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Publicado em número 188 - (pp. 15-19)

Os limites do humano

Por Pe. Luiz Roberto Benedetti

A finalidade deste artigo é refletir sobre o pecado dentro do âmbito do estudo da cultura, tomando-a no seu sentido mais amplo e genérico de visão de mundo, modo e estilo de vida, com todas as imprecisões que isso implica.

De início, importa reconhecer que o lugar apropriado para o tratamento do tema é o teológico. A nossa reflexão caminha no sentido de mostrar que a “crise” desta “noção” está ligada às transformações do lugar da religião na sociedade. Num momento histórico marcado pela ideia de ordem hierarquizada por Deus, há uma “coincidência” entre o natural e o social, e assim a ideia de uma lei natural como expressão da lei de Deus fixa os limites do bom/mau, do legítimo/ilegítimo, permitido/proibido.

Essa “objetivação” do pecado parece ter sido superada pela teologia. Experiência humana fundamental — da fragilidade, da limitação, do mal, de participação em uma “humanidade” comum cuja grandeza é feita de altos e baixos —, o pecado é uma realidade que tem significação para aquele que “tem o sentido da existência de um Deus pessoal”[1]. Assim, a palavra pecado tem sentido para quem tem fé. Como tal ele se enraíza na escolha livre e pessoal do homem, feita à luz da fé.

Essa postura representa um ponto de chegada à modernidade: a subjetividade e a liberdade fundam a culpa pessoal e o ato pecaminoso como ato da vontade livre (e também o valor do bem praticado). Sociologicamente isso quer dizer que não se vive mais numa sociedade que encontra seu sentido totalizador das experiências, individual e social, na e pela religião. A teologia teria incorporado esse dado à sua reflexão.

Mas, olhando a situação atual, será que o pressuposto enunciado não deve ser questionado? Ou seja, hoje até mesmo sociólogos e psicólogos se perguntam: não estará o homem necessitando de “limites” objetivos? Ou mais do que limites — que podem sugerir controle, repressão —, não há necessidade de critérios, paradigmas, valores objetivos que ultrapassem a mera subjetividade como fonte de valor, numa realidade na qual ciência e técnica têm como pressuposto a não interferência de esferas estranhas ao seu mundo?

 

1. Convergências

O fato chama particularmente a atenção: são os próprios analistas da cultura contemporânea que, sem usar a palavra, mostram-se inquietos com a perda de “sentido de limite” que, de forma bastante explícita, a noção de pecado traz consigo.

Há aqui uma espécie de convergência de fundo: tanto o Papa João Paulo II insiste nas consequências nefastas da ausência de limites quanto pensadores não ligados ao mundo da religião. Mas, mesmo neste mundo, há inquietação quanto às consequências desastrosas de uma revivescência de uma visão fundamentalista da realidade — o mal e o bem objetivamente estabelecidos sem a interferência de uma mediação hermenêutica. O renascimento fundamentalista não deixa de pôr em risco resultados expressivos de longas lutas por uma convivência social fundada na liberdade pessoal, na tolerância e no sentido de responsabilidade individual. Simplificando bastante, todos os que encaram com responsabilidade os destinos da humanidade temem tanto os poderes dos “policiais do universo” (de qualquer natureza) quanto um individualismo exacerbado que encontra no “fazer o que se gosta” o critério ético decisivo.

Lasch, em seu último livro, chega a interrogar-se sobre a sobrevivência da democracia numa sociedade que, como a americana, elimina as restrições internas que fundavam uma ética do trabalho. Os homens se tornam cada vez mais autoindulgentes e, sem restrições internas, polícias e prisões não dão conta de lidar com a ilegalidade.

Para ele, esta deserção massiva de padrões de conduta pessoal está ligada à decadência religiosa. As pessoas “professam a crença em um Deus pessoal, pertencem a uma denominação religiosa e assistem aos serviços religiosos com alguma regularidade”[2], mas isso não significa que a vida pública seja influenciada pelas normas religiosas. Pelo contrário, a religião se reduziu a um fundamentalismo caricatural vazio, a um movimento reacionário ativado pelas elites quando se trata de defender seus interesses contra medidas progressistas obtidas nos últimos trinta anos.

Para Lasch, o conceito de pecado foi substituído pelo conceito de doença. Uma visão religiosa de mundo cedeu lugar a uma visão terapêutica da realidade: “doença e saúde substituíram a culpa, o pecado e a expiação como as preocupações dominantes que guiavam aqueles que lutavam para entender a vida ocultada mente”[3]. Rieff fala de “ajustamento” de funções sociais mediante a “vitória da terapêutica”[4].

A globalização crescente da sociedade agrava ainda mais a situação. A globalização supõe a quebra ilimitada de fronteiras, a homogeneização geral das culturas e sociedades (ainda que levada a efeito em nome da diferença, da afirmação de si, da identidade e liberdade de escolha pessoais). Ela elimina, assim, os estranhos “que possam servir como representantes sociais do mal. Sem eles, as forças do bem tornam-se também mais difíceis de identificar, debilitando, por exemplo, os códigos morais deontológicos e a ênfase da salvação que vem do outro mundo”[5].

 

2. Um longo percurso

Mas até chegar a esta situação percorreu-se um longo caminho. Refaçamos o percurso para nos situarmos perante o problema, definindo seus contornos.

Há diferentes matizes éticos de conceber Deus e pecado, intimamente vinculados à busca de salvação. O conteúdo — salvar-se “de que” e “para que” — delineia as diferenças, que vão desde a concepção mágica de contaminação até uma visão sacerdotal, intelectualmente sofisticada de transgressão: “o conteúdo específico da ideia de salvação por um além pode significar tanto a libertação dos sofrimentos físicos, psíquicos ou sociais da existência terrestre, ou a libertação do absurdo desassossego e caducidade da vida enquanto tal ou a libertação da inevitável imperfeição pessoal, tanto se se entende esta como ‘mancha’ crônica ou como inclinação aguda ao pecado ou, de um modo mais espiritual, como desterro na obscura confusão da ignorância terrena”[6].

Na realidade, o senso comum e mesmo a prática pastoral da Igreja sempre associaram pecado e carência, falha, imperfeição e, de maneira mais elaborada, como ato de transgressão consciente a normas estabelecidas. Mas dificilmente se ultrapassa o plano puramente pessoal, subjetivo, íntimo. Ou, então, o oposto: a objetivização materializada do pecado: os pecados são elevados, classificados sem nenhuma consideração pelas circunstâncias, condicionamentos objetivos e subjetivos, limitações à vontade e liberdade pessoal. Acredita-se numa “soberania da vontade” como se os homens pudessem fazer não o que “podem”, mas o que querem.

Ora, a modernidade, se, de um lado, é a razão ilustrada que funda o uso da liberdade pessoal, contra as imposições da tradição (associada à religião e esta a atraso, superstição), é, de outro, a descoberta dos condicionamentos, de tudo aquilo que torna a razão “cativa”[7]. A sociologia e a psicanálise são expressões desse fato.

Mas a própria sociologia vem mostrar que há uma evolução. Assim, Weber fala de um processo crescente de racionalização ética. Racionalização que é também universalização. A ética presa aos laços de sangue, do clã, da tribo (o “mundo”, a sociedade são definidos pelos laços de sangue) universaliza-se na forma de uma religião mais abrangente (e racional) que os vínculos de parentesco. Mas o que é universal nos homens é a razão e só ela pode fundar uma ética verdadeiramente universal que ultrapasse os particularismos religiosos. O próprio Weber era, porém, crítico deste processo: não via esta racionalização como “humanização”, mas como domínio crescente da razão instrumental e funcional. Não é o predomínio da razão que pensa os fins e objetivos da ação humana, mas aquela impessoal que une meios e fins. Sua tradução social dá-se pela burocratização, impessoal, que faz os homens viverem numa jaula.

Pode-se ler nesse viés a afirmação de Pio XII de que o mundo moderno perdeu a noção de pecado. Na realidade, a racionalização da vida social — e da ética — é um fato. Mas ao mesmo tempo, é interessante observar o fato a que já nos referimos, de que a própria religião fez o mesmo, transformando o pecado numa realidade objetivada, impessoal, catalogada. Não se pode, a rigor, falar que haja nessa “catalogação” um sentido pessoal profundo de pecado. Nem sequer que conduza a isso. É difícil falar de pecado fora das categorias de liberdade e responsabilidade pessoais, que fazem parte do horizonte moderno de compreensão do homem.

É lugar comum, hoje, a separação entre o mundo sistêmico e o mundo vivido, distinção assumida pelas “Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil”. O mundo sistêmico — economia, política, direito, trabalho profissional — constitui-se como esfera autônoma, autorreferencial, totalmente desvinculada da vida cotidiana, da religião e da ética. Nesse domínio a “impessoalidade” é condição de perfeito funcionamento.

O mundo vivido é o da experiência subjetiva, o daquela esfera que confere orientação e sentido à vida pessoal e social e dá forma, colorido, densidade às relações com os outros (cada vez mais fruto de escolhas pessoais). Essa distinção, até certo ponto, pode ser assimilada à estabelecida entre o público e o privado. Nessa visão, a religião é cada vez mais relegada à esfera privada, subjetiva, da escolha pessoal.

Há, em certos setores da Igreja, recusa, ou pelo menos relutância (em grau variável), a falar em pecado social, em “pecado estrutural”. O que não se percebe é que essa postura reforça a autossuficiência, a autorreferencialidade do mundo sistêmico. Impede a religião de questioná-lo.

Mas, ao mesmo tempo, na esfera do vivido o indivíduo escolhe por si, é dono de si (ou se pretende assim, pois mesmo o que é imposto é feito em nome da liberdade pessoal). Aqui também há problemas: há lugar, mesmo nessa esfera, para o “pecado”?

 

3. Condicionantes sociais

A percepção de pecado é uma experiência condicionada socialmente, ao menos em parte. Com isso o que queremos dizer é que mesmo a “subjetivização” radical do pecado é resultado da própria realidade social.

Weber já percebera essa realidade. Ele distinguia entre religiões de salvação, próprias às classes “negativamente privilegiadas” (buscam na religião uma compensação para os males que objetivamente os afligem); e religiões de legitimação, próprias às classes privilegiadas (que procuram na religião uma justificativa para aquilo que são ou possuem). Nos dois casos a religião explica não apenas o “mundo”, mas sim o fato de ser o que se é neste mundo: “Conceitos como ‘pecado’, ‘redenção’, ‘humildade’ religiosa não somente estão muito distantes do sentimento de dignidade de todas as camadas dominantes (…) como o ferem diretamente. Aceitar uma religiosidade que opera com essas concepções e inclinar-se diante dos profetas ou sacerdotes devia aparecer ao nobre e ao herói (…) como algo destituído de nobreza, indigno”[8].

Já o pecado aparece para os dominados como explicação compensatória das privações que sofrem. As carências objetivas são justificadas como resultado de “falhas” ou então são transformadas em virtude. As observâncias rituais, as ideias de puro/impuro, contágio/purificação, servem para reforçar a ordem estabelecida, a coesão social. São, assim, um componente da vida social em todos os tempos. Não são fruto do medo do desconhecido, do terror que se associa comumente aos povos e religiões que, não sem preconceito, são chamados de primitivos. Pecado, sujeira, profanação, desordem: essa cadeia seria ditada pelo medo do desconhecido.

Hoje, os antropólogos analisam essas questões sob outro prisma: o da unidade da experiência humana[9]. A noção de pecado não teria a função de “ordenar a sociedade” apenas, mas também o mundo pessoal, subjetivo; tem a função de fazer com que a “experiência humana” apareça totalizada, significativa, coerente.

Há uma questão, porém. Ver o pecado apenas à luz das ciências sociais esvazia a noção “por dentro”. Ela passa de crivo, critério para “julgar” a realidade a algo que é analisado, dissecado por outra instância, “mais apropriada” à compreensão da realidade do homem no mundo: a razão. Produz objetivamente um esvaziamento da noção de pecado, ou melhor, da experiência do pecado, cujas possibilidades hermenêuticas devem ser acentuadas (desde que não seja visto como “conspurcação ontológica de indivíduos isolados”), como escrevia Hugo Assmann em número recente desta revista[10].

 

4. Fragmentação

Este “esvaziamento” se acentua cada vez mais à medida que adentramos na chamada pós-modernidade. Esta teria como núcleo a quebra da “unidade da experiência humana”. O homem aparece a si mesmo automovendo-se por impulsos espontâneos, sem um centro definidor de si e do mundo que o cerca. O cinema foi quem melhor sistematizou esta experiência, em “Kids”, filme de Larry Kerkin. Mostra um dia na vida de jovens americanos. A vida “acontece”. Não há fio condutor, nem consciência do que se vê ou do que se faz. A linguagem é o tempo todo a repetição de palavras e expressões chulas, cuja única função é servir de código definidor do grupo. Palavras que não dizem nada, não significam nada, à semelhança de vidas que são um suceder, sem sentido, de atos impulsivos: transar, fumar, beber, tomar dinheiro da mãe, bater em adulto indefeso. Sem nenhuma consciência do drama que vive “neles”: a AIDS. Nesse filme não se transgride nada, nenhum limite, simplesmente porque não há o que transgredir: a vida é uma sucessão de impulsos, sem ligação entre si, é entrega ao acaso.

O que se retrata, no fundo, é a perda radical do sentido da unidade da experiência vivida. Esse sentido é dado não só pela religião, mas também pelas teorias abrangentes como o marxismo e o freudismo, embora essas pusessem por terra a noção de pecado. Essas teorias, à medida que eram grandes construções, grandes narrativas “totalizantes” sobre a história e a sociedade, permitiam ao homem “situar-se”, isto é, ter uma percepção minimamente unificada de sentido do mundo.

Vivemos a crise desses grandes relatos, dessas visões de mundo abrangentes, e essa seria outra marca da pós-modernidade. Para seus teóricos mais radicais, a realidade da própria linguagem é dissolvida. A linguagem não nomeia mais a realidade, não diz o que as coisas são, mas é um jogo de palavras cujo sentido é dado pela combinação destas entre si. Cada grupo, ou mesmo indivíduo, combina as palavras como quer, a partir de sua habilidade em construir jogos de linguagem. As palavras são de quem as pronuncia, e ele as combina sem fazer da linguagem um vínculo que une a sociedade. À semelhança do videogame — no qual se joga o que está “programado” — essa linguagem “combina” dentro de um sistema “amarrado”: “o que quer que escrevamos transmite sentidos que não oravam ou possivelmente não podiam estar na nossa intenção, e as nossas palavras não podem transmitir o que queremos dizer”[11].

O modo como os jovens de hoje “brincam” com as linguagens — gestos, falas, canções e movimentos corporais — expressam tanto criatividade sem limites quanto sensação de vazio e ilustra o que estamos dizendo.

O mesmo acontece na relação do homem com as coisas, as realidades que o cercam. Nos anos 1950 falava-se de consumo de massa para designar a submissão à moda criando conformismo social. Hoje valoriza-se o “estilo de vida” para significar individualidade, autoexpressão, um “eu” estilizado: “o corpo, as roupas, o discurso, os entretenimentos de lazer, as preferências de comida e bebida, a casa, o carro, a opção de férias etc. de uma pessoa são vistos como indicadores de individualidade do gosto e o senso de estilo do proprietário consumidor”[12].

Nada fixo, nada definitivo, nada hierarquizado, nada estável: “atualmente não há moda, apenas modas”, “nada de regras, apenas escolhas”, “todo o mundo pode ser alguém”: a cultura acaba sendo não o modo subjetivo de vivenciar, apreender a realidade e interferir criativamente nela, mas a relação do indivíduo com uma imagem que forma de si. Nesse sentido, os objetos não são apenas utilidades com valor de uso e de troca. São “comunicadores”. São mercadorias-signos. O significado não está ligado ao uso, mas sim à sua posição num sistema autorreferenciado de significantes. As coisas que eu uso são o que elas querem dizer, e o que elas querem dizer depende de um fluxo contínuo de informações, de imagens que só se referem a si mesmas. O que importa não é a utilidade (em termos de uso), mas sim o estar-em-dia comigo mesmo, com minha imagem, que depende dessas mercadorias.

Vou mudando continuamente de mercadoria (de uma marca a outra, de um modelo a outro) não porque o uso exija, mas para situar-me num campo instável de significantes que flutuam: as mercadorias são sinais que indicam quem eu sou. Não me relaciono com a casa, com o carro, com a geladeira, com o tênis, mas sim com o que esses objetos significam dentro de um fluxo ininterrupto de informações. Não compro meu carro, compro um signo, isto é, um sinal visível, material que me diga o que sou e o que valho. A cultura deixa de ser relação expressiva com o mundo, compartilhada com outros. Torna-se relação do indivíduo consigo mesmo, com sua imagem forjada no fluxo das mercadorias-signos. Demos um exemplo para entender: um piloto de Fórmula 1, um tenor famoso, uma top model, associam sua imagem a determinado produto. Quem faz o bom piloto, a boa voz, a beleza da modelo? O produto? Ou é o inverso? É o tenor, o piloto, a modelo que dão ao produto a “qualidade” que têm. O que ocorre é uma relação entre signos. Um remete ao outro, e não à realidade objetiva: a capacidade do piloto, a voz do tenor, as “medidas” da modelo, de um lado; e o valor objetivo do produto, de outro. As imagens-signos se autorreferenciam, se autoalimentam.

Desaparece a diferença entre realidade “natural” e realidade virtual, criada, artificial. Os jornais têm anúncios convidando ao “sexo por telefone”. Busca-se o prazer na simulação de uma troca sexual com um computador (via telefone). Nesse processo o homem tende a tornar-se um simulacro de si mesmo.

 

5. E o pecado?

Pensemos o pecado neste quadro. Mais especificamente a sexualidade, no senso comum religioso ou não, sempre associada a pecado. À repressão religiosa — pecado — sucedeu a repressão científica — o sexo sadio, higiênico, o orgasmo planejado. Nos dois casos o que se proíbe é a realização do desejo sem mediações: no primeiro caso, a mediação da norma religiosa, no segundo, da norma científica. Foucault colocava o ápice da repressão na proibição religiosa da masturbação: o poder invisível (o saber religioso sobre a sexualidade) interdita ao indivíduo o relacionamento livre com o próprio corpo como lugar do desejo.

Mas, ao aceitar essa visão, teríamos chegado a um terceiro estágio: o eu — corpo consciente — se dissolve em favor de uma imagem que se cria de si para uso individual e social e que se relaciona com outro artifício (tanto pode ser a boneca inflável como a voz padronizada do outro lado da linha telefônica). Como falar de pecado nesse quadro?

 

6. O anseio pelo “imaculado”

Susan Sontag pergunta: “Como ser moralmente severo nesse fim de século XX? Como, quando há tanto com que ser severo? Como, quando temos uma noção do mal, mas não dispomos da linguagem religiosa ou filosófica para falar com inteligência sobre o mal? Tentando compreender o mal ‘radical’ ou ‘absoluto’, procuramos metáforas adequadas”[13]. Ela cita a doença, ou mais especificamente o câncer como metáfora para falar do que objetivamente não conseguimos enfrentar porque nos faltam categorias.

Começamos este artigo citando Lasch, que preconiza uma relação necessária entre democracia e normas sociais “internalizadas”. João Paulo II chama a atenção para o “limite” à ação humana livre e responsável. Habermas diz que “o novo valor atribuído ao transitório, ao fugidio e ao efêmero, a própria celebração do dinamismo, revela um anseio por um presente estável, imaculado e não corrompido”[14].

O quadro que descrevemos, de “quebra da unidade da experiência humana”, convive com o seu contrário, presente na busca de instituições estáveis, de verdades objetivas, de ética nas relações, no neoconservadorismo. A questão do pecado se coloca nesse terreno. Corre-se risco tanto na objetivação fundamentalista, que não atenta para as condições pessoais e sociais, quanto na absolutização da condição pessoal “livre”, que subjetiviza (abole na realidade) a visão de pecado. Há o risco de encarná-lo numa entidade — demônio — e eximir-se do uso consciente e responsável da própria liberdade, na interpretação e atuação nos fatos sociais e históricos. Ou radicalizar as condições objetivas, a ética da situação, e deixar as pessoas mais perdidas ainda.

Não é receita: talvez, para se falar de pecado, numa linguagem expressiva, comprometida e exigente, seja necessário voltar à literatura, ao Padre José de “O poder e a glória”, de Grahan Greene; e ao pároco de “O diário de um pároco de aldeia”, de Bernanos. Buscar o “imaculado”, a graça, lá onde Deus encontra o homem: a misericórdia em meio à miséria; a redenção, a libertação lá onde os “poderes do mundo” não enxergam perspectivas.



[1] POHIER, Jacques, “Hermenêutica do pecado perante a ciência, a técnica e a ética”, em Concilium 56, 1970/6, p. 745.

[2] LASCH, Christopher, A Rebelião das elites e a traição da democracia, Ediouro, Rio de Janeiro, 1995, p. 248.

[3] Ib., p. 250.

[4] RIEFF, Phillip, The limiths of the therapeutic, Nova Iorque, 1966.

[5] BEYER, Peter, “A privatização e a influência pública da religião na sociedade global”, em FEATHERSTONE, Mike, Cultura global – Nacionalismo, globalização, modernidade, Vozes, Petrópolis, 1994, p. 396.

[6] WEBER, Max, Economia y Sociedade I, Fondo de Cultura Económica, México, 1977, p. 419.

[7] Ib. pp. 380-381.

[8] Idem, Ibidem.

[9] Cf. Mary Douglas, Pureza e perigo, Perspectiva, São Paulo, 1976.

[10] Cf. Hugo Assmann, “Por uma sociedade onde caibam todos”, em Vida Pastoral 186, 1996, pp. 19-26.

[11] HARVEY, David, Condição pós-moderna, Loyola, São Paulo, 1993, pp. 53-54.

[12] FEATHERSTONE, Mike, Cultura de consumo e pós- modernismo, Studio Nobel, São Paulo, 1995, p. 119.

[13] SONTAG, Susan, A doença como metáfora, Graal, Rio de Janeiro, 1984, p. 105.

[14] Citado por Harvey, p. 291.

Pe. Luiz Roberto Benedetti