“Chamados à liberdade” (GI 5,13)
1. A democracia na ótica dos pobres
A liberdade é uma vocação. Há quem não queira a liberdade, ou as condições da liberdade.
Para quem vive no meio dos pobres, um dos maiores desafios pastorais é este: os pobres não querem a liberdade. Não estão interessados na democracia. Os povos latino-americanos não são democráticos.
Um dia, um dirigente sindical chileno me dizia: “O povo chileno é monarquista. Tem saudades de um rei. Quer um ‘benfeitor’, um chefe capaz de distribuir favores e de dar uma ajuda efetiva nos casos difíceis da vida: na doença, morte, acidente, cataclismo natural”. Os pobres procuram um protetor.
O desemprego, o subemprego e a miséria se alastram. Nesse contexto, o futuro político provável é a vitória da extrema-direita. Foi o que aconteceu nas últimas eleições de El Salvador. É o que vai acontecer na Nicarágua em 1996. Já dizia Einstein em 1930, na Alemanha: “Se quiserem evitar o nazismo, resolvam o problema do desemprego”.
Recentemente, uma pesquisa revelou que 70% da população da Venezuela desejava um presidente com as características de Fujimori — a reeleição do próprio Fujimori, no Peru, foi significativa. Os pobres querem um ditador populista quando cresce a miséria, a insegurança ou a violência. Por isso a fujimorização é o futuro mais provável para a América Latina, uma vez que se tornarem evidentes os fracassos das atuais políticas neoliberais.
A democracia sempre teve a sua base nos pequenos empresários, artesãos ou produtores independentes, e o seu motor nos intelectuais. Para poder cultivar utopias ou valores ideais, para poder valorizar a ética política, é preciso ter certa base mínima de segurança.
Por isso a democracia atravessa hoje profunda crise no mundo ocidental. Nos Estados Unidos, a famosa “direita americana” cresce vertiginosamente, ganhando as últimas eleições e tendo grande possibilidade de alcançar a presidência nas próximas eleições. Na Europa ocidental a extrema-direita convence os pobres, os antigos eleitores de esquerda — incluindo os ex-comunistas. As mudanças econômicas que provocam retrocesso no Estado-benfeitor geram insegurança, e a insegurança cria uma aspiração a um governo forte, ditatorial. Ao reaparecer a insegurança, o patriarcalismo ressuscita.
Na América Latina as políticas de “reajuste”, longe de resolverem a crise, somente podem precipitá-la. Daí a inquietação de numerosos agentes de pastoral: Devemos conformar-nos com a “realidade” e resignar-nos ao papel reservado à religião na sociedade em transição e turbulência — papel que cumprem com tanto êxito as Igrejas pentecostais e os movimentos carismáticos católicos? Pode ainda a Igreja assumir um papel de formação política?
2. Novos desafios à Igreja: importância da educação básica
Com certeza, algumas formas pastorais do passado já se tornaram obsoletas e não resistiram à prova da história. Certas formas de “conscientização” pertencem ao passado. É o que lembrava Marcello Azevedo aos religiosos do México: “Muita gente tinha a convicção de que era preciso dar aos outros consciência do processo de mudança, processo revolucionário etc.”[1]. Essa conscientização consistia em procurar infundir nas massas populares a consciência do processo que tinham os intelectuais naquele momento. Os agentes de pastoral católicos eram particularmente dispostos a isso, convictos de serem os depositários da verdade e de que a evangelização consistia em dar aos outros a verdade de que eles eram depositários. A consciência política vinha espontaneamente de cima para baixo, como a evangelização. Claro que os ouvintes resistiam, sobretudo pela inércia.
Por sinal, era muito difícil inculcar na mente das massas a consciência dum processo revolucionário que somente existia na consciência de algumas minorias de intelectuais. As massas pobres não enxergavam nada, não somente porque não sabiam enxergar, mas sobretudo porque não havia nada para ser visto. Mas isso pertence ao passado.
Hoje, a doutrina social católica não hesita mais: a participação política é um valor humano positivo, um direito do ser humano e uma responsabilidade que constitui parte da dignidade humana.
No entanto, o desejo de participação responsável na política não é algo espontâneo. É parte da vocação à liberdade. Se se trata de vocação à liberdade, alguém deve chamar, outro transmitir o chamamento, e a resposta nunca será garantida.
Como despertar o povo para a participação política? Como dar a entender que a participação política é valor e dever? Já dissemos que, pela sua condição social, as massas populares latino-americanas não estão inclinadas à democracia. Não é fácil inculcar desejos que não procedem da situação social das pessoas.
Recentemente, Fernando Cardenal, jesuíta que foi ministro da educação do governo sandinista na Nicarágua, publicou um artigo interessante em que condensava algumas conclusões da sua experiência política, no campo da educação pública.
Cardenal diz: “A reforma agrária sandinista deu a nossos camponeses milhões de hectares de terra, financiamento, maquinaria, capacitação. Mas, como projeto de desenvolvimento econômico, foi um fracasso, porque faltou o básico… Ante esse drama surge imediatamente uma pergunta: O que aconteceu com os milhões e milhões de dólares que chegaram ao nosso continente através das ONGs, grupos de Igrejas, organismos financeiros e agências governamentais? Todo esse capital caiu como água numa cesta. Esforços, sofrimentos, trabalho, suor, esperanças para promover o desenvolvimento econômico local. E, no final, a população ficou mais pobre. O que aconteceu?”
Faltou o básico. Para F. Cardenal, a ausência desse básico consiste na “falta de formação humana”.
“A pobreza de nossos camponeses não é somente carência de bens de consumo ou de produção. Graves limitações em atitudes, valores, concepções e hábitos levam-nos a ser ineficientes produtores e inadequados administradores. Faltou capacidade humana de diálogo e reconhecimento dos erros cometidos, solidariedade e domínio das paixões… Se não conseguirmos que, por meio de um processo educativo, os sujeitos de nosso desenvolvimento econômico aumentem os níveis de amadurecimento, responsabilidade, espírito de trabalho e disciplina, crítica e autocrítica, confiança em si próprios, se não conseguirmos que possam valorizar corretamente as suas condutas em relação à dimensão e ao papel da mulher, ao meio ambiente, à sexualidade, ao alcoolismo etc., o impacto do nosso processo, no desenvolvimento humano será incompleto e, na maioria dos casos, quase inútil”[2].
Faltou o básico: a educação humana de base. A mesma explicação vale para o desempenho das massas populares na política. Falta a formação básica. Não é por meio de ideias ou de discursos que se inculca uma mentalidade democrática. O desafio fundamental reside na assimilação do modo de ser, sentir e reagir necessários para fundar relações humanas realmente democráticas. Para poder ingressar na participação política é preciso ser capaz de perceber o valor do grupo, os interesses comuns a todos e a força da união. E preciso ser capaz de pensar no futuro, e não somente no interesse imediato. E preciso ser capaz de ordenar as ideias, de saber se expressar, propor ideias aos outros, manifestar opinião. É preciso ser capaz de escutar a opinião dos outros. Estar disposto a negociar com os outros, aprender a definir os fins e descobrir os meios.
Para ingressar efetivamente na política é preciso ter memória: saber lembrar-se das promessas e dos compromissos dos políticos, saber atrever-se a descobrir os erros dos dirigentes, saber criticar, vencendo o medo, saber pensar de modo diferente do chefe.
Para o ingresso consistente na política é preciso saber participar de reuniões e encontros e dispor de informação básica sobre os problemas da comunidade.
Além disso, não entrará na política quem não tem outro fim na vida a não ser a sua cervejinha ou a sua cachacinha. O trabalhador que recebe 50 reais por semana, dá 15 para a mulher e reserva 35 para a sua cachacinha com os amigos, nunca terá um papel positivo na política. Falta-lhe educação básica.
A história latino-americana contribuiu bem pouco para uma formação básica que habilitasse à política. A maioria sempre viveu na dependência dos grandes. Os agricultores e artesãos livres e independentes sempre foram poucos, assim como sempre foi insignificante a vida cooperativa. A indústria não nasceu pelo crescimento das pequenas empresas artesanais, mas pela chegada de grandes empresas estrangeiras ou pela iniciativa do Estado. Houve poucas exceções, insuficientes para despertar o gosto pela autonomia política e capacitar o confronto com os grandes proprietários ou seus agentes políticos.
A colonização foi obra das monarquias da Espanha e de Portugal. Não foi sequer uma transferência das fracas instituições participativas que havia na Espanha ou em Portugal. Os reis trataram as terras conquistadas como se fossem domínios pessoais e limitaram a vida comunitária municipal ou provincial. Na independência, os novos Estados não foram o resultado do desenvolvimento das instituições políticas locais: foram construções teóricas e abstratas destinadas a dar cobertura à autonomia dos grandes proprietários, não às comunidades populares.
Por sua vez, nem os índios nem os escravos podiam dispor de instituições adaptadas às exigências de uma sociedade moderna. As suas instituições ou foram destruídas, ou serviram para enquadrar uma sociedade marginal (as religiões afro-americanas) sem repercussão na sociedade global.
As grandes maiorias não receberam a educação de base necessária para participar efetivamente numa democracia. Não sabem definir em comum os objetivos comuns, não sabem como chegar a um acordo para definir regras comuns, normas comunitárias ou leis. Não sabem como eleger dirigentes realmente responsáveis, não sabem como fiscalizar o exercício do poder. Não sabem exercer o poder — basta ver a maneira como os caciques indígenas exploram as riquezas das reservas para o seu proveito pessoal, deixando os outros na pior das misérias. Não se reúnem para definir uma ação comum. Acham que o agir político realiza-se no comício e no ato de votar. Para as maiorias, a política é simplesmente manipulação do povo pelos que querem o poder. O mais esperto conquista o poder. Uma vez que o detém, pode fazer o que quiser: “ele é o chefe”. Tudo é justificado. Pode até mesmo matar os adversários. Fato recente comprova isso. Num dos Estados brasileiros, o governador atira para matar em seu adversário político, sendo eleito logo em seguida para senador. O povo, o pobre, reconhece em seus chefes o direito de matar impunemente.
3. Desafio: como realizar a educação de base?
Como realizar essa educação de base? Com certeza o sistema escolar nunca será capaz de realizá-la, mesmo supondo as melhores condições. A escola transmite teorias, mas não dá formação prática. Trata-se de uma educação humana básica pela prática, em que a teoria se aplica a uma prática efetiva.
A televisão, no seu estado atual, não somente não educa, mas se torna o maior obstáculo a uma verdadeira educação. Na atualidade, a TV transmite uma cultura do individualismo radical, uma cultura de consumo material. A TV é uma cultura da pura imagem, que paralisa qualquer tipo de reflexão ou de projeção no futuro real. Projeta num mundo imaginário. As informações que divulga são as que menos podem contribuir para despertar ou orientar uma vontade política ou um projeto político. A TV transformou a política num puro jogo de competição entre “campeões”.
A educação humana de base somente pode existir numa vida social articulada. Começa em grupos pequenos, grupos de vizinhança ou de interesses comuns. É preciso aprender como estar num grupo, como participar, como aceitar regras, como buscar valores comuns. Depois, como organizar um grupo, um programa de atividades, como repartir tarefas, como praticar a justiça entre todos os membros.
Uma das maiores dificuldades consiste em saber lidar com dinheiro. É muito difícil fazer a distinção entre dinheiro da comunidade e dinheiro pessoal. Os dirigentes tendem a considerar como seu o dinheiro comum, e os membros aceitam: o chefe tem o direito de roubar o dinheiro da coletividade. Ou, então, o chefe coloca os recursos e os bens comunitários a serviço dos amigos. Quem se acostuma a agir desse modo nos grupos aos quais pertence, não vê problemas se o mesmo acontece na política.
A prática dos grupos desperta em alguns o desejo, a ambição e a capacidade de poder. É uma coisa boa. Quando somente as elites sociais alimentam o desejo do poder, o povo aprende a submeter-se. Os poucos dentre o povo que conseguem ter acesso ao poder imitam o único modelo que têm diante dos olhos. É salutar que, na vida dos grupos, apareçam vocações para responsabilidades políticas.
Acima dos grupos locais, o exercício da política realiza-se em nível municipal. A vida municipal é a base da vida política nacional. Se a participação dos cidadãos é fraca no município, será mais fraca ainda em nível nacional. É mais difícil entender os problemas nacionais do que os municipais, e os meios de acesso ao poder municipal estão mais abertos.
Claro, as municipalidades de cidades imensas de um milhão de habitantes ou mais se tornam inacessíveis. As grandes cidades precisam ser descentralizadas, de tal modo que os problemas da convivência e do progresso comunitário possam ser tratados em nível de bairro. Existem projetos nesse sentido, mas é claro que a classe política não está muito interessada nisso.
4. Implicações na evangelização, a partir da educação de base
A história mostra que a evangelização pode desempenhar um papel importante na educação básica na área da política. Historicamente, em várias épocas e lugares o cristianismo suscitou uma vida comunitária intensa.
Nessa vida comunitária, os membros escolheram os seus dirigentes, definiram as suas regras comunitárias, participaram ativamente da preparação dos programas de atividades e avaliaram de modo crítico o desempenho dos dirigentes.
Na cristandade medieval houve grande expansão de ordens terceiras e irmandades leigas, em que se inspirou o espírito comunitário das corporações e as liberdades políticas do movimento das comunas, ou cidades livres. As comunidades religiosas foram a que gerou e alimentou a conquista de liberdades políticas. Fundou-se uma cultura da participação política em sociedades que buscavam uma igualdade de direitos e de seguranças.
O movimento comunitário encontrou abertura e capacidade de expansão no mundo da Reforma, especialmente na Reforma presbiteriana ou batista (de tipo popular). Será por acaso que a democracia, no sentido moderno e atual da palavra, nasceu e se desenvolveu nos países de Igrejas reformadas e fundamentalmente de Igrejas mais populares, não episcopais, como as Igrejas do tipo presbiteriano ou batista, na Holanda, Suíça, Inglaterra, Escócia e Estados Unidos? Fica claro que a base da democracia em nível municipal, regional ou nacional se achava no tipo de organização da Igreja. As Igrejas da Reforma desenvolveram e prolongaram as tendências nascidas na Idade Média. Ao invés disso, a Igreja católica, movida pelo espírito da Contra-Reforma e pela aliança com as monarquias cada vez mais despóticas (Espanha, Portugal, França, Habsburgos), reduziu cada vez mais a autonomia das associações de leigos, concentrou todo o seu esforço na consolidação do modelo paroquial em que o vigário exerce sozinho todos os poderes e todas as tarefas, aceitando apenas colaboradores totalmente dedicados à pessoa dele.
A Igreja católica cortou pela raiz tudo o que podia significar educação política dos leigos. Quando apareceram os primeiros Estados de tipo moderno baseados em instituições democráticas, o clero católico teve a preocupação de usar os leigos católicos para defender, por meio da democracia, o maior número possível de leis e de estruturas que conservassem a antiga sociedade de cristandade. Salvar a cristandade à medida do possível dentro da democracia, foi a instrução dada por Leão XIII e seguida por todos os partidos políticos ou ligas católicas. O clero não se preocupou com a educação básica do povo católico no sentido da participação política em si, pelo valor da política. Daí a pergunta: A indiferença do clero católico não explicaria, em parte pelo menos, a falta de participação política dos povos de maioria católica?
Recentemente as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) promoveram outro tipo de leigo católico: um leigo que não seja puramente instrumento da paróquia, mas participe da comunidade e seja capaz de tomar iniciativas, livre no seu compromisso e preparado para entrar na vida política ativa. De fato, muitos membros das comunidades eclesiais de base entraram de modo mais ativo na atuação política. Receberam nas CEBs uma verdadeira preparação, uma educação de base que os habilitou para entrar na vida política.
No entanto, permaneceram ainda certas falhas nessa educação de base das CEBs. Os leigos não receberam um verdadeiro reconhecimento dos seus direitos e das suas responsabilidades. Não receberam verdadeiros ministérios que lhes conferissem direitos. O clero ainda se reservou todos os direitos de decisão, impondo seu linguajar e sua ideologia. As CEBs não se emanciparam do clericalismo, que ainda é muito forte, como o reconheceu a Conferência de Santo Domingo.
Em todo o caso, a experiência das CEBs mostra que a religião pode ter influência determinante na participação política do meio popular.
A experiência mostra também que o mais importante não é o discurso político. Falar em política não constitui nenhuma preparação real para a política. O que mais vale é a aprendizagem de uma vida comunitária, na qual se faz uma primeira experiência de uma atuação pública.
Na comunidade é que se aprende a tolerância das diferenças, a capacidade de superar os conflitos e as tendências, a colaboração entre pessoas diferentes, a ação organizada, a disciplina comunitária, a fidelidade à palavra e aos compromissos. Todas essas disposições serão necessárias na ação política.
No seio da vida comunitária de base surgem ambições políticas. A ambição de ser chefe, de ter poder é legítima. O poder é necessário na vida política. O poder, todavia, não pode ser absoluto. Deve submeter-se à uma fiscalização por parte dos cidadãos. A vocação para ocupar uma função de direção na sociedade, é boa e necessária. Um dos maiores problemas na América Latina é justamente a timidez, a falta de confiança em si, a falta de aspiração por parte de tantos membros da cidadania. Poucos aspiram a uma responsabilidade de mando. Aceitam submeter-se a outros que não têm nem a mesma moralidade, nem os mesmos escrúpulos.
Também é no seio da vida comunitária de base que os membros ativos aprendem a fiscalizar os seus responsáveis, a examinar um orçamento, a criticar um balanço, a avaliar a realização de projetos.
O valor de uma democracia depende da densidade de associações democráticas no seio da sociedade. Se o comportamento democrático é fraco nas associações de base, podemos presumir que, na sociedade global, a democracia é mais formal do que real.
As Igrejas podem ter um papel importante na formação do sentido democrático nas associações de base. Ao invés de outras religiões — como o islamismo, o hinduísmo e o budismo —, o cristianismo inclui uma intensa vida comunitária. A comunidade muçulmana confunde-se com o povo, não é organizada, não se formaliza em instituições. A comunidade cristã distingue-se claramente da sociedade global e da sociedade política. Tem as suas instituições próprias, a sua disciplina, os seus atos comunitários e a sua organização.
O que prejudicou a Igreja católica na época recente foi a inadequação da paróquia. A paróquia surgiu para enquadrar comunidades de umas 500 pessoas. Nas cidades atuais, a imensa maioria dos batizados católicos fica abandonada a si própria, sem vida comunitária. Com essas condições, o cristianismo perde a sua autenticidade, e a Igreja deixa de ser uma preparação para a responsabilidade política.
A Igreja pode preparar um povo deixando-o apto para o exercício da cidadania. Para tanto, nem sempre é necessário fazer um discurso político explícito. A responsabilidade política aprende-se na prática da vida social muito mais do que pelos discursos.
Muitas vezes no passado a doutrinação política efetuada, mesmo em comunidades cristãs, limitava-se a uma transmissão de ideologia. E o povo acreditava na ideologia “porque o padre falou”. Se é a ideologia do padre, há de ser a verdade! Esse tipo de comportamento não prepara para uma verdadeira atuação política. Essa maneira de fazer política já está superada porque não é eficiente.
Uma vida comunitária intensa pode preparar pessoas para a política sem dar-se conta, sem querer — talvez, até mesmo, querendo explicitamente o contrário. O que importa é a capacitação das pessoas para assumir responsabilidades sociais. Não importa muito o setor em que se faz a iniciação.
Muitas vezes um discurso político explícito é contraproducente porque há, em amplos setores populares, uma rejeição radical à política. Em muitas situações, a reação imediata de quem tem espírito crítico é rejeitar o que dizem os políticos. Descobre-se que o seu discurso é mentiroso e que o que querem é o poder pelo poder — para si próprios ou para seus mandantes. Em etapas ulteriores há os que conseguem fazer distinções entre os políticos. Para quem não tem experiência de organizações populares, todavia, é difícil achar critérios de avaliação.
Por isso frequentemente o discurso político explícito da Igreja suscita rejeição e desconfiança. As pessoas afastam-se, desconfiadas. Trata-se de problema de discernimento: onde e com quem é útil falar explicitamente em política? Todavia, o papel fundamental do cristianismo na política é anterior a qualquer outro tipo de discurso. Consiste na educação humana de base destacada por Fernando Cardenal.
O que F. Cardenal mostra na Nicarágua é visível também no Brasil. Quantos projetos comunitários fracassados por falta de capacidade humana! Quanto dinheiro desperdiçado! Muitas vezes aconteceu que, no mesmo dia em que o dinheiro entrou na comunidade, começou a briga, o desentendimento, a divisão — e aí começou a dissolução da comunidade. Não é fácil saber administrar o dinheiro. Antes de tudo é necessário distinguir entre a caixa pessoal do tesoureiro e a caixa da associação. A distinção entre o público e o privado é a base da democracia ou de qualquer sociedade de direito.
Não basta formar pessoas bem-intencionadas. Seria fácil demais! Com alguns sermões carregados de emoção, pode-se infundir no público as mais belas intenções e os propósitos mais generosos. Quase todos sabem fazer discursos cheios de boas intenções. Não adianta, porém, multiplicar discursos moralistas. Todos defendem a moral pública. Todavia, a indignação moral não muda os comportamentos.
A questão é preparar pessoas que saibam relacionar-se com as outras, trabalhar de forma organizada, sabendo persuadir, negociar, fazer acordos, inventar soluções parciais, sabendo criar convicção comum entre grupos de cidadãos. O problema é a vivência comunitária.
5. Entraves para a vivência comunitária
A vivência comunitária é um desafio muito grande para o agente de pastoral e, de modo particular, para o clero. Na Igreja católica, a pastoral define-se de cima para baixo. Em cima, o Vaticano define as estruturas e os grandes objetivos. A conferência episcopal define objetivos nacionais e estabelece um programa de atividades. Em nível diocesano, a assembleia diocesana especifica mais ainda. Finalmente, o conselho paroquial completa o esquema e não sobra nenhum espaço para imaginação, criatividade ou iniciativa dos simples cristãos. Tudo já está definido. Todos os domingos ocupados. Todos os meses têm a sua programação. O leigo é supérfluo. Somente existe para aplicar o programa que se lhe oferece. De modo geral, ele entra sem entusiasmo na programação, ou simplesmente se abstém. Com certeza não aprende a mentalidade crítica, nem o espírito empreendedor, nem a ousadia nas iniciativas. Não aprende a desempenhar um papel crítico e ativo de cidadão. Ser cidadão é, para ele, obedecer e fazer o que os outros mandam.
O sistema católico é a cópia fiel do modelo de Estado moderno, despótico e autoritário. Na realidade, não e a cópia, mas o modelo, uma vez que os Estados modernos inspiraram-se no modelo da Cúria romana, que os antecedeu. Tudo de cima para baixo. Não é estranho que a democratização tenha sido tão tardia nos países católicos e seja ainda tão incompleta.
Quando o clero aceita a religiosidade popular, tem em vista quase sempre sua instrumentalização pondo-a a serviço dos seus próprios projetos. Ela não é apreciada em si mesma. Por sinal, o clero não a pratica, sinal de que não a estima, mas pretende apenas usá-la.
Nas linhas pastorais da Conferência de Santo Domingo, em 1992, os bispos deram às Igrejas as seguintes recomendações:
— “Criar as condições para que os leigos se formem segundo a Doutrina Social da Igreja, para uma atuação política dirigida ao saneamento e ao aperfeiçoamento da democracia, e ao serviço efetivo da comunidade.”
— “Orientar a família, a escola e as diversas instâncias eclesiais, para que eduquem nos valores que fundam uma autêntica democracia: responsabilidade, corresponsabilidade, participação, respeito da dignidade das pessoas, diálogo, bem comum” (SD 193).
Ora, essas “condições” e esse “orientar” não podem ser pura teoria. Trata-se de uma educação prática. Nem a família nem a escola são instrumentos adequados para formar a mentalidade democrática. Nunca tiveram essa atuação. A família é, há milhares de anos, anterior à democracia. A escola dirige-se a crianças que ainda não estão maduras para exercer uma atuação realmente democrática; assim sendo, a escola nunca é, nem pode ser, uma instituição democrática. A diocese e a paróquia não são instituições que permitem a aplicação de uma sociedade democrática: são, em virtude da sua origem, de sua evolução histórica e do direito canônico, instituições autoritárias. Não é nelas que se pode formar o espírito democrático. Sobram as outras “instâncias eclesiais”: comunidades de base, movimentos e a vida religiosa. Ali pode haver um espaço — embora isso não aconteça espontaneamente. Há movimentos e institutos religiosos muito autoritários em sua estrutura jurídica.
A Conferência de Santo Domingo apresenta o desafio de se criar uma vida comunitária eclesial na qual se possa efetivamente aprender os valores de uma sociedade democrática. Santo Domingo parece supor que o problema está resolvido e que tudo na Igreja é capaz de orientar os cristãos para uma vivência democrática. O desafio está justamente aí.
6. Os novos desafios da Igreja
A Igreja não teria mais espaço político além do que acabamos de mencionar?
Para a camada popular da sociedade, o desafio parece estar em como encontrar o espaço político para a vivência democrática. Em nível de sociedade global, somente a classe média pode agir. Quanto às elites dirigentes, não querem nada mais do que a continuidade da situação atual. Estas temem qualquer mudança. Ora, para os intelectuais e a classe média, o problema político é essencialmente um problema mundial. A liberdade do governo brasileiro é muito limitada. Uma vez decidido que o Brasil deve entrar no mercado mundial, o resto é consequência. Sobram poucas opções. O problema é o sistema mundial. Nesse nível, a Igreja, como instituição mundial, é um fator que, embora secundário, pode ter certa importância.
A Conferência de Santo Domingo perdeu uma oportunidade que não mais reaparecerá. Podia ter tomado posição profética diante do modelo imposto pelos grandes em nome do mercado mundial. O silêncio ou a palavra tão fraca da Conferência de Santo Domingo é um sinal: doravante o episcopado, seguindo os rumos do Vaticano, manterá um perfil baixo em matéria de política mundial. Falará genericamente. O episcopado latino-americano esperará até que o Papa fale para, depois, repetir o discurso dele.
Por conseguinte, a mensagem profética cristã ante o modelo de sociedade que se está implantando, há de ser assumida e proclamada por entidades leigas, locais, nacionais e internacionais. A hierarquia seguirá, mas não mostrará o caminho. Trata-se de uma inversão do processo que foi estabelecido em Medellín. Hoje somente entidades leigas suficientemente autônomas poderão levantar a voz e entrar no confronto de modelos de sociedade em que o mundo está mergulhado.
É interessante notar que, em matéria de espiritualidade, os movimentos leigos tomaram a dianteira. Mas o mesmo não aconteceu ainda na vida social e política.
Pode ser que os leigos achem que a única forma de atuação política eficiente sejam os partidos políticos. No entanto, dadas as limitações do Estado, a grande política hoje é mundial, e os partidos têm pouca possibilidade de ação em nível mundial. Estão absorvidos pelas próximas eleições, que lhes darão no máximo uma aparência de poder.
A Igreja precisa de um laicato organizado mundialmente para fazer frente ao sistema mundial, articular gestos de relevância mundial, organizar a colaboração de entidades internacionais ou locais. Existem alguns pontos de partida. No entanto, o laicato católico ainda não assumiu a sua nova tarefa no contexto atual da sociedade.
A sociedade religiosa norte-americana está projetando uma rede mundial fundamentalista. O laicato católico deverá impedir que essa “internacional” fundamentalista incorpore organizações católicas, e oferecer uma alternativa.
Durante 50 anos o Vaticano contou com a atuação da internacional democracia-cristã. Esta vem se tornando cada vez mais conservadora, ligada a seu passado. Atua mais em nível de União Europeia, abandonando o resto do mundo à sua sorte. Não propõe alternativas novas.
O que pode fazer o clero nesse assunto? Diretamente, nada. Mas pode incentivar a liberdade, deixando de considerar que um leigo cristão deva necessariamente trabalhar nos quadros da paróquia. Pode oferecer espaço de formação e de vivência religiosa para leigos que aceitem tarefas políticas. Pode despertar vocações, mostrando as necessidades atuais da evangelização.
Sem dúvida, em nível de macroeconomia, os cristãos têm uma responsabilidade, não somente individual, mas também coletiva. O que se requer deles é, em primeiro lugar, um compromisso com perspectivas a longo prazo. Ocorre que, atualmente, tanto os Estados nacionais quanto os partidos políticos nacionais estão condenados a lutar por sua própria sobrevivência no dia a dia. Não têm mais capacidade para elaborar, propor ou aplicar projetos globais a longo prazo. Esses projetos supõem conversão da mentalidade política universal.
Mais importante do que a política a curto prazo, condenada à ineficiência, é a projeção profética. Essa, no entanto, não pode ser conduzida pela hierarquia. Mais do que nunca a hierarquia segue, e a Doutrina Social da Igreja ratifica, o que já é consenso entre os católicos. Os leigos são chamados a imaginar, a projetar para o futuro, a lutar por ideias, iniciativas e objetivos novos.
Um novo modelo de sociedade, diferente do modelo neoliberal dominante, inclui mudanças radicais na concepção do trabalho e do lazer, da educação e da cultura, dos impostos e das responsabilidades sociais dos cidadãos. Não se fará um novo modelo de sociedade por leis ou decretos.
A construção de um novo modelo de vida política não é assunto para especialistas, pois a sociedade global não é objeto de estudo de nenhuma especialidade, de nenhuma ciência. É um problema de cidadãos, não de especialistas. Estes podem trazer dados, isto é, dar a conhecer o passado. Porém, quanto ao futuro, não sabem mais do que os cidadãos, atuando como cidadãos, e não como especialistas.
Atualmente a política mais importante é a que prepara as tarefas dos governos futuros, preparando o terreno, abrindo o espaço em que as entidades políticas, as instituições antigas ou novas poderão organizar o novo modelo de sociedade que satisfaça as expectativas dos cidadãos. Eis a tarefa reservada aos cristãos da classe média. Tarefa que somente eles podem assumir.
[1] Cf. Marcello Azevedo, em Christus (México), ano LX, nº 685-686, p. 63 (maio-junho de 1995).
[2] Cf. Fernando Cardenal. “La renovación necesaria: desarrollo humano”, em Christus, ano LX, nº 683-684, pp. 74s (março-abril de 1995).
Pe. José Comblin