os cristãos e as cristãs buscam dar sentido à vida à luz da vida, prática, morte e ressurreição de Jesus, proclamando o Cristo e Senhor (At 2,36; Jo 20,30-3 1). É a encarnação e a ressurreição de Jesus que nos possibilitam orientar a busca de sentido para nossas lutas, nossas dores, nossas vitórias. Sua história acaba nos ajudando a encontrar Deus presente na história. Essa presença está acima de qualquer outra entidade que tenta explicar os caminhos dos seres humanos. A tentação hoje é a de transferir nossa responsabilidade diante dos problemas humanos para anjos, arcanjos e outras entidades que teriam maior poder que a própria encarnação de um Deus que se fez presente na história, mostrando que o encontro com Deus se dá no encontro com os irmãos e irmãs. A comunhão acontece no interior das relações humanas, à medida que nos tratamos como irmãos e irmãs, filhos e filhas do mesmo Pai, com coração de Mãe.
Hoje temos de reeditar, no anúncio do Evangelho do Reino, o mesmo fascínio que Jesus de Nazaré exercia sobre seus contemporâneos. Não basta apenas simbolicamente pedir perdão pelos erros passados, como temos visto a Igreja fazer na celebração dos 500 anos. Importa, como afirmam índios, negros e pobres, que mudemos de atitude e que possamos construir um país justo e solidário, onde todos possam chamar a Deus de Pai Nosso, tendo acesso ao “Pão Nosso”. Precisamos pensar que o projeto de Jesus, que anuncia o Reino, deve ser concretizado, em novas relações sociais que respeitem a todos como filhos e filhas do mesmo Pai-Mãe. É impossível querer ser seguidores(as) de Jesus Cristo, se não buscarmos formas concretas de impedir a acumulação dos bens nas mãos de poucos, como acontece em nosso país. Não será possível anunciar que o “pão é nosso”, se 1% dos mais ricos continuar ganhando mais do que ganham 50% dos mais pobres[6]. Essa é uma afronta ao Deus da Vida, que quer que todos os seus filhos e filhas tenham vida digna[7]. Por Jesus de Nazaré sabemos que este é o projeto de Deus: Que todos(as) tenham vida, e vida plenamente (Jo 10,10).
Na história, a presença de um Deus que lava os pés de seus discípulos inverte todos os padrões do sagrado que muitas vezes temos em nossas cabeças. Jesus mostra que Deus é o servidor da humanidade (cf. Jo 5,17), pois ele trabalha para que os seres humanos sejam libertos de todos os males. Não é este o desejo de todos os pais-mães? Não está neste serviço a verdadeira missão dos seguidores(as) de Jesus de Nazaré? Por isso temos de resgatar a atração que Jesus suscitava em seu meio, buscando refazer sua imagem de pessoa comprometida com a realidade de seu povo e de sua época. Buscar uma imagem de Jesus que reedite a paixão pela justiça e que arraste seguidores(as) conscientes de sua missão profética de denunciar a injustiça e anunciar a boa notícia que resgate a vida dos que estão excluídos e marginalizados em nossa sociedade (cf. Mt 11,2-6; Lc 7,18-23). Anunciar um Jesus que motive a paixão por um mundo justo e solidário: “Eu sonho com um outro credo que se apoiaria, não sobre as definições dogmáticas, mas no exemplo do pai do ‘filho pródigo’, no salário da décima primeira hora, no perdão à mulher adúltera… Esse credo não apelaria a uma adesão verbal e ‘intelectual’; ele suscitaria uma atração humana e uma intensa simpatia. O ‘Verbo encarnado’ não tem mais nenhum impacto sobre nossos espíritos, mas a voz que indica o cuidado das crianças, que promete a felicidade aos humildes e que coloca o amor acima de todos os valores, sempre será escutada por todos os homens e mulheres e em todos os tempos. Este será um credo concreto. Ele emana dos Evangelhos sinóticos”[8].
Certamente essa forma de anunciar Jesus nos ajudará a compreender que na história Deus nos fala, na história encontramos os irmãos e as irmãs e que, na história, temos a possibilidade de encontrar Deus presente no serviço à humanidade. Em Jesus, o eterno entrou na história. Após sua ressurreição, todos os seres humanos e a própria criação recebem a marca do ressuscitado. A história está como que divinizada e tem caminho certo de plenitude. Isso parece ser simples demais em nosso mundo pluralista, sedento de novidades, mas não há para a fé cristã outro critério iluminador para o conhecimento de todas as coisas senão Jesus[9]. Apostemos nele e não mais em anjos e arcanjos!
3. A missão do Espírito Santo na história
A missão do Espírito Santo é recriar Jesus na história. Sem o seguimento de Jesus no Espírito do ressuscitado, não podemos fazer com que a história de Jesus seja retomada. As comunidades reverenciariam um documento do passado. Ficaríamos presos a um dado arqueológico, mas não mais vital e suscitador da retomada do projeto do Reino em nossa história. E o que o Espírito realiza? Realiza a obra de retomar a memória da prática e da mensagem de Jesus: “O Espírito Santo que o Pai vai enviar em meu nome, ele ensinará a vocês todas as coisas e fará vocês lembrarem tudo o que eu lhes disse” (Jo 14,26). E coisa inusitada, o Espírito Santo não faz coisas mirabolantes, pelo contrário, é pelo Espírito que Jesus se encarna. O Espírito nos faz acolher o Filho na carne (cf. 1Jo 4,2). Seria trair o Filho e recusar-se ao Espírito transformar Jesus no suporte de ações mirabolantes, pois o próprio Jesus se recusou a usar esses expedientes (Mt 26,53). O Espírito “nos ajuda a viver filialmente no seguimento do Filho encarnado, impedindo o esquecimento da simplicidade, da humildade, da coragem profética, da mentalidade de serviço, da relação íntima com o Pai que o caracterizam. A missão do Espírito consiste em atualizar permanentemente o significado da encarnação como processo mediante o qual Deus-Filho assume a história com suas transformações e a faz história santa, história da Santíssima Trindade. O Espírito conserva a continuidade entre o ‘aquele tempo’ quando irrompeu o Filho na carne e o hoje da história”[10]. Por isso, não se deve evocar o Espírito Santo para se legitimar o desejo que sai do coração humano pelos sinais extraordinários, quando o próprio Espírito é quem impulsionou Jesus para sua missão histórica libertadora no meio do povo, usando os meios disponíveis de seu tempo, sem recorrer a nenhuma força extraterrestre.
Essa presença silenciosa da ação do Espírito parece estar presente em uma indicação para a celebração do Jubileu e que deveria ser levada a sério pelos cristãos e pelas cristãs do mundo inteiro, pois manifesta o que há de mais sagrado no mistério da encarnação. É um indicativo simples, mas coerente com o Espírito do Ressuscitado, pois ele é encontrado onde nós nos encontramos com os(as) irmãos(ãs) em necessidade: “Em qualquer lugar, se forem visitar, durante um razoável período de tempo, os irmãos que se encontram em necessidade ou dificuldade (doentes, presos, anciãos sozinhos, deficientes etc.), como que realizando uma peregrinação a Cristo presente neles (cf. Mt 25,34-36)”[11]. O Espírito é quem nos faz compreender a vida de Jesus e seu agir. É preciso deixar-nos mover pelo Espírito Santo, para que nosso seguimento de Jesus recrie em nosso mundo a mesma esperança suscitada pelo anúncio do Reino na Palestina do tempo de Jesus.
4. “… Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal” (Mt 6,13)
Hoje a tentação do poder e da magia é grande. A busca por soluções mágicas para os problemas pessoais e sociais é anunciada em cada esquina de nossas cidades e proclamada aos quatro ventos pelas ondas do rádio e pelas imagens da TV. O anúncio da boa nova do consumo acaba fascinando a todos e de modo especial aos jovens. A busca do sagrado, como esperança última de superar magicamente as dificuldades encontradas no cotidiano, tem levado cada vez mais pessoas a acreditar que a solução dos problemas da vida virá de fora. Não acreditam mais na ação histórica e profética. Buscam nos subterfúgios mágicos a saída para seus males. Acabam desprezando o que de mais sagrado a Bíblia nos relata a cada página de seus livros: que Deus se deixa encontrar na história e que sua ação envolve e perpassa a ação dos homens e mulheres de todos os tempos e lugares.
O pedido do Pai Nosso indica o risco que corremos toda vez que nos deixamos iludir pelas coisas superficiais e pelas aparências. Quando nos deixamos guiar pela ideologia dos poderosos, manipuladores do poder e do dinheiro. Quando deixamos que as forças do mercado orientem nossa vida. Quando acreditamos que os anjos é que irão resolver nossos problemas.
O pedido do Pai-nosso de não cairmos na tentação e nos livrarmos do mal, ajuda-nos a assumir com maturidade nossa responsabilidade diante do futuro dos seres humanos e do destino da nossa terra. Não serão os anjos ou outras entidades extraterrestres que nos ajudarão a encontrar saídas para os problemas do cotidiano: fome, falta de água, destruição da ecologia, desemprego, drogas, corrupção. Nós é que devemos cuidar dos irmãos e irmãs e da própria terra.
Finalmente, o pedido do Pai-nosso em nos livrar de todo o mal nos orienta na luta pela justiça, sinal da presença do Reino que se antecipa todas as vezes que a fraternidade e a solidariedade se realizam nas relações sociais.
Que a encarnação da Palavra nos ajude a compreender a misteriosa presença de Deus na nossa história e na criação, que conta com todos nós na construção de uma “nova terra”, que se torne sua morada e a casa comum de todos os seres humanos (cf. Ap 21,3-7).
[1] Gaudium et Spes, 22.
[2] ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, Sur l’Incarnation du Verbe, Sources Chrétiennes, Paris, Cerf, 1946, pp. 230-231.
[3] Cf. SEGUNDO, J. L., A nossa ideia de Deus. Teologia aberta para o leigo adulto – 3, São Paulo, Loyola, 1977, p. 154.
[4] Cf. SEGUNDO, J. L., op. cit., p. 146.
[5] JOHNSON, E. A., Aquela que é: O mistério de Deus no trabalho teológico feminino, Petrópolis, Vozes, 1995, p. 245.
[6] “Pesquisa do IBGE de indicadores sociais em 98 mostra que o 1% mais rico da população tem 13,8% da renda do país, e os 50% mais pobres, 13,5% do total” (cf. Folha de São Paulo, 29104/2000, p. 1).
[7] Cf. Puebla, 28.
[8] ONIMUS, J., Jésus en direct, Paris, Desclée de Brower, 1999, p. 26. Necessitamos, como diz Jean Onimus, pregar um Jesus mais próximo das pessoas: “Recolocar Jesus em primeiro lugar, vê-lo viver; ouvir, enquanto ainda for possível, o tom de sua palavra, sua cólera, suas impaciências, mas também seus momentos de afeição e de piedade… Não mais Deus mesmo visitando a terra (…), mas um ser totalmente humano que vem nos revelar — exatamente por ser humano — o que há de totalmente-outro no fundo de nós, o que há, talvez, efetivamente de divino” (op. cit., p. 28).
[9] Cf. SUSIN, L. C., Jesus Filho de Deus e Filho de Maria: Ensaio de cristologia narrativa, São Paulo, Paulinas, 1997, p. 3.
[10] BOFF, L., A trindade, a sociedade e a libertação, Petrópolis, Vozes, 1986, p. 236.
[11] JOÃO PAULO II, “Incarnationis Mysterium”: sobre a celebração do grande jubileu do ano 2000, São Paulo, Paulus, 1998, n. 4 das “Disposições para a aquisição da indulgência jubilar”, p. 26.
Pe. Benedito Ferraro