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Publicado em número 172 - (pp. 28-31)

Contra a violência: solidariedade mundial

Por Por Pe. Darci Luiz Marin

(Entrevista com Enrique Dussel)

Enrique Dussel nasceu em 1934, na Argentina. No início da década de 40 pertenceu à Ação Católica. Foi presidente da Federação dos Estudantes da Universidade de Mendoza. Em 1957 foi para a Espanha, onde fez o doutorado em filosofia. Sua tese foi sobre a concepção de bem comum na obra de Jacques Maritain. Entre 1959 e 1961 residiu em Israel, onde trabalhou como carpinteiro e pescador. Após esse período, retorna à Europa, primeiro para estudar teologia na França e, depois, história na Alemanha. A partir de 1969 passa a dar aulas de ética filosófica na Universidade Nacional de Cuyo, na Argentina e, ao mesmo tempo, percorre diversos países da América Latina para fazer conferências. Entre 1971 e 1974 publicou mais de vinte livros e artigos. Em 1975, juntamente com a família, parte para o exílio no México, onde reside até hoje. É um dos fundadores e ativo membro participante da CEHILA. Autor de vasta obra bibliográfica e um dos principais nomes da filosofia da libertação, concedeu-nos a entrevista que, a seguir, transcrevemos.

 

VIDA PASTORAL (VP): Qual sua ótica a respeito da violência presente na América Latina hoje?

Enrique Dussel: Na década de 60, dada a Revolução Cubana de 1959 e os movimentos revolucionários na África e Ásia, do mesmo modo que em diversos lugares da América Latina (não esquecer que em 1979 um deles chegou ao poder na Nicarágua, com a FSLN), as mudanças revolucionárias tornaram-se possibilidade, dado o endurecimento militar dos Estados Unidos e a retaguarda que para esse tipo de movimentos dava a URSS. Na época esse foi um caminho possível para certas esquerdas. O “uso de meios apropriados” — armas contra armas — foi ponderado eticamente como legítimo (como aconteceu nos séculos XVII e XIX, quando os patriotas lutaram de armas em punho contra as metrópoles que estavam na América: Inglaterra, Portugal e Espanha; de Washington a Tiradentes, Bolívar ou San Martín). Hoje, dada a situação mundial desencadeada desde 1989, com o final da guerra fria, a hegemonia militar total dos Estados Unidos, a crise dos modelos revolucionários e a exigência do exercício impostergável do consenso democrático, o uso dos “meios” que puderam incluir as armas fica descartado. Isso não significa, como dizem alguns, que “o modelo democrático substitui o modelo revolucionário”. Essa é uma falácia das direitas. Não. A democracia sempre teve de ser o modelo consensual e ético político necessário; a revolução não se apresenta como projeto pró­ximo, porém não deve ser negada a priori, pois ainda que se distancie para uma remota possibilidade, deve continuar incentivando as mudanças e reformas. Um “reformista” é o que crê que só são possíveis as reformas, porque estamos no melhor dos sistemas possíveis; um “prudente” é o que crê que as reformas são possíveis, sempre em vista de uma possível mudança de maior profundidade em benefício das maiorias (também revolucionária, quando existem condições reais e não ilusórias).

 

VP: No século XVI Bartolomeu de Las Casas defendeu os índios contra a violência do conquistador-invasor. Em que sentido a defesa aos marginalizados, feita por Las Casas, poderia ser retomada hoje?

Enrique Dussel: Efetivamente, no século XVI Bartolomeu defendeu os pobres, os dominados, os atingidos-excluídos (afectados-excluídos) de seu tempo. Pelas mesmas razões devemos lutar em favor dos pobres, dos marginalizados, dos dominados e dos atingidos-excluídos de hoje. Bartolomeu chegou a tal respeito pelo Outro, que (ante o argumento de que a conquista era necessária para salvar as vítimas inocentes dos sacrifícios humanos, ao menos no México) chegou a sustentar: a) que fazer a guerra para salvar inocentes vítimas de sacrifícios, matando por meio da conquista muito mais inocentes, é querer evitar o mal menor com o mal maior; ademais, b) sendo que a Deus deve-se oferecer no culto o melhor que se tem, à luz natural (sem revelação, segundo Bartolomeu), o oferecer vítimas humanas não era contra a razão, era racional; melhor ainda: se não o fizessem teriam cometido falta moral[1]. A única maneira de evitar a morte de vítimas inocentes é por meio de razões e pelo exemplo de vida. Bartolomeu tem enorme atualidade, dada compreensão da exigência de racionalidade na pregação do evangelho, exposta em sua obra, em grande parte perdida: De unico vocationis modo. Assim como havia luta em favor dos dominados e atingidos-excluídos da sociedade hegemônica de então, assim também devemos fazê-lo hoje.

 

VP: Ultimamente você vem propondo um caminho alternativo à modernidade e à pós-modernidade: a transmodernidade. Que caminho é esse e em que ajuda os marginalizados a recuperar sua dignidade de seres humanos?

Enrique Dussel: Essa é exatamente a questão. A modernidade eurocêntrica só pensou em explorar a periferia em seu benefício, desde 1492 até hoje[2]. A nota essencial da modernidade está na “centralidadade” do “sistema-mundo”, que se inaugura em 1492 (ainda que Portugal houvesse antes começado a conhecer a África e depois a Ásia, já se tinham notícias da existência desses continentes; só com a inclusão da América, a “história mundial” propriamente nasce). Habermas e outros, falam de “realizar a modernidade” (terminá-la, completá-la). Outros (os pós-modernos) mostram a irracionalidade da razão moderna, com argumentos inspirados em Nietzsche e Heidegger, entre outros. Como latino-americanos, não podemos sustentar nenhuma dessas duas posições, tampouco podemos cair em mera pré-modernidade, antimodernidade etc. Assumindo o melhor da modernidade, é necessário superar seu eurocentrismo e delinear um projeto mundial” (não “universal”), superando o mito da modernidade, que eu defino assim:

A Europa, crendo-se culturalmente superior (pelos conteúdos de sua cultura) e situando as outras culturas como inferiores, outorga-lhes o “dom” da modernização; ao oporem-se (em realidade, ao defender sua identidade) os assim chamados bárbaros ao indicado processo civilizador, a Europa tem fundamento para fazer-lhes a guerra. A Europa é inocente em tal guerra (já que o propósito é civilizador, cristianizador); os bárbaros são culpáveis (já que oferecem resistência ao bem).

O projeto de transmodernidade é um projeto “mundial”, em que todas as culturas (não só a dos Estados Unidos-Europa Ocidental) poderão contribuir com sua criatividade; em que todos os grupos dominados poderão libertar-se; em que todos os atingidos excluídos terão possibilidade de participar em uma nova sociedade. Essa é a utopia histórica, havendo de se ir descobrindo os meios institucionais concretos para essa alternativa. Porém, como latino-americanos, não podemos ser simplesmente modernos (porque somos desde a origem da modernidade “sua-outra-cara”) nem pós-modernos (porque ao ser niilistas ou irracionalistas, perdemos também a razão e nem sequer poderíamos dizer: Somos pobres, porém temos a razão!).

 

VP: A partir dos anos 70 houve grande contribuição sua para que a filosofia e a teologia na América Latina passassem a se preocupar como ROSTO DO OUTRO (método analético). Isso foi percebido em Puebla (nºs 31ss) e Santo Domingo (nº 178). Para os anos 90, como fazer para atualizar essa intuição?

Enrique Dussel: Hoje, em 1993, estou trabalhando mais que na década de 70 no tema do Outro, do dominado, do pobre. Graças a meu aprofundamento do pensamento de Marx, de Apel e Habermas, Taylor etc., tenho mais clareza que há 20 anos. O Outro é o dominado nos sistemas, é o atingido-excluído dos sistemas: é o pobre (como categoria analítica, científico-econômica e estritamente filosófica, além da teológica como é evidente). E mais, comecei, quem sabe, minha obra definitiva, talvez a mais importante de minha vida: Ética da Libertação. Sem adjetivos, sem “para…” simplesmente “Ética da Libertação” ao final do segundo milênio, diante do pensamento europeu-norte-americano da década de 90 (não de 60), e tendo pretensão de “mundialidade”: incluindo não só a América Latina, mas também África e Ásia, América do Norte, Europa Ocidental ou Oriental. Uma ética “mundial” da libertação diante de pragmáticos e comunitários, formalistas e críticos, a partir dos pobres, marginalizados e excluídos; a partir das nações pobres, das classes e setores explorados e excluídos, a partir da mulher, da criança, da juventude e da cultura popular, a partir das raças discriminadas… a partir das gerações futuras (o sujeito primordial da questão ecológica). Quer dizer, o Outro (como momento e método de uma razão ético-analética) é o tema principal para mim nos anos 90.

 

VP: Nos anos 80 você defendia uma ética comunitária baseada no “Princípio Jerusalém”, oposta à moral do sistema vigente, baseada no “Princípio Babilônia”. Esses conceitos são importantes para a pastoral na América Latina (especialmente numa época de corrupção e de “ensimesmamento insolidário”). Na sua ótica, qual o verdadeiro sentido da ética na política de uma nação?

Enrique Dussel: Como indicava anteriormente, estou trabalhando uma Ética da Libertação. Desde que iniciei meus estudos universitários aos 18 anos, por ter tido um grande professor, especializei-me em ética (minha dedicação pela história é posterior). Sempre pensei que a ética era a filosofia primeira. Assim o expus nos cinco tomos sob o título: Para uma ética da libertação latino-americana. Para mim, a política sempre foi uma parte da ética; a autonomia moderna entre política e ética é parte da imoralidade da modernidade, do capitalismo. Com efeito, o princípio utópico da Comunidade Perfeita (Princípio Jerusalém) é a ideia regulativa que nos permite criticar o sistema corrupto no qual vivemos (no Novo Testamento, Apocalipse, era Babilônia). É por isso que toda a ética política necessita dos modelos críticos utópicos (de impossibilidade, denomina-os Hinkelammert em Cri­tica da razão utópica, Ed. Paulinas) para poder criticar o presente e abrir alternativas futuras. Isso ocupará um capítulo da mencionada Ética da Libertação.

 

VP: Edições Paulinas publicou, aqui no Brasil, uma obra sua (composta de quatro volumes) chamada Caminhos de libertação latino-americana. Quais as intuições presentes naquela obra que continuam válidas hoje?

Enrique Dussel: Esses quatro tomos (e na realidade restaram ainda dois por editar) são uma coleção de artigos teológicos escritos ao longo de 20 anos. Creio que todas essas intuições mostraram sua atualidade. Coube à minha geração (a de 68, para nomeá-la de alguma maneira, antecedida um pouco por Juan L. Segundo e José Comblin, porém participando da de G. Gutiérrez, H. Assmann e alguns outros da primeira geração) haver-se pela primeira vez com a realidade da América Latina descoberta como dominada, explorada, periférica, desconhecida a si mesma etc. Coube-nos a responsabilidade, a luta, a dor e a alegria de servir a América Latina de maneira hoje quase impossível de imaginar. Nesses quatro tomos encontram-se os “passos do caminhar em um labirinto que ao final teve saída”: foi o descobrimento lento do sujeito histórico de nossa história (o pobre)[3].

 

VP: Como você vê a atuação da Igreja católica na América Latina nestes últimos anos?

Enrique Dussel: Com sinceridade de um leigo comprometido (desde meus 8 anos de idade, em 1942, entre os “meninos” da Ação Católica Argentina), como historiador da Igreja e como militante chagando aos 60 anos, devo confessar que vivi (como Neruda intitulou um de seus livros póstumos) uma etapa importante da história da Igreja de nosso continente. Até 61 ocorreu compromisso da Ação Católica; desde o começo do Concílio (1962) houve a grande renovação, acelerada e concretizada na América Latina a partir de Medellín (1968). De 68 a 72 vivi a experiência como ator e espectador-historiador de maneira privilegiada (em organismos continentais, viajando, comprometendo-me com as bases, sofrendo atentado a bomba e, pouco depois, o exílio).

Desde 1972 começou a “perseguição” interna no âmbito latino-americano. A partir de Puebla (1979) essa perseguição começou a chegar de Roma, que começava a “restauração” (que continua até o presente). Porém, simultaneamente, a Igreja da base havia acumulado suficiente potencial de vida e experiência podendo continuar o caminho empreendido (ainda que com o freio puxado). Hoje a situação é crítica. A Igreja latino-americana poderia voltar a ter, frente ao Povo dos pobres do continente, a imagem da Igreja anterior a 1962, ainda que isso não seja tão fácil por tudo o que aconteceu: pelos mártires, os santos (Romero, Rutilio Grande…), as CEBs, a teologia da libertação…

 

VP: As instituições (incluindo a Igreja católica) buscam hoje maior estabilidade e segurança, tendo alergia às experiências novas. O que fazer para continuar insistindo na importância da ALTERIDADE, da percepção do ROSTO DO OUTRO que vai ficando à margem do processo, por parte das instituições?

Enrique Dussel: Creio que as minorias privilegiadas (entre as quais podem ser encontradas muitas em Roma, na Igreja, nos episcopados, nas congregações religiosas, nos grupos de leigos acomodados etc.) desejam estabilidade, garantias de segurança do alcançado (para poder usufruí-lo em paz). Porém, a imensa maioria da humanidade (80% da humanidade consome apenas 17,4% dos bens que se produzem)[4] não está nessa situação. A imensa maioria da humanidade, a maior parte das nações, a maioria da população dessas nações (exceto em parte os Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão, com aproximadamente 20% de pobres internos), as mulheres oprimidas, as crianças violentamente tratadas, as raças discriminadas etc., não têm nenhuma segurança a ser preservada. É para eles que a “Alteridade” é afirmada como projeto; é para eles, os não sujeitos da história, que o Princípio Esperança é um horizonte de Vida. Mais do que nunca devemos mostrar que é uma perigosa ilusão pensar que devemos dormir a sesta provinciana da estabilidade, segurança, paz… sobre um vulcão que já está prestes a explodir…

 

VP. Que mensagem teria aos agentes de pastoral, para quebrar a lógica da violência implantada em nossa sociedade?

Enrique Dussel: Diante da injustiça planetária, a institucionalização da violência legítima dos Estados Unidos (e dos Estados Unidos sobre todo o mundo, sem nenhum direito estabelecido, a não ser somente em razão da força), as massas ficam indefesas (também em frente às instituições organizadas para sua defesa, como é o caso da polícia, que é mais imoral que muitos ladrões em muitos casos), por isso começam a “fazer justiça com suas próprias mãos”. Se a isso agregamos a corrupção mesmo em meio à pobreza (como exigência de reproduzir peremptoriamente a vida, ainda que seja através do roubo), a droga que se generaliza, a falta de educação ética da população (na escola), o impacto da própria violência pelos meios de comunicação capitalistas… o membro da sociedade, então, deve proteger-se a si mesmo. Creio que será preciso organizar-se também na base, criar mecanismos democráticos de consulta, de autodefesa, não caindo no individualismo, mas pensando sempre que é ocasião de educação comunitária de mútua solidariedade. À violência há que opor nacionalidade, diálogo, democracia, organização, solidariedade, pretensão de justiça sempre e antes de tudo. São tempos de ética individual e comunitária, de luta pela paz com a justiça como arma e organização como força.

Parece-nos que, como no império romano da época de Jesus — império violento e já em decadência, onde o caos começava a marcar presença numa mudança básica da época —, hoje na América Latina vivemos mais próximos que na década de 60 das circunstâncias reais do evangelho: “Bem-aventurados os pobres…; “Tive fome e me destes de comer…”; “Os fiéis viviam todos em comunidade (koinonia)…”. Final de um estilo de civilização, começo de outro, em que seus Atos criadores serão os dominados, os atingidos-excluídos, os pobres de Jesus e muitos outros pobres. Ao menos… vejo assim, assim creio, assim espero!

 



[1] Este é, quem sabe, o mais apaixonante capítulo da recente obra de Gustavo Gutiérrez, Em busca dos pobres de Jesus Cristo. O Pensamento de Bartolomeu de Las Casas, Cep, Lima, 1992, pp. 235-247 (Este texto sairá em breve também em português pela Paulus).

[2] Será publicada proximamente em português minha obra 1492: El encubrimiento del Otro. Hacia el origen del Mito de la Modernidad.

[3] Esse tema já pode ser detectado em minha obra escrita em 1961, depois de meu regresso de Israel, onde, trabalhei com Paul Gauthier, no El humanismo semita (EUBEBA, Buenos Aires, 1969), presente nos primeiros artigos da coleção publicada pelos paulinos.

[4] Human Development Report 1992, Oxford University Press, Nova Iorque, 1992, do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas.

Por Pe. Darci Luiz Marin