Publicado em número 186 - (pp. 13-18)
Significado político-teológico da morte de Jesus
Por Pe. Benedito Ferraro
“Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado…”
Nas formas mais antigas do Símbolo Apostólico, encontramos a inserção da morte de Jesus na História. No Símbolo Apostólico se professa: “Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado”[1]. Também o Credo Niceno-constantinopolitano o afirma: “Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado”[2]. De acordo com o Dicionário Aurélio, o termo padecer significa: “Ser afligido, atormentado, martirizado por, sofrer, suportar, aguentar, sofrer dores físicas”. É importante notarmos, pois, que esta evocação do Credo de nossa fé mostra que a morte de Jesus na cruz é histórica, fruto de procedimentos históricos e, por isso mesmo, o fato mais bem atestado de todo o Novo Testamento. Mesmo sabendo que os textos evangélicos são produções das comunidades para relançar o Kerygma, eles mostram a morte de Jesus baseada numa acusação política (cf. Lc 23,2-5; Mt 26,63; Jo 19,12-16; At 10,34-43), fruto de tensões econômicas, sociais, políticas e religiosas (cf. Mc 2,1-36; 7,1-23; 11,1-12,44). Além do testemunho canônico, a morte de Jesus na cruz é atestada por vários textos apócrifos[3]. Também vários historiadores extrabíblicos, como Flávio Josefo, Tácito, Suetônio, Plínio, o Moço, testemunham esse fato. Queremos evocar dois textos que nos parecem significativos para a nossa reflexão. O primeiro é de Flávio Josefo: “Quando Pilatos, ao saber que ele havia sido acusado pelos homens mais influentes entre nós, condenou-o à crucificação, aqueles que o amavam em primeiro lugar não desistiram de sua afeição por ele… E a tribo dos cristãos, assim chamados por causa dele, não desapareceu até hoje”[4]. O segundo texto é de Tácito: “Cristo, o iniciador do nome, foi condenado à morte no reinado de Tibério, por sentença do procurador Pôncio Pilatos, e a perniciosa superstição foi reprimida naquele momento, para depois surgir mais uma vez, não apenas na Judeia, pátria da doença, mas na própria capital, onde todas as coisas horríveis ou vergonhosas do mundo se juntam e encontram eco”[5]. Desse modo, seguindo o testemunho dos textos evangélicos e neotestamentários canônicos, assumindo valor relativo presente nos textos extracanônicos, e levando em consideração a palavra dos historiadores antigos, percebemos com muita nitidez que a morte de Jesus na cruz é atestada e relacionada com as questões presentes em sua realidade histórica e social. Quando, pois, se tenta desvincular a morte de Jesus de seu contexto histórico-político-social-religioso, certamente corremos o risco de não compreendê-la e seu significado certamente será facilmente manipulado. Em seguida ressaltaremos alguns pontos que nos ajudarão na compreensão do significado político-teológico da morte de Jesus:
a) Jesus é condenado por Pôncio Pilatos como zelota. Isso revela a mão dos romanos e a dimensão política presente nessa condenação à morte de cruz, nesse processo de eliminação de um “líder popular”[6], pois, segundo o caráter judiciário da época não era permitido aos judeus a declaração de sentença de morte, direito reservado aos romanos que dominavam a Palestina.
b) A morte de Jesus é experimentada como um escândalo a ser superado pelas primeiras comunidades (cf. 1 Cor 1,17-31; At 1,6), pois sua mensagem do Reino era carregada da esperança messiânico-apocalíptica, que prenunciava a mudança do “éon”, do “presente século”, da “sociedade perversa” e o anúncio da “Nova Terra e Novos Céus”.
c) É a ressurreição que dá sentido à morte de Jesus (cf. Jo 20,30-31; Lc 24,13-35; At 2,36), recuperando o significado da prática de Jesus na Palestina do Primeiro Século e colocando-o definitivamente na história, superando o fracasso da cruz e entronizando-o no Reino da Glória como grande vencedor e grande Testemunha da vitória da vida sobre a morte.
1. A dimensão política da prática histórica de Jesus
Para compreendermos o significado político da morte de Jesus, temos de levar em conta alguns aspectos importantes da Palestina do I Século. A Palestina era uma terra dependente. Os romanos exerciam um domínio muito grande sobre a economia, sobre a política e também, mesmo respeitando alguns aspectos da religião judaica, sobre a religião dos judeus. O pagamento dos impostos, suspenso a partir da guerra dos Macabeus (cf. 1 Mc: 13,37.39-41), era muito grande, e, junto com outras taxas, chegava a ultrapassar a metade da produção dos agricultores a partir de 63a.C.[7]. Além dessa opressão político-econômica, a população tinha de enfrentar o peso da exclusão por causa do sistema de pureza, que inviabilizava a salvação para os pobres, os marginalizados, que não podiam cumprir todas as exigências da lei (cf. Jo 7,49). É nesse clima que Jesus entra no cenário da Palestina do seu tempo. Tempo carregado de expectativas apocalípticas e messiânicas. Tempo em que o povo esperava pela mudança de “mundo”.
1.1. O anúncio do Reino
O anúncio do Reino, feito por Jesus de Nazaré e seu grupo de seguidores, para ser bem compreendido, deve ser visto a partir da realidade de liberdade cerceada em que vivia a Palestina do I Século. Para enfrentar essa situação de dominação econômica, de opressão política e de exclusão sociorreligiosa, o anúncio da chegada do Reino (“Basileia”)[8] soava como uma grande reviravolta para os “Am-ha-ares”, “os simples da terra” (cf. Mc 1,4-20; Lc 4,16-30; 1,46-56; 16,19-31; Mt 25,31-46). O grupo de Jesus se inseria no quadro dos movimentos populares da época, movimento de resistência em defesa das tradições e cultura do povo e tinha como preocupações sociais a eliminação do tributo a Roma (cf. Mc 12,13-17; Lc 23,2-5), bem como a defesa do direito à terra e a proclamação do “ano da graça do Senhor”, o “anojubilar”, com o perdão das dívidas e a restituição das terras a seus antigos donos, como tradição vinda dos pais, dos antepassados (cf. Lc 4,16-19; Mc 1,4-20; cf. Lv 25,8-17; Dt 15,1-15). Tanto João Batista quanto Jesus de Nazaré engajaram-se num programa de revolução social e subversão política em nome do Deus judeu. Ambos são reconhecidos como profetas pelo povo (cf. Mt 11,9;14,5; 21,26; Mc 11,30-32; Lc 1,76; Jo 9,17; Mt 16,14; 21,11.46; Mc 6,15; Jo 4,19) e ambos anunciam a chegada do Reino de Deus e os dois são condenados à morte por causa de sua prática histórica. Jesus entra na história por causa do Reino, é perseguido por causa do Reino e é morto por se apresentar como o portador do Reino[9].
1.2. O Reino e a vida dos pobres e excluídos
O anúncio do Reino, feito por Jesus, proclama uma reviravolta na compreensão da salvação na Palestina do I Século. Os pobres e marginalizados, devido ao sistema de pureza, já estavam condenados por antecipação. Jesus se contrapõe ao sistema de pureza e anuncia a salvação aos pobres e mulheres marginalizadas, que vão entrar no Reino, no lugar das “autoridades”, que se julgam como os puros e dignos (cf. Mt 21,28-32)[10]. Nesse sentido, o anúncio da chegada do Reino significa uma mudança real na vida dos pobres e excluídos, pois começam a ter acesso à salvação e não são mais responsabilizados como pecadores por sua situação de vida.
Jesus não culpa as vítimas e, por isso mesmo, desnuda o preconceito contra os pobres presentes no sistema de pureza — que acabava sendo o grande legitimador do status quo. Não há dúvida alguma de que esse confronto de Jesus com a estrutura da sociedade da época o leva à morte. Como líder popular, retomando as raízes do direito à terra, se confrontava com a estrutura latifundiária dominada pelos romanos, que se arvoravam em donos da terra; como profeta esperado pelo povo sedento de libertação, acabou confrontando-se com a interpretação da Lei feita pelos doutores e escribas (cf. Mc 2,1-3,6); chocou-se com a compreensão das tradições (cf. Mc 7,1-23) e criticou o Templo, que terminou sendo o legitimador da apropriação do excedente produzido pelo povo através da cobrança de impostos (cf. Mc 11,15-18; 12,1-12).
2. Quem mata Jesus?
Essa pergunta nos leva a procurar as causas históricas da condenação de Jesus à morte de cruz. Elas estão enraizadas no contexto sócio-histórico da Palestina do I Século. Jesus é alguém que tenta enfrentar o processo de opressão e exclusão dominante na sua época, quer por parte dos romanos, quer por parte da classe dirigente dos judeus que se aproveitava da situação. Não podemos nos esquecer de que tanto Jesus como seus primeiros seguidores são judeus e procuram retomar as raízes do judaísmo, pois sua esperança estava baseada no Deus que libertou o povo do Egito (cf. Ex 3,7-10; 20,1-20). A condenação de Jesus à morte, e morte de cruz, é fruto das tramas históricas provenientes do confronto de práticas: a prática do Império, da qual também participavam dirigentes do povo judeu, e a prática messiânica de Jesus, que era seguida por seus discípulos e posteriormente por seus seguidores, movidos pela fé na ressurreição[11].
Sabemos que toda e qualquer pretensão messiânica tinha, na Palestina do I Século, uma significação essencialmente política. Era considerada crime de lesa-majestade e, portanto, passível imediatamente de morte. A repressão dos romanos é sempre violenta. Basta observarmos alguns fatos relatados por Flávio Josefo nas Antiguidades Judaicas: No governo de Herodes, entre 37 a 4 a.C., foram queimados vivos dois fariseus e quarenta de seus alunos (AJ. XVII 6,2- 4;9,1); com Arquelau (4 d.C.), houve um massacre de 3.000 pessoas (AJ. XVII 8,4; 9,1-3). Nesse mesmo período, Varo, o general romano, manda crucificar 2.000 rebeldes ao redor de Jerusalém (AJ. XVII 10,8-10)[12]. Os romanos não admitem absolutamente nenhuma tentativa de mudança. Tudo indica que o mesmo tenha acontecido a Jesus. A união de interesses entre romanos e dirigentes judeus acabou por definir sua condenação. Esta parece ser a conclusão de J. D. Crossan: “Caifás era o sumo sacerdote judeu de 18 a 36 d. C. Num século em que tais autoridades ficavam no cargo no máximo quatro anos, ele permaneceu dezoito… Devemos presumir que os romanos e Caifás trabalhavam em conjunto porque, enquanto Valério Grato, o predecessor de Pilatos como governador, começou dispensando Ananus I como sumo sacerdote e em seguida designou quatro outros entre 15 e 18 d.C., Caifás durou não apenas oito anos sob Grato, como mais dez sob Pilatos”[13].
Lc 23,2 deixa entrever claramente que a morte de Jesus tem uma dimensão política bem nítida: “Começaram a acusação, dizendo: ‘Achamos este homem fazendo subversão entre nosso povo, proibindo pagar tributo ao imperador, e afirmando ser ele mesmo o Messias, o Rei’”. Também em At 5,34-39, fica patente que a reação dos romanos contra toda e qualquer tentativa de modificação da ordem vigente era imediata e violenta: pena de morte! Tudo indica que com Jesus não tenha sido diferente: “A morte de Jesus por execução sob Pôncio Pilatos é mais certa do que qualquer outro fato histórico”[14].
3. Por que Jesus morre?
Essa questão nos coloca na direção de busca de sentido da morte de Jesus. O próprio Jesus nunca buscou a sua morte, mas a sentiu como consequência de sua prática histórica. Sendo discípulo de João Batista, que havia sido assassinado, não deixaria de compreender que, colocando-se no seu seguimento, certamente teria de enfrentar o mesmo fim. Isso parece estar muito presente nos textos evangélicos que procuram retratar a consciência de Jesus frente à perseguição: “Jerusalém, Jerusalém, você que mata os profetas e apedreja os que lhe foram enviados” (Lc 13,34). Certamente Jesus compreende sua morte à luz da tradição do martírio dos profetas. No entanto, são as comunidades que tentam estruturar o sentido da morte de Jesus, para poder ultrapassar o fosso causado pela morte. Aqui trabalha a fé pascal e aponta a vitória da vida sobre a morte, mesmo onde só apareceria fracasso.
3.1. A morte de Jesus vista como morte do Profeta
As primeiras comunidades cristãs compreendem a morte de Jesus na linha da tradição do martírio dos profetas. Compreendem-na diretamente articulada com a morte dos profetas (cf. Lc 11,49-51; 13,14; 1 Ts 2,14; At 7,51ss). Ao mesmo tempo, por estarem sendo perseguidas, as comunidades se compreendem no seguimento de Jesus.
3.2. A Morte de Jesus como morte do Messias Crucificado
Essa interpretação recorre ao Antigo Testamento, para mostrar que a morte de Jesus se insere na trama humana com toda a sua ambiguidade e que Deus nunca abandonou seu Filho. Claro que, diante das grandes expectativas messiânico-apocalípticas da época, a morte do Messias na cruz era um verdadeiro escândalo. Como compreender o Messias, que deveria vir com poder, acabar torturado, execrado, morto como vil impostor? A fé pascal busca a explicação a partir da presença de Deus na vida e na morte de Jesus: “Numa dimensão mais profunda, Deus não o abandonou. Estava com ele no sofrimento e na morte; não o abandonou, permaneceu com ele na morte, de tal forma que a ressurreição mostrou presença de Deus nele. A ressurreição revela o escondido: o que era escandaloso para os outros se iluminou pela ressurreição. As profecias da morte e da ressurreição querem deixar isso bem claro. Começou-se a ver tudo a partir de Deus: a atuação de Jesus, sua atividade missionária, sua morte e sua ressurreição. Deus estava agindo salvificamente em Jesus, no seu caminho, não exclusivamente na morte, mas em tudo o que lhe aconteceu, fez, falou e viveu. Em tudo, mesmo na morte”[15].
3.3. A Morte de Jesus como expiação e sacrifício
Há muitos textos do Novo Testamento que apontam para o sentido da morte de Jesus na linha da expiação pelos pecados e do sacrifício para a salvação do gênero humano. Essa interpretação acabou influenciando os relatos da Ceia (cf. Mc 14,22-25; Mt 26,26-29; Jo 6,51-58; 1Cor 11,23-26). Jesus é visto como o Justo, o Inocente, que com sua morte estabelece uma nova relação entre o ser humano e Deus. Sua morte é vista como redentora, expiatória, sacrifical. Alcança o perdão dos pecados e inaugura uma nova e definitiva aliança de Deus com seu povo.
3.4. A morte de Jesus como ato de solidariedade
Muitos textos do Novo Testamento apontam na direção da morte de Jesus como um ato de solidariedade e criador de solidariedade. Sua morte, livre e solidária, é apontada como dom de si (cf. Jo 3,16;12,49-50), como dom de amor (cf. Jo 10,11.15; 15,13), como dom gratuito (cf. 1Jo 3,16). Como acontecimento gerador de solidariedade, a morte de Jesus, a partir desta interpretação, exige o seguimento. Ela nos liberta da Lei e mostra que estamos livres para amar. Liberta-nos da falsa imagem de Deus e do terror paralisante e torna-nos corresponsáveis pela implantação da justiça no mundo. O Espírito do Ressuscitado nos é dado para podermos refazer, na história, o caminho de Jesus.
4. A Desvinculação da morte de Jesus do seu contexto histórico e a exigência de sacrifícios pelo Mercado
O salto que estamos dando parece ser muito grande. Entretanto, não temos, neste espaço, a possibilidade de olhar como a tradição teológica pensou a morte de Jesus no decorrer desses quase dois mil anos de história do cristianismo. No entanto, queremos mostrar que a separação da morte de Jesus de suas causas históricas podem desembocar em consequências drásticas para a fé cristã. É isso que queremos refletir neste momento, tentando compreender a quem é que interessa esse modo de procedimento, frente à exigência de sacrifícios que o atual desenvolvimento do Mercado está exigindo.
Há uma afirmação fundamental presente na nossa profissão de fé e que não podemos deixar de lado sem comprometer o mistério da encarnação: “E por nós homens-mulheres (‘antrópous’), e para nossa salvação, desceu dos céus e se encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem”[16]. Isso quer significar que Jesus entra na conflitividade humana e sua vida e morte só podem ser compreendidas dentro do contexto sócio-histórico de sua época. Como afirma a Gaudium et Spes 22: “Com efeito, por Sua encarnação, o Filho de Deus uniu-se de algum modo a todo homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana, amou com coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-Se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado”.
Toda tentativa de tirar Jesus das implicações econômicas, políticas e sociais de sua época é um atentado contra a encarnação. É uma nova forma de docetismo que nega o fato de Jesus ter assumido verdadeiramente a história humana. Segundo os Evangelhos, Deus não quer que o Filho morra para “satisfazê-lo”; quer que ele não se evada magicamente da condição humana, mas que seja coerente e que assuma a conflitividade de sua história até o fim, como consequência da opção pelos pobres, oprimidos, marginalizados e excluídos de seu tempo[17]. Desvincular a morte de Jesus das suas motivações humanas e causas históricas é favorecer uma má compreensão do sentido desta morte como simplesmente um “destino trágico” ou “determinismo” que isentam todos de qualquer responsabilidade frente ao crime cometido. Para as autoridades romanas, a morte de Jesus é compreendida como manutenção da ordem do Império, que era “sagrada e mantida pelos deuses” e que não poderia ser, de modo algum, atacada. Eis como Flávio Josefo mostra a impossibilidade de enfrentá-los, pois lutar contra os romanos seria lutar contra Deus: “A fortuna, de fato, tinha de todos os cantos vindo para eles (romanos), e Deus, que percorrera a rota das nações, trazendo a cada uma o bastão do império, agora descansava sobre a Itália… Vocês não estão guerreando contra os romanos apenas, mas também contra Deus… A Divindade escapou dos lugares sagrados e assumiu Sua posição ao lado daqueles contra quem vocês agora estão lutando”[18]. Para os dirigentes judeus, a morte de Jesus é vista como cumprimento da Lei: “Nós temos uma lei, e segundo esta lei ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus” (Jo 19,7). Na verdade é uma forma de “sacrifício” para “purificar” a cidade. E é também uma forma de manutenção do status quo favorável ao grupo dominante: “Vocês não sabem nada. Vocês não percebem que é melhor um só homem morrer pelo povo, do que a nação inteira perecer?” (Jo 11,49-50). Estamos diante da legitimação do sacrifício pela Lei e que encobre toda e qualquer responsabilidade (cf. Lc 4,22-30).
Atualmente, estamos diante de uma sociedade que tenta divinizar o Mercado. Os dominantes de hoje fazem muitas promessas, tentando conquistar a cabeça e o coração das pessoas. Há um processo de divinização e sacralização do Mercado. Por isso, os dominantes exigem a fé no Mercado, que por sua vez promete realizar a felicidade de todos. Proclamam que “fora do Mercado não há Salvação”! Tudo o que possa contrariar o livre desenvolvimento do Mercado é perigoso e deve ser imediatamente extirpado. Na verdade, é isso que estamos presenciando no Brasil e na América Latina com a implementação do sistema neoliberal: crianças de rua, índios, favelados, presidiários, trabalhadores sem-terra, são “estorvo” e devem ser “removidos”, pois estão atrapalhando o livre desenvolvimento do Mercado. Nesse sentido é possível compreender a lógica desse sistema: a morte dessas pessoas é o sacrifício exigido pela dinâmica do Mercado para resolver a crise econômica brasileira. A eliminação das crianças da Candelária, o massacre dos Ianomâmi, dos favelados de Vigário Geral, dos presidiários do Carandiru, dos sem-terra de Corumbiara, segue a lógica da lucratividade: essas pessoas só dão prejuízo e por isso não têm o direito de viver. Quem as mata está prestando um serviço à nação, pois está “limpando a cidade e colaborando com a sociedade”. As vítimas se tornam culpadas. Até as crianças entram na lógica da eliminação, pois “ou são trombadinhas ou se tornarão! E por isso é preciso eliminá-las imediatamente para preservar o futuro da sociedade!”.
Por que estamos fazendo a aproximação, da morte de Jesus com a morte dos excluídos de hoje? Exatamente para mostrar que desvincular a morte de Jesus de suas causas históricas pode nos levar à legitimação do sacrifício como algo inevitável. Do mesmo modo, se desvincularmos a morte das crianças de rua, dos presos, dos índios, dos favelados e dos sem-terra de suas motivações econômicas e políticas, estaremos também legitimando a lógica da eliminação. Ninguém se sente responsável por esses massacres e a própria sociedade nada faz para que os responsáveis sejam identificados. Há um acordo tácito, escondido, que é a aceitação do sacrifício de inocentes e vítimas de uma organização social injusta e insolidária.
5. Grito de esperança dos excluídos
No decorrer desses quinhentos anos de história da América Latina e Caribe, notamos um processo permanente de invisibilização dos pobres. Isso acontece com os índios e se traduz normalmente nas nossas conversas, nos escritos dos alunos das nossas escolas primárias, onde tudo o que se refere aos povos indígenas está sempre no passado. “Existiam… Viviam… Construíam…” Esconde-se a presença de milhões de índios na América Latina e, no Brasil, tenta-se a todo o custo eliminá-los ou deslegitimá-los em suas reivindicações. No tocante aos negros, o próprio senso do IBGE procura descaracterizar seu número, para não revelar o grau de negritude do Brasil. Do mesmo modo, os moradores de rua são invisibilizados. As mulheres também são invisibilizadas em seu trabalho diário: “Não trabalham!”. Atualmente, o capitalismo neoliberal procura invisibilizar os trabalhadores, através da progressiva desmaterialização da riqueza. Hoje a riqueza é imaterial. Dessa forma, o trabalho visibilizado está perdendo seu valor, quer no campo, quer na cidade. O que conta hoje é o “trabalho” das “máquinas inteligentes”!
No entanto, os pobres e excluídos continuam a gritar. No dia 7 de setembro de 1995, o Setor Social da CNBB promoveu o “Grito dos Excluídos”. Esse grito traz uma longa trajetória, pois desde Medellín (1968) já estava presente em seu tom profético: “Um clamor surdo brota de milhões de homens (mulheres), pedindo a seus pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte”[19]. Também Puebla (1979) continua denunciando o não atendimento desse grito: “O clamor pode ter parecido surdo naquela ocasião. Agora é claro, crescente, impetuoso e, nalguns casos, ameaçador”[20]. Esse grito dos excluídos continua a ressoar. Com mais força nos países pobres do mundo (América Latina e Caribe, África e Ásia), mas ele começa a ser presença também nos países ricos (Estados Unidos, Inglaterra, França, Canadá). Os excluídos da Nova Ordem Mundial, que na verdade é uma “Desordem”, já se fazem sentir em todos os países. Esse grito está apontando para novas saídas que possam resgatar a dignidade da pessoa humana e de todas as pessoas, porque à medida que haja uma só pessoa humana sendo vilipendiada, todas as pessoas estão sendo desrespeitadas nela. O grito é para que todas possam ser incluídas na dinâmica da vida. Para isso é que Jesus veio ao mundo: “Eu vim para que tenham vida e tenham em abundância” (Jo 10,10).
Para que possa haver essa inclusão de todos, será necessário refazer duas alianças básicas e fundamentais: a Aliança com a Terra e a Aliança com o Trabalho. O atual desenvolvimento do capital internacional é destrutivo e está depredando a natureza, o habitat de todos nós. Se não houver respeito profundo à Mãe Terra, como podemos aprender com os povos africanos e indígenas, certamente a humanidade vai arcar com horríveis consequências e os pobres e excluídos sofrerão ainda mais, pois, nesse processo de depredação, quem mais sofre são os marginalizados. Se houver falta de água, é o pobre da periferia o primeiro a não ter água! Se houver falta de alimento, é o excluído do trabalho a não ter acesso a ele! Se há catástrofes naturais, provenientes da diminuição da camada de ozônio, certamente serão os pobres que terão suas casas invadidas pela água, devido ao aumento de calor na terra!
Com o processo de entrada das novas tecnologias, o trabalho humano está perdendo sua centralidade. Mas, sem trabalho, a vida se torna inviável. Por isso, uma Nova Aliança com o Trabalho é de fundamental importância no presente de nossa história. O grito dos excluídos aponta na direção de que haja trabalho para todos. E, para isso, haverá necessidade de mudança no atual enfoque do trabalho. Sabemos que a produtividade aumenta com as novas tecnologias, que há grande produção de riquezas, que a lucratividade atinge níveis nunca antes imaginados. No entanto, o desemprego estrutural ronda todos os países pobres ou ricos. Certamente essa Nova Aliança com o Trabalho exigirá ocupação para todos, onde todos trabalharão menos horas, mas com chance de trabalho para todos. E com o tempo livre maior, o ser humano terá de ser reeducado para tornar a vida mais agradável, depois de assegurar que ela seja viável e possível para todos.
Esse é o grito que surge dos pobres e excluídos da terra. E esse grito se alicerça na certeza de que a vida vence a morte. Esse grito está enraizado na vida, na prática e na morte de Jesus, que foi coerente até o fim com seu projeto de libertação dos pobres e excluídos e que, pela sua ressurreição, foi confirmado pelo Deus da Vida (cf. At 2,36). Na luta dos pobres e excluídos do mundo inteiro temos o eco do testemunho de Jesus Cristo, o Vivente: A Vida é mais forte do que a Morte! “O Povo é maior do que o Mercado, porque Deus é maior”!
(Carta do XI Encontro de CEBs do Regional Sul I).
[1] Dz., 7; Catecismo da Igreja Católica, nº 184.
[2] Dz., 86; Catecismo da Igreja Católica, nº 184.
[3] Cf. RAMOS, L. Fragmentos dos Evangelhos Apócrifos. Coleção Bíblia Apócrifa, Vozes, Petrópolis, 1989, p. 106: “Levaram para lá dois malfeitores e crucificaram o Senhor no meio deles” (Evangelho de Pedro). No Evangelho de Nicodemos podemos ler: “Depois de proferir a sentença, o governador mandou que, como título, se escrevesse no alto da cruz, em grego, latim e hebraico, a acusação que lhe era feita, de acordo com o que lhe disseram os judeus: É rei dos judeus” (RAMOS, L. A paixão de Jesus nos escritos secretos. Coleção Bíblia Apócrifa, Vozes, Petrópolis, 1991, p. 51). Na Anáfora de Pilatos também se fala na crucificação: “É este o homem que Herodes, Arquelau, Filipe, Anás e Caifás, de acordo com todo o povo, me trouxeram, pedindo-me, em altos brados, que fosse condenado. Ordenei, então, que, depois de ter sido flagelado, fosse crucificado…” (RAMOS, L. O drama de Pilatos. Coleção Bíblia Apócrifa, Vozes, Petrópolis, 1991, p. 101).
[4] JOSEFO, F. Antiguidades Judaicas 18,63, citado por CROSSAN, J. D. Quem Matou Jesus? Rio de Janeiro, Imago, 1995, p. 18 (o grifo é nosso).
[5] TÁCITO. Anais 15,44, citado por CROSSAN, J. D., op. cit., p. 18.
[6] Cf. MESTERS, C. “Os profetas João e Jesus e os outros líderes populares daquela época”, em RIBLA, 1 (1988/1), pp. 72-80.
[7] Cf. MESTERS, C., op. cit., p. 74.
[8] Cf. CROSSAN, J. D., op. cit., p. 78.
[9] Cf. JEREMIAS, L. Teologia do Novo Testamento, 1ª Parte. A Pregação de Jesus, Paulus, SP, 1977, p. 181.
[10] Cf. SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, II/I, Paulinas, SP, 1985, pp. 133-141.
[11] Cf. ECHEGARAY, H. A Prática de Jesus, Vozes, Petrópolis, 1982, pp. 111-159. Cf. especialmente o quadro da p. 143.
[12] Cf. MESTERS, C., op.cit., pp. 75-76.
[13] CROSSAN, J. D., op. cit., p. 175.
[14] CROSSAN, J.D., op. cit., p. 17.
[15] BOFF, L. Paixão de Cristo — Paixão do Mundo, Vozes, Petrópolis, 1977, p. 37.
[16] Catecismo da Igreja Católica, nº 84; dez., p. 86.
[17] Cf. BRAVO, C. G. Jesús, Hombre en Conflicto, Sal Terrae, Santander, 1986, pp. 227-228.
[18] JOSEFO, F. A Guerra dos Judeus 5.367, 378, 412, citado por CROSSAN, J. D., op. cit., p. 27 (o grifo é nosso).
[19] MEDELLÍN, Pobreza da Igreja, nº 2.
[20] PUEBLA, nº 89.
Pe. Benedito Ferraro