Publicado em número 191 - (pp. 15-23)
Visões e aparições. Por que e para quê?
Por Irmão Afonso Murad
Visões e aparições constituem assuntos polêmicos. De um lado, atraem multidões de fiéis, que correm atrás dos videntes, em busca de mensagens divinas e de milagres. De outro lado, suscitam reações de indiferença e de oposição em muitos cristãos. Tentando sair dessa polarização, que não é saudável, mostraremos brevemente em que consiste este fenômeno, do ponto de vista da teologia e da espiritualidade. Deter-nos-emos somente no aspecto das mensagens. Se as visões e aparições têm algum sentido para a comunidade cristã, como se relacionam com a Revelação de Deus em Jesus Cristo, que está fixada na Bíblia? Como se articulam os elementos divinos e humanos da comunicação de Deus numa visão-aparição? Como tirar coisas boas das mensagens dos videntes, sem estar obrigado a aceitar que tudo o que dizem venha de Deus ou de Nossa Senhora?
I. DEUS NOS FALOU: A REVELAÇÃO
Como cristãos, temos a nossa fé fundada na certeza de que Deus, na sua liberdade absoluta e gratuita, se comunicou conosco. Deu-se a conhecer em sua realidade íntima de amor transbordante, como Pai maternal, Filho e Espírito. Manifestou também seu projeto de levar a humanidade à comunhão com a Trindade e à mudança de todas as suas relações. A esse evento ímpar e original, decisivo para a nossa salvação, chamamos de Revelação. A teologia cristã denomina de “Revelação” ao processo segundo o qual Deus mostrou “seu rosto e seu coração”, ou seja: quem ele é e como nos ama, e que convoca a humanidade para realizar um inaudito projeto de criação, libertação e salvação no mundo.
1. A Revelação em Cristo e a Bíblia
Compreende-se a Revelação cristã como um processo histórico e dialético, pelo qual Deus foi lentamente se mostrando, à medida que o seu povo evoluía e podia captar os traços de sua realidade íntima. Verdadeiro processo educativo, permeado de erros e imperfeições, a Revelação é dirigida inicialmente ao povo de Israel, como sinal para toda a humanidade. Consuma-se na vida, morte e ressurreição do Filho de Deus encarnado, Jesus Cristo. Nele se pronuncia a última e definitiva Palavra de Deus para a humanidade (Hb 1,1s; Jo 1,4.8.17s).
O Cristo ressuscitado deixa o seu Espírito, que relembra, atualiza e aprofunda a Revelação de Deus através de Jesus de Nazaré. Portanto, para o cristianismo, a Revelação já se fechou na pessoa de Jesus Cristo.
O testemunho da comunidade de fé a respeito da Revelação foi condensado na Sagrada Escritura, cujo cânon também está definido. Portanto, a Revelação de Deus, acontecida na história do povo de Israel e na vida de Jesus, e condensada/interpretada na Sagrada Escritura, constitutivamente está fechada e acabada.
A Bíblia é a Palavra de Deus. Não uma palavra qualquer, e sim a Palavra, a comunicação por excelência, o critério último para julgar qualquer outra palavra da experiência espiritual cristã. Mas, como diz com simplicidade Carlos Mesters, a Sagrada Escritura é “Palavra de Deus na boca do povo”. Deve-se superar todo fundamentalismo, que vê em cada trecho isolado da Bíblia palavras divinas que devem ser aplicadas diretamente na vida. A Sagrada Escritura conjuga de forma admirável os fatos com a interpretação da comunidade de fé. Não são palavras de Deus completamente destiladas e isentas da contaminação humana, mas a comunicação divina mediada pela experiência humana.
A Bíblia apresenta distintos gêneros literários, que necessitam ser interpretados. Sem perder a sua ligação com os eventos que lhe deram origem, os relatos bíblicos apontam, sempre para o duplo fenômeno da interpretação. O primeiro consiste em buscar saber o que o autor quis dizer com aquele texto. O segundo, o que está dizendo para nós hoje. A interpretação, portanto, faz parte do processo de leitura da Palavra de Deus. Sem esta interpretação, ela permanece apenas como palavra em potencial, mas não como comunicação efetiva para nós.
2. Universalidade e particularidade da Revelação
Ao querer ser palavra de Deus para a salvação da humanidade, a Revelação adquire caráter universal. Quantitativamente, sonha abranger a todos; qualitativamente tem algo a dizer para todas as culturas e contextos sócio-históricos. Mas a Revelação cristã é particular, porque está ligada a um contexto cultural preciso. Guarda, portanto, a dupla dimensão de universalidade e particularidade. Sem deixar de ser universal, a Revelação de Deus é particular, devido à liberdade e ao amor de Deus. Qualquer escolha na história tem de ser particular, pois está ligada às coordenadas de tempo e de espaço. Todos os “mediadores” da Revelação foram ou são particulares, incluindo Jesus. Carregam as marcas dos condicionamentos pessoais, históricos, culturais. “A intervenção de Deus não acontece na forma transcendente, e sim em formas imanentes, humanas, frágeis, transitórias, históricas, em processo para uma plenitude última. É na mediação que se atinge a transcendência. Nela acontece a presença do Deus infinito”[1].
A história humana continua evoluindo, suscita novos desafios e traz questões inéditas. O mesmo Espírito Santo anima e orienta a comunidade cristã e toda a humanidade na descoberta de Deus, na resposta a seus apelos, na acolhida de sua comunicação amorosa. Faz parte da obra do Espírito continuar a obra de Jesus, conduzindo a Igreja e a humanidade até a consumação da verdade (Jo 16,13).
Se constitutivamente a Revelação se fechou em Jesus Cristo e a sua palavra se condensou na Escritura, do ponto de vista da interpretação e da atualização continua aberta. Essa abertura está condicionada à sua origem, de forma que não altera no seu núcleo a Revelação originante de Jesus. A própria Sagrada Escritura não é um depósito de verdades, mas fornece em seu conjunto os elementos para identificar nas circunstâncias históricas o rosto do Deus revelante e de seu projeto e balizar as novas experiências de Deus no correr dos tempos.
Formalmente, concebemos a Revelação como proposta divina, à qual corresponde no ser humano a resposta pela fé. Na prática, só temos acesso à Revelação codificada na experiência de fé dos outros (e nossa). A autocomunicação divina se realiza por meio da mediação material e humana. Assim aconteceu na história da manifestação da Revelação e de sua fixação na Escritura. Assim acontece hoje também.
II. DEUS SE AUTOCOMUNICA: A GRAÇA
Sempre que falamos em Revelação, pressupomos a Graça. Deus não comunica uma verdade fria ou um conteúdo qualquer. A Revelação explicita, ao mesmo tempo que realiza, a ação salvífica de Deus sobre o mundo, os povos e as pessoas. A este processo segundo o qual Deus dá aquilo que é mais precioso de si mesmo, sua intimidade amorosa, convidando os seres humanos a participar da comunhão na intimidade da Trindade, o cristianismo chama de Graça.
A Graça, como o próprio nome indica, vem de graça, por livre iniciativa de Deus. Deus a concede sem mérito ou exigência da parte do ser humano. Ele se dá inteiramente por pura liberdade e amor condescendente. Mas se a Graça é algo não exigido pela natureza humana, não significa que ela se manifeste nas coisas sobre-humanas ou extraordinárias; pelo contrário, a Graça comumente se manifesta dentro e no interior das realidades humanas, sem deixar de ser dom de Deus. O “sobrenatural” não é sinônimo de extraordinário, de extranatural. Sob esse nome se indica a proveniência dos dons de Deus e sua destinação última, não a sua forma de manifestação ou o seu âmbito de atuação.
Todo ser humano recebe, em Cristo, a possibilidade de alcançar a comunhão plena com a Trindade, de consumar a sua salvação. Isso é sobrenatural, mas acontece normalmente através de mediações históricas contingentes, muitas delas eivadas de ambiguidade e até de sinais de pecado. As mediações são fundamentais para a efetivação da Graça na história humana. O exemplo paradigmático vem do próprio Filho de Deus, que se manifesta através de mediações contingentes, limitantes e particulares, no homem Jesus de Nazaré.
O termo “mediação” traduz uma realidade muito simples, mas facilmente esquecida. Deus se serve de meios para estabelecer contato conosco. Tocados pela Graça, mas provenientes do âmbito da criação e da atual condição humana, esses meios carregam em si e consigo os traços da grandeza de Deus, da finitude das coisas criadas e até do pecado. Tanto a Revelação quanto a Graça, que traduzem sob ângulos distintos o mesmo movimento de autocomunicação e autodoação de Deus, acontecem normalmente através de mediações naturais e humanas. Deus, no entanto, na sua infinita liberdade, pode se servir de outras mediações desconhecidas ou incompreendidas por nós. Mas a iniciativa divina, mesmo se começa com algo extraordinário e que nos ultrapassa enormemente, ao final se servirá de alguma mediação humana contingente. Caso contrário, não nos atingirá.
III. DEUS NOS FALA DE MUITAS MANEIRAS
1. Os sinais de Deus na vida
Nós, cristãos, cremos que Deus nos fala na vida, através de mediações. Normalmente, utiliza sinais que não são claros nem evidentes. Apresentam-se misturados, envoltos pelo véu da incerteza, da dúvida. Carlos Mesters diz, aludindo a uma citação patrística, que o primeiro livro escrito por Deus foi a criação e a história. Como a humanidade se tornou cega para ler este primeiro livro, Deus inspirou a escrita do segundo, a Bíblia, a partir da experiência de fé da comunidade. A Bíblia ilumina os cristãos para lerem os sinais de Deus na vida hoje.
Em várias ocasiões, sempre mediadas, podemos sentir que Deus nos fala, com uma concentração especial que sobrepassa a mesmice do cotidiano. Quantas vezes, numa reunião de Círculo Bíblico ou numa celebração de comunidade, a gente sente uma forte presença de Deus que nos consola, fortalece e convoca. Para religiosos consagrados, os retiros, capítulos e assembleias provinciais constituem especial momento de graça onde se sente a proximidade e a interpelação de Deus. Na vida dos pobres, a cura física, a saída de uma situação terrível como o alcoolismo e desemprego, podem ser momentos especiais de autocomunicação de Deus e de Graça. Para o cristão comum, Deus pode “lhe falar” nos momentos corriqueiros e imprevisíveis, como dentro do ônibus, no trabalho ou durante a limpeza da casa. Assim, pequenos eventos se transformam em grandes momentos de Graça.
Algumas vezes, a palavra de um amigo ou amiga ilumina de tal forma nas soluções de problemas existenciais, que temos a certeza de que Deus falou através dela. Obviamente, ninguém tem certeza absoluta de que aconteceu, num fato ou palavra, uma comunicação de Deus mesmo. Pode ser simplesmente uma manifestação do próprio eu, pode ser até algo que induza ao erro e que desvie de Deus. Toda provável manifestação de Deus na vida está submetida ao questionamento: vem dele mesmo ou não? Por isso ganha cada vez mais importância o “discernimento”, que necessariamente deve ser exercitado no confronto com outra pessoa, pois a subjetividade tem grande capacidade de enganar a si mesma.
2. Místicos e videntes
As possíveis manifestações de Deus são sempre mediadas pela nossa experiência de vida. Passam pelo crivo da subjetividade e do contexto cultural. Não existe comunicação da pessoa com Deus “via satélite”, como se a gente fosse uma antena parabólica que simplesmente capta o puro sinal divino e o retransmite sem desvios. As mediações provêm deste mundo, carregam o peso de sua beleza, de sua limitação e de seu pecado.
Há pessoas que, devido ao dom de Deus e ao esforço pessoal, vivem em maior intimidade com a comunidade trinitária. Nós os denominamos de “místicos”. Eles sentem de forma especial que a divindade irrompe em suas vidas e as transformam, envolvendo e movendo toda a sua afetividade e sua razão. Vivem o encontro com Deus na luz e na obscuridade. Também as experiências espirituais dos místicos acontecem e se expressam mediante representações do mundo. É impossível ter acesso à própria realidade de Deus em toda a sua totalidade e imediação. O místico prova a proximidade, a irradiação e a cintilação de Deus. Mas, assim como a fé, a experiência mística precisa de representações. Trata-se de uma “mediatez imediata”.
Os condicionamentos culturais, históricos e religiosos estão presentes na forma de viver a experiência de Deus e no modo de comunicá-la. “O místico faz a leitura de sua experiência de Deus em termos familiares de sua vida cotidiana, e só se comunica por meio destas categorias”[2]. 0 místico cristão recria na sua vida o seguimento de Jesus nas circunstâncias históricas onde está inserido. A pessoa de Jesus, na sua originalidade de relação com o Pai e na inauguração do Reino, dirigido preferentemente aos pobres, constitui o critério fundamental para discernir o verdadeiro místico.
Existem pessoas nas quais se conjugam experiências místicas e capacidades psíquicas extraordinárias, resultando em locuções e visões. No entanto, nem todo místico é vidente nem todo vidente é místico. Há videntes que simplesmente exercitam por conta própria uma capacidade pessoal e incomum, que chamamos paranormalidade, sensitividade ou extrassensorialidade. Conhecem-se videntes de outras religiões, especialmente os que exercitam a premonição (previsão do futuro) e há videntes que se servem de sua capacidade extrassensorial para fazer comércio e até ludibriar os outros.
O vidente cristão, quando impregnado pelo amor de Deus, vai se tornando sempre mais um místico. Mas o místico não necessita de locuções ou visões para testificar a autenticidade de sua experiência de Deus.
IV. VISÕES/APARIÇÕES: “REVELAÇÃO PARTICULAR” E MEDIAÇÃO DE GRAÇA
1. O status das revelações particulares
A teologia enquadra as visões e aparições nas chamadas “revelações privadas”. Ao contrário da Revelação fundante (com R maiúscula), destinada a todos, e denominada por isso de “Pública”, a revelação privada ou particular (com r minúsculo) faz parte da experiência individual ou grupal destinada a uma parcela do povo de Deus. Uma autêntica revelação privada não contradiz nem completa de maneira constitutiva a Revelação, mas colabora no seu processo de interpretação. Tem por função “atualizar, recordar, vivificar, explicar ou aclarar” a Revelação. Apresenta caráter mais prático, ao comunicar regras de conduta. Apela mais à esperança e à sua realização do que aos conteúdos da fé. Pode ser “unicamente um toque de atenção ou uma explicação particular”[3].
A Revelação de Deus em Jesus Cristo é a razão de ser da Igreja. Por isso ela se sente obrigada a proclamá-la e difundi-la. Mas a comunidade eclesial, como totalidade, não tem o dever de guardar ou difundir revelações particulares. É chamada a acolher essas manifestações, discerni-las e, se verificar algo de bom nelas, legitimá-las como serviço ao Povo de Deus.
Uma revelação particular não deve ser descartada a priori. Nenhuma norma racional pode limitar o direito de Deus se autocomunicar com quem queira e como queira. Deus é o extraordinário, o gratuito, embora normalmente se sirva de mediações ordinárias para se manifestar. No seu itinerário de fé, o ser humano necessita por vezes de sinais inusitados, embora eles sejam ambíguos. Servem para remeter a Deus, mas podem paralisar as pessoas, quando se detêm no seu aspecto maravilhoso.
2. Revelação particular e carismas
Uma revelação particular poderia se inserir entre os dons do Espírito Santo, dada a uma pessoa ou a um grupo em favor da comunidade eclesial. O Concílio Vaticano II reconhece a importância dos distintos carismas na Igreja, incluindo os extraordinários, mas não os superestima.
“Os carismas, quer eminentes, quer mais simples e mais amplamente difundidos, devem ser recebidos com gratidão e consolação, pois que são perfeitamente acomodados e úteis às necessidades da Igreja. Os dons extraordinários, todavia, não devem ser temerariamente pedidos, nem deles devem presunçosamente ser esperados frutos de obras apostólicas. O juízo sobre sua autenticidade e seu ordenado exercício compete aos que governam a Igreja. A eles em especial cabe não extinguir o Espírito, mas provar as coisas e ficar com o que é bom” (LG 12).
Visões e aparições se situam como um serviço de fé na Igreja, na ordem da experiência mística, do aprofundamento do conhecimento de Deus, da operatividade pastoral e da animação espiritual. Essas quatro características do carisma das visões não estão presentes, em cada vidente, na mesma proporção ou significado.
Como experiência mística, as visões são a expressão humana e espiritual de uma pessoa concreta, na sua relação singular com Deus, no caminho de seguimento a Jesus. Visam em primeiro lugar ao crescimento na sua vida de fé e à realização de sua missão de cristão. Não necessariamente têm um aspecto comunitário-eclesial. Alguém pode ter visões que o ajudam na vida espiritual, mas elas não lhe foram dadas para ser comunicadas. Em alguns casos é bom que não sejam difundidas, sob o risco de trazer confusão e interpretações equivocadas.
Há visões que têm nítida destinação eclesial, o que aparece sobretudo no seu caráter de animação espiritual. O vidente convoca o Povo de Deus para voltar ao Evangelho, para intensificar a resposta às interpelações de Deus, para escolher o bem e rejeitar o mal. Como o Evangelho apresenta múltiplas possibilidades de realização, o vidente pontua algumas especialmente. Nesse sentido, o/a vidente continua ou inaugura alguma corrente de espiritualidade, ao apontar para uma maneira específica de viver e alimentar o compromisso com a Boa Nova de Jesus.
Visões e aparições comportam também uma operatividade pastoral direta. No conteúdo das mensagens dos videntes, delineiam-se orientações concretas para a vida de determinado grupo de cristãos em circunstâncias históricas particulares. Como operatividade pastoral, a mensagem do vidente orienta os cristãos para a prática evangelizadora no mundo, privilegiando certos recursos e meios, entre os tantos possíveis e disponíveis.
Por fim, e este aspecto é menos comum, as visões/aparições podem ser ocasião de fornecer elementos para ampliar o processo de interpretação da fé. Experiências místicas originais resgatam dados da Bíblia e da experiência humana que servem de base para a piedade, a liturgia e a reinterpretação e atualização do dogma.
3. Revelação particular e comunhão dos santos
Quem se manifesta nas visões/aparições? Na Bíblia, visões, locuções ou aparições provêm de Deus ou de Cristo ressuscitado. Atualmente a grande parte origina-se de Maria. Como é possível? Por que essa preferência pela mãe de Jesus? A resposta teológica a essa questão se enraíza na crença católica da comunhão dos santos.
Por “comunhão dos santos” entendemos três realidades intimamente conjugadas: a comunhão de Deus Pai, Filho e Espírito conosco; a dimensão comunitária da Igreja santa e pecadora e a relação da comunidade eclesial com os fiéis defuntos. O próprio Deus é comunhão trinitária, que constitui e estimula a formação de comunidades. O Pai se nos comunica através do Filho, no Espírito. A Trindade é fonte de toda santidade e comunhão. Jesus Cristo, autor e realizador de nossa fé, é o único mediador entre Deus e a humanidade (1 Tm 2,5). Mas Jesus nunca está sozinho. Durante sua vida pública constitui a comunidade dos doze, para estar com ele, segui-lo mais de perto e preparar o advento do Reino de Deus (Mc 3,13-18). O Cristo ressuscitado associa a sua Igreja, comunidade animada pelo Espírito (At 2,1-41), na missão de anunciar o Evangelho até os confins da terra. A Igreja é o novo Povo de Deus e o corpo de Cristo (LG 7-10).
A Igreja peregrina neste mundo está em constante tensão produtiva, ao buscar a unidade na diversidade e a catolicidade em diferentes culturas. Como comunidade humana, é formada por santos e pecadores que buscam viver a caridade. Experimenta conflitos de natureza ideológica, cultural, de poder. Propõe e realiza, de forma fragmentária, práticas e estruturas que testemunham e estimulam a convivência fraterna. Neste segundo sentido, chamamos de “comunhão dos santos” a essa utopia, nunca plenamente realizada neste mundo, de práticas e estruturas embebidas de amor fraterno, participação e comunhão.
A união dos cristãos entre si e com Cristo, dirigida ao Pai no Espírito, não se esgota neste mundo. Nós, os vivos nesta existência, intercedemos a Deus pelo processo de purificação e evolução dos que estão passando pelo purgatório. Na “Igreja triunfante” do além-morte, grande comunidade da solidariedade e da santidade, os “vivos em Deus”, que já foram glorificados pelo Senhor, continuam exercitando sua missão de intercessão e ajuda aos que peregrinam neste mundo. Há, portanto, originais relações entre os cristãos, em virtude da fé, da esperança e da caridade, que ultrapassam o nosso atual estágio de existência.
A mediação dos santos está em relação de dependência e subordinação à única mediação de Jesus Cristo. Maria, devido à sua situação de estar muito perto de nós e muito perto de Deus (cf. GS 54), exerce de forma especial essa missão de comunhão e auxílio à Igreja que peregrina neste mundo. Esse é o motivo teológico último para explicar por que a maioria das visões/aparições referem-se a Maria[4].
As pretensas aparições do Sagrado Coração de Jesus, por sua vez, devem passar por uma purificação de linguagem, pois “o Sagrado Coração” não existe como um ente à parte. E uma maneira plástica de expressão do próprio Cristo ressuscitado, como amor misericordioso e infinito.
V. GRANDEZA E RELATIVIDADE DESTAS MEDIAÇÕES DE GRAÇA
O mariólogo R. Laurentin define as visões/aparições como “manifestações sensíveis do sobrenatural”. O Deus invisível se manifesta através de um conjunto de sinais visíveis, para alcançar o ser humano. Ora, sendo manifestação sensível, as visões/aparições comportam uma tríplice relatividade, uma da parte de Deus e três da parte do ser humano. Deus se adapta às condições humanas, ao veicular sinais que possam ser compreendidos e decodificados. O vidente, por sua vez, capta a comunicação divina segundo seus esquemas mentais, sua linguagem e experiências anteriores[5], com um gênero de decodificação distinto do conhecimento sensorial comum. A terceira condição de relatividade diz respeito ao grupo que acolhe, apoia e divulga a experiência do vidente, em determinado contexto cultural. Vamos dar alguns exemplos, pois esta questão é vital para uma compreensão integral das visões/aparições.
1. Relatividade da mensagem e da experiência do vidente
Um dos problemas mais sérios que se enfrentam, ao iniciar o diálogo com videntes e seu grupo, reside no fato de eles estarem convictos de que tudo o que recebem e tematizam como vindo de Deus ou de Nossa Senhora é infalível e tem o mesmo valor. A experiência mostra, no entanto, que mesmo nos casos de aparições reconhecidas pela Igreja, impõe-se separar o “joio do trigo”. Até em visões consideradas como legítimas experiências de Deus se misturam a Graça, a finitude humana e às vezes o pecado. Nem tudo na mensagem dos videntes tem o mesmo peso, e há elementos espúrios que devem ser relativizados ou não levados em conta. Vejamos.
a) Imagens a respeito das realidades do além-morte
Quando Lúcia, a vidente de Fátima, descreve a visão do inferno, em 13 de julho de 1917, não está relatando algo literal, ou fazendo uma reportagem do que ouviu “via satélite”, de Nossa Senhora, mas expressa o fruto de sua experiência mística, construída sobre o imaginário religioso católico português, o inconsciente coletivo, as suas experiências familiares e psicológicas etc. Reproduz as representações populares, multisseculares sobre o inferno, como lugar de fogo. Como sabemos, o elemento material “fogo” não faz parte do núcleo cristão da afirmação teológica sobre o inferno.
“O reflexo pareceu penetrar a terra, e vimos como que um mar de fogo. Mergulhados nesse fogo, os demônios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras, ou bronzeadas, com forma humana, que flutuavam no incêndio, levadas pelas chamas que delas mesmas saíam juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, semelhantes ao cair de fagulhas nos grandes incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero, que horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os demônios distinguiam-se por formas horríveis e asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes como negros carvões em brasa”[6].
O mesmo se dá quando a vidente pergunta sobre Amélia, uma amiga recém-falecida, e recebe a mensagem de que ela “estará no purgatório até o fim do mundo” (idem, p. 140). Ninguém, nem mesmo Nossa Senhora, pode dizer que alguém permanecerá no purgatório em maior ou menor intensidade. Na concepção católica, a passagem pelo purgatório depende do processo de purificação da pessoa e da ajuda dos que intercedem por ela. O próprio compilador do Livro, Pe. Antônio Maria Martins, faz uma observação no rodapé da página citada, pois sabe que seria incoerente a interpretação literal dessa visão.
b) Influência do devocionismo
O devocionismo português do início do século está presente nas visões de Lúcia e de seus companheiros, quando, por exemplo, relata que Maria anuncia a vinda de duas diferentes Nossas Senhoras, de Nosso Senhor e o menino Jesus com São José. A espiritualidade e a teologia contemporâneas nos esclarecem que são as mesmas pessoas de Jesus e de Maria. Um vidente dos nossos dias, impregnado da centralidade da pessoa de Jesus, dificilmente transmitiria uma mensagem dessa forma. Mas ela era normal em 1917, para pessoas de uma sociedade tradicional e rural, repleta de devoções aos santos.
“Chegamos à Cova da Iria e começamos a rezar o terço, com o povo. Pouco depois, vimos o reflexo de luz e, a seguir, Nossa Senhora sobre a azinheira: ‘Continuem a rezar o terço para alcançarem o fim da guerra. Em outubro virá também Nosso Senhor, Nossa Senhora das Dores e do Carmo, São José com o menino Jesus para abençoarem o mundo’” (p. 146).
Existe também relatividade no tocante às práticas devocionais recomendadas pelos videntes. Margarida Maria Alacoque, em visão, recebe o mandato de realizar e de divulgar as comunhões das doze primeiras sextas-feiras, em reparação ao Sagrado Coração de Jesus, como penhor de salvação eterna. Lúcia, ao contrário, recebe outra ordem e outra promessa: “Durante 5 meses, ao primeiro sábado, receber a sagrada comunhão, rezar o terço, fazer 15 minutos de Companhia a Nossa Senhora, meditando nos mistérios do rosário, e fazer uma confissão com o mesmo fim (…). Às almas que deste modo Me procurarem desagravar, prometo assistir-lhes, à hora da morte, com todas as graças necessárias para a salvação” (idem, p. 169).
Os videntes atuais propõem outras formas de exercícios de piedade e de oração. Todos afirmam, com certeza, que estão transmitindo diretamente uma ordem de Nossa Senhora ou de Jesus. Por exemplo, Marcos Tadeu, de Jacareí, recomenda a hora de oração em família, como “poderosa barreira contra a fumaça de satanás”, cada dia numa intenção: segunda-feira, ao Espírito Santo, terça-feira aos anjos, quarta-feira aos santos etc., e o rosário da paz, nos sábados à noite[7]. Já o vidente Raimundo Lopes, de Belo Horizonte, propõe a “Grande aliança mariana para estes tempos”, através da oração do Pai-Nosso da Esperança, do Terço da Divina Chama e do uso da Medalha Missionária[8].
As práticas indicadas pelos videntes, tais como missas, jejuns, terços, confissões, não podem ser, entendidas pelos fiéis como fórmula mágica de salvação, garantia de felicidade neste mundo e “passe antecipado” para o céu. Elas constituem apenas meios concretos para favorecer o processo de conversão, de encontro com Deus e de seguimento a Jesus Cristo. As práticas piedosas em si não são o desejo explícito de Nossa Senhora, mas a interpretação do seu desejo único, que é a realização da vontade de Deus, traduzida em coisas concretas, mediada pela particular experiência mística do vidente e de seu grupo.
c) Os segredos e o fim do mundo
A relatividade das palavras do vidente se mostra, também, nos chamados “segredos”. Alguns segredos podem ser, devido a uma especial graça de Deus por meio de premonição, sinais positivos que atestam a autenticidade da experiência mística do vidente e de sua mensagem. Mas esta mensagem não necessita ser aceita por nós na sua totalidade. Como mensagem humana, tem limitações e impurezas, especialmente se carregadas de clima apocalíptico.
O magistério da Igreja é extremamente prudente quando se trata de segredos de visões referentes às catástrofes cósmicas e ao fim do mundo. Pede que eles não sejam divulgados, pois poderia levar os fiéis a se equivocarem, a se angustiarem com previsões imprecisas sobre a parusia (segunda vinda de Jesus) e o fim da história.
Os dois mil anos de história nos ensinaram que muitos místicos e videntes se enganaram redondamente a respeito de previsões sobre o fim do mundo e advento de novo milênio. A mentalidade milenarista penetra de forma imperceptível na mente de alguns videntes contemporâneos, que têm a impressão de estar ouvindo uma inequívoca voz de Deus ou de Nossa Senhora. Esse elemento pede um discernimento especial e muita prudência pastoral. Excessivo tom apocalíptico nas mensagens de determinado vidente pode sinalizar falta de autenticidade espiritual.
d) Diferente densidade na mesma mensagem
Trechos de mensagens do mesmo vidente têm diferente peso e valor. Há alguns que podem expressar de forma mais intensa e clara a imediaticidade mediada da experiência de Deus, sua graça salvadora. Há outros que são escórias, elementos da contingência humana, tributo à limitação e ao pecado das mediações. Tomemos, por exemplo, o relato 458 do vidente Pedro Régis Alves, em Angüera, Bahia, no dia 2 de novembro de 1991. Na referida mensagem há elementos dignos de nota, como o apelo à solidariedade e uma nova visão de Igreja, típica do Vaticano II. Dirigindo-se aos padres, diz:
“Realizai vossos trabalhos sacerdotais com amor e dedicação sincera, para que todos sintam a proximidade da Igreja que os acolhe, os apoia e os ajuda como uma mãe. Dai especial atenção aos mais pobres e desamparados (…). A Igreja, a partir de uma posição de pobreza e de liberdade em relação aos poderes deste mundo, deve anunciar com coragem a lei do amor fraterno, a necessidade da comunhão e da solidariedade entre os homens, as inevitáveis exigências da justiça, a esperança luminosa da vida eterna (…). Tende confiança em que tudo isso surja sob ação do Espírito Santo, uma crescente renovação da Igreja, de suas estruturas, carismas e ministérios, que a torne mais viva, presente e operante como sacramento de salvação entre os homens. É este o Meu desejo e o desejo do Meu Filho”[9].
Na citada mensagem 458, o vidente tem algumas afirmações desconcertantes, que parecem provir de outra visão de Igreja, como a ordem para os padres vestirem batina e voltarem ao confessionário e a condenação sumária e simplista à Teologia da Libertação[10].
2. Relatividade do contexto cultural
O vidente está inserido num contexto cultural mais amplo, de onde lhe vem uma série de elementos que configuram sua psique. O esquema mental do vidente é o fruto das intrincadas junções da subjetividade com as estruturas de significação advindas da sociedade concreta da qual ele provém. A influência do contexto cultural, introjetado e assimilado no vidente através de seu esquema mental, se mostra, por exemplo, na aparência que reveste Nossa Senhora nas diferentes aparições.
Se Maria é a mesma, porque se mostra de maneira diversa em cada grupo de aparições? Devido à distinta experiência subjetiva do vidente e do contexto cultural onde ele está. Maria, na comunhão dos santos, já tem um corpo glorificado, qualitativamente distinto do nosso. Mas o vidente configura uma imagem de Maria ao seu modo de percepção. Isso se manifesta, por exemplo, nos traços do rosto, na cor e no tipo da pele, dos olhos e do cabelo, que variam muito de uma “Nossa Senhora” para outra. E difícil a gente se relacionar com uma pessoa que não tem rosto. A configuração do rosto e da silhueta de um corpo humano facilita a compreensão do vidente.
Outro elemento de relatividade antropológica e cultural são as roupas de Maria. Um corpo glorificado não necessita de roupas, que são uma criação da cultura humana. Mas para nós, ocidentais modernos, seria no mínimo escandaloso imaginar uma aparição de uma personagem divina nua, sem roupas. Ademais, as vestes têm forte conotação simbólica. Podem evocar para nós, seres humanos, a realidade interior de alguém, sua função ou seu estado de espírito no momento. Na visão da transfiguração, as vestes de Jesus se tornam brancas como a luz (Mt 17,2), para indicar o estado de Glorificação e comunhão com o Pai. As vestes de Maria, predominantemente branca e azul, indicam, em registro simbólico, visual, não verbal, a presença junto de Deus e a força de ternura e paz.
3. A força do grupo em torno do vidente
O grupo que cerca o vidente exerce enorme influência no fato mesmo das visões/aparições, na sua repercussão social e na divulgação da mensagem.
É notório que grande parte das pretensas visões/aparições recentes acontecem em clima de oração, no momento em que um numeroso grupo de fiéis piedosos se unem ao vidente. Positivamente, tal fato dá as condições para a ação especial da graça de Deus no vidente, que capta, de forma original, na sua experiência subjetiva, o apelo e o consolo de Deus na comunhão dos santos. A oração em comum tem um efeito poderoso, pois abre o coração humano às intermináveis possibilidades de transformação de Deus na nossa vida.
Por outro lado, o clima fervoroso de fiéis, impregnado de desejo de sinais extraordinários e de mentalidade apocalíptica, pode condicionar êxtases religiosos que são apenas piedosas repetições da experiência devocional popular e de sua respectiva linguagem. Por meio de sua percepção extrassensorial, o vidente capta e reelabora, de forma inconsciente, a mensagem que o grupo anseia escutar. Até fenômenos extraordinários da natureza e milagres de cura podem acontecer, como resultado desse intenso clima comunitário. Alucinações coletivas e manifestações histéricas também são possíveis.
O grupo é responsável pela repercussão social da visão/aparição. Aquilo que era até então uma experiência mística do vidente se toma fato social. Reveste-se de significações múltiplas, que dependem muito da natureza do grupo que a acolhe, interpreta e divulga. A mensagem do vidente tem efeitos muito diferentes, se encontra grupos de cristãos maduros e críticos, que se servem criteriosamente dela, ou se é apropriada por grupos espiritualistas, intimistas ou sectários, que selecionam, muitas vezes involuntariamente, os dados correspondentes ao seu esquema mental. O grupo pode tomar da experiência do vidente elementos secundários e transformá-los em fundamentais, exercendo futuramente pressão sobre o próprio vidente, pelo fato de serem mais simples, imediatos, fáceis, conhecidos.
Existe também a seleção voluntária, que salta aos olhos. A mais simples consiste em dar destaque a certas frases das mensagens do vidente, que correspondem aos interesses dos seus divulgadores. Trata-se de uma forma sutil de desvirtuamento da totalidade do texto. Um elemento secundário ou mesmo impuro pode ganhar o destaque como mais importante. Na citada mensagem 458 de Pedro Régis, em Angüera, há algumas frases em letra maiúscula, que expressam claramente a preferência da editora do livro, pois Nossa Senhora não diz para o vidente escrever em letras maiúsculas ou minúsculas. O leitor, ao ler o texto, fixará a atenção nas frases em letras maiúsculas, como: “HÁ O PERIGO DE CONDENAÇÃO ETERNA PARA OS QUE NÃO SE PREOCUPAM COM A CONFISSÃO” (p. 12). Fato semelhante ocorre também no livro que relata as visões de Marcos Tadeu Teixeira, em Jacareí. Na página 86 chama a atenção uma frase em letras maiúsculas: “Em breve também, o Brasil vai receber uma grande graça, A MINHA PRESENÇA ATRAVÉS DE APARIÇÕES, DE MINHAS MENSAGENS E IMAGENS QUE SE MANIFESTAM EM CADA UM DOS ESTADOS BRASILEIROS”. Mais preocupante, no entanto, é o trecho sublinhado, no qual se diz: “Em breve alguém vai se sentar no trono do Papa, mas não será o Papa. É o Anticristo que se aproxima”.
4. A tendência massificante sobre a mensagem dos videntes
Há um fenômeno humano, analisado de forma brilhante por J. L. Segundo, que ele denomina de tendência massificante ou entrópica[11], que acontece em cada pessoa e sociologicamente se manifesta nas massas. As grandes concentrações de população, como também o homem-massa, apresentam uma tendência ao mais fácil, simplificado, indiferenciado e imediato. Até em alguns casos recentes, nos quais transparece autêntica experiência de Deus nos videntes, se mostra o poder da tendência massificante e simplificadora. Muitas vezes o vidente não consegue imprimir a dimensão profético-social da sua experiência mística ao grande grupo e às massas que a acolhe. A mensagem de cunho profético-social é minoritária, exige energia mais complexa, mediações que rompem o ambiente religioso conhecido.
As mensagens dos videntes de Medjugorje estão embebidas do apelo à paz, tanto nos corações como na sociedade. Expressam uma experiência religiosa admirável e empenho concreto dos videntes no contexto de guerra e violência, conflitos culturais, étnicos e religiosos na antiga Iugoslávia. A mensagem da luta e compromisso efetivo pela paz e contra a violência, no entanto, tende a se diluir em muitos grupos que divulgam a mensagem de Medjugorje. A “tendência massificante” ao mais simples e imediato faz com que esses grupos se concentrem sobretudo na oração do terço e nos possíveis milagres e conversões. Mais raro é encontrar no Brasil partidários de Medjugorje empenhados nos movimentos pela paz social, lutando contra a violência urbana sobre os menores de rua, atenuando a violência sexual contra a mulher, engajando-se em grupos que propõem uma nova convivência. É mais fácil distribuir a mensagem dos videntes, divulgar a imagem de Nossa Senhora, promover a reza do terço, do que retraduzir para a realidade brasileira a mensagem da Rainha de Paz, buscando meios criativos para criar a paz social no nosso país.
A consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria não parece constituir o centro da mensagem de Fátima. Hoje, no entanto, há grupos visionários que alardeiam por todo o mundo que a consagração da Rússia será a única solução para evitar o caos mundial[12]. Tomaram um elemento secundário da mensagem dos videntes, apropriaram-se dela e fazem-na seu baluarte.
As mensagens de Pedro Régis, na Bahia, têm elementos profético-sociais e devocionais. Os grupos que criam e divulgam o seu movimento têm a tendência de colocar em segundo plano o apelo a uma nova forma de ser Igreja, a opção pelos pobres, a luta contra o racismo, e privilegiar os apelos religiosos e devocionais já conhecidos: rezar o terço, fazer jejum etc. Em geral, as práticas devocionais propostas pelos videntes são meios bons, porém relativos, para levar à conversão. Tornam-se problemáticos quando absolutizados.
As mediações, portanto, comportam um inequívoco grau de relatividade, que não lhes tira seu valor e significação. Nós, seres humanos, experimentamos a Graça de Deus através desses meios, na sua grandeza e limitação. Acolher essa verdade tão simples nos ajuda a superar visões simplistas, ingênuas e infantis, que absolutizam mediações limitadas e não conseguem distingui-las do absoluto de Deus. Em alguns casos extremos, o espiritualismo ingênuo é tão pernicioso quanto o materialismo ético e religioso. Ambos, por caminhos radicalmente opostos, absolutizam o relativo e não deixam Deus ser Deus. O Senhor se serve das mediações de videntes para continuar se comunicando conosco, mas essas sempre guardam a finitude e a ambiguidade das coisas criadas. Só Deus é (o) absoluto.
5. Dimensão positiva da particularidade da mensagem
A particularidade comporta algo positivo, pois o vidente interpreta e atualiza a mensagem do Evangelho, na comunhão dos santos. Assim, por exemplo, os videntes de Medjugorje destacam a necessidade da paz mundial e da superação do consumismo.
“Queridos filhos! Eu convido vocês a se decidirem novamente a amar a Deus sobre todas as coisas. Nestes tempos, quando devido ao espírito de consumismo uma pessoa esquece o que significa amar e apreciar valores verdadeiros, eu convido novamente vocês, filhinhos, a colocarem a Deus no primeiro lugar em sua vida. Não permitam que Satanás atraia vocês por meio de coisas materiais, mas, filhinhos, decidam-se por Deus, que é liberdade e amor”[13].
Na mesma linha de interpretação e atualização de apelos do Evangelho, o vidente de Angüera se pronuncia contra o racismo e defende a igualdade fundamental dos seres humanos.
“Sou a mãe de todos, especialmente dos que sofrem por causa da discriminação racial. Não olheis com indiferença para vossos irmãos negros, pois eles são, como vós também, filhos de Deus. A fé num só Deus, criador e redentor de todo gênero humano feito à sua imagem e semelhança, constituiu a negação absoluta e inflexível de toda ideologia racista. Não podeis invocar Deus como Pai de todos, se recusais o tratamento fraterno aos vossos irmãos negros” (p. 19).
A atualização da mensagem cristã, através de apelos concretos provenientes da experiência mística dos videntes e de seus poderes extrassensoriais, tem relação original com o público a que se destina. Primariamente, é uma mensagem dirigida a um grupo cristão bem determinado. Condiciona-se parcialmente àquilo que o grupo é capaz de compreender e que necessita em determinado momento de sua caminhada. Esse fator pode ajudar a explicar porque tanta insistência em práticas devocionais, pois elas são as únicas conhecidas pela grande massa que acorre aos lugares de possíveis aparições.
Quando falamos em particularidade e relatividade da mensagem do vidente, não queremos descaracterizar a sua importância. Procuramos, sim, colocá-la no seu devido posto, para que ela não ocupe o lugar da Palavra de Deus e do discernimento, que cada cristão e cada grupo deve fazer na sua vida.
VI. PARA CONCLUIR
As visões e aparições podem ser um serviço à comunidade cristã, como forma concreta de ajudar a descobrir a vontade de Deus na vida concreta de muitos cristãos. O Senhor pode estar nos falando através da experiência dos videntes. As suas mensagens, no entanto, mesmo que venham “assinadas” por Jesus ou Maria, não são algo infalível e incontaminado. Pelo contrário, como qualquer mediação humana, carregam a marca da Graça de Deus, da limitação e até do pecado. Por isso, devem ser discernidas e interpretadas, e não aceitas de forma ingênua. Compete a toda a comunidade cristã, incluindo leigos, religiosos e hierarquia, contribuir nesse processo, evitando tanto a fé cega quanto a oposição preconceituosa.
[1] J. B. Libânio, Teologia da revelação a partir da modernidade, Loyola, S. Paulo, 1992, p. 302.
[2] J. Espeja, Espiritualidade cristã, Vozes, Petrópolis, 1995, p. 159.
[3] R. Laurentin, “Apariciones”, in Nuovo Diccionario de Mariologia, San Pablo, Madrid, p. 196s.
[4] Outros fatores de ordem sociológica e cultural ajudam a explicar a predominância das aparições marianas, como a reapropriação cristã dos primitivos cultos da deusa mãe, a projeção do arquétipo da “Grande mãe” em Maria e a importância da figura de mãe no imaginário popular.
[5] Cf. R. Laurentin, Apariciones actuales de la Virgem Maria, RIALP, Madrid, 1991, 2ª ed., pp. 50-57, 73.
[6] Ir. Lúcia, O segredo de Fátima. Memória e cartas. Introdução e notas de A. M. Martins, Loyola, S. Paulo, 1985, 7ª ed., p. 143.
[7] Cf. M. T. Teixeira, “Mensagem de Jesus e Maria em Jacareí”, Milícia da Paz, Jacareí, 1996, 2ª ed., pp. 69 e 116.
[8] Cf. “Eu sou a Senhora do Rosário”, in Boletim do Sim, Belo Horizonte, julho de 1995.
[9] Pedro Régis Alves, Apelos urgentes de Nossa Senhora da paz em Angüera, Bahia, t.II, S. Paulo, 1995, organizado por M. do Socorro Chaves Cerchiari, 9ª ed., pp. 6 e 9.
[10] Cf. idem, p. 7: “Satanás conseguiu espalhar seus erros em toda a parte…”.
[11] Cf. J. L. Segundo, Massas e minorias na dialética divina da libertação, Loyola, S. Paulo, 1975, pp. 14-24; 42- 45.
[12] Cf. Nicholas Gruner, Escravidão mundial ou paz… A decisão é do Papa, Imaculate Heart Publications, Fort Erie (Canadá), versão brasileira, 1993.
[13] Mensagem de Marija Pavlovic Lunetti de 25/3/96, in Atualizando Medjugorje nº 97, Brasília, p. 1; reproduzido em Rainha da Paz nº 78, S. Paulo.
Irmão Afonso Murad