Publicado em número 170 - (pp. 2-6)
Santo Domingo: Um pouco de história e coração na caminhada
Por D. Angélico Sândalo Bernardino
1. Passos marcantes na jornada
A IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe foi convocada pelo papa João Paulo II para animar a Igreja toda no vibrante, novo, testemunho de Jesus Cristo ontem, hoje e sempre!
Já no dia 12 de dezembro de 1990, o Santo Padre determinava o tema definitivo da IV Conferência: “Nova Evangelização, promoção humana, cultura cristã”; com o tema evangelizador: “Jesus Cristo ontem, hoje e sempre” (Hb 13,8).
“Esta Conferência Geral, disse o papa em seu discurso inaugural, reúne-se para preparar as linhas mestras de uma ação evangelizadora que ponha Cristo no coração e nos lábios de todos os latino-americanos. Esta é a nossa tarefa: fazer com que a verdade sobre Cristo e a verdade fundamental sobre o homem penetrem ainda mais profundamente em todos os segmentos da sociedade e a transformem”.
Realizada em Santo Domingo, de 12 a 28 de outubro de 1992, no vigor do Espírito Santo e materna presença da Senhora de Guadalupe, a IV Conferência nos apresenta numerosos passos em sua preparação. Assim, a partir de 1983, na 19ª Assembleia do CELAM, efetuada no Haiti, surgiu a necessidade da IV Conferência com “o fim de avaliar os 10 primeiros anos de Puebla e os 20 primeiros anos de Medellín, com os olhos voltados aos desafios novos que a realidade latino-americana estava colocando à evangelização”. Em maio de 1987, o presidente do CELAM consultou verbalmente o papa sobre a ideia da realização da IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribe, tendo recebido do Santo Padre a aprovação e suas primeiras sugestões. Iniciam-se, então, as etapas de preparação. Essas etapas que contaram com todo o esforço do CELAM, por fatores os mais diversos e adversos, sofreram forte descontinuidade. Cada documento, fruto de consultas, elaborações, praticamente desconhecia ou anulava o anterior. A história dos textos preparatórios à IV Conferência é longa, podendo desta forma ser resumida: Em 1988 aparece a publicação Instrumento de compilação e contribuições; em 1989, A primeira aproximação à realidade do continente latino-americano. Esses dois trabalhos não foram colocados à disposição do grande público.
Em 1990, o CELAM publicou o texto Elementos para uma reflexão pastoral em preparação à IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, como tema: “Uma nova evangelização em uma nova cultura”. Este trabalho sofreu severas críticas da parte de episcopados, teólogos e pastoralistas. Em 1991, o CELAM fez nova publicação, adaptando conteúdos anteriores ao tema definido pelo papa em dezembro de 1990. Trata-se do Documento de consulta com o título Nova evangelização, promoção humana, cultura cristã e que foi entregue às Conferências Episcopais, em Buenos Aires, em abril de 1991, durante a XXIII Assembleia Ordinária do CELAM. Este documento sofreu também muitas e severas críticas. Fato importante, naquele momento (abril de 91), foi a eleição da nova presidência do CELAM, com D. Raimundo Damasceno Assis, como secretário geral. Este, notando que as colaborações vindas de bispos, conferências episcopais e teólogos não estavam sendo devidamente acolhidas, reuniu equipe de teólogos que elaborou dois importantes textos: Prima e Secunda Relatio, enviados apenas aos secretários gerais das conferências episcopais. Da Secunda Relatio (recolhia o que as conferências episcopais tinham proposto, revelando excelente grau de reflexão e de engajamento das diferentes Igrejas particulares) foi elaborado o “Documento de trabalho” que, aprovado por Roma, se tornou o texto oficial de preparação para a IV Conferência. Infelizmente, este “Documento de trabalho”: Nova evangelização, promoção humana e cultura cristã, demorou muito para chegar aos bispos que iriam participar de Santo Domingo. Em alguns países, somente chegou poucos dias antes de 12 de outubro. Ainda assim, foi logo abandonado porque a coordenação dos trabalhos da IV Conferência colocou aos participantes dos trinta grupos temáticos que se formaram, quatro “ponências” (palestras) como ponto de referência a suas atividades.
A CNBB se deteve, de maneira particular, na preparação de Santo Domingo na 30ª Assembleia Geral em 1992. O conselho permanente reuniu-se em agosto de 92, em Brasília, com os bispos delegados e demais participantes de Santo Domingo para aprofundamento das contribuições à IV Conferência. A posição dos bispos do Brasil está publicada no nº 48 da série azul da CNBB, sob o título: Das diretrizes a Santo Domingo.
Deixando de lado o “Documento de trabalho”, os bispos receberam a bênção do discurso inaugural do papa, as quatro “ponências” e se distribuíram em trinta grupos, segundo os diversos temas. Atiraram-se, nos 17 dias da Conferência, à elaboração do texto que — sobretudo pelo fator tempo e dinâmicas adotadas —, possui certas lacunas. Marcante é, por exemplo, a falta da elaboração histórica dos pontos positivos e negativos dos 500 anos de evangelização. O texto apresentado não recebeu a necessária aprovação do plenário, tendo ficado a parte histórica unicamente com cinco números no texto oficial final: “Nos 500 anos da primeira evangelização” (SD 16 a 21).
Evidentemente, a IV Conferência não pode ser avaliada somente pelo texto oficial Santo Domingo — Conclusões. Ela é MUITO MAIS do que isso!
Com o passar do tempo, o texto fica; mas é fundamental consignar que toda a preparação e realização da IV Conferência envolveram inúmeras pessoas e atividades que o texto não abarca. Antes de me referir a certos aspectos do texto oficial de Santo Domingo, quero destacar pontos que me parecem importantes:
— Envolvimento de inúmeros leigos(as) de Santo Domingo em vários serviços (acolhimento, transporte, limpeza, informações…), realizados em clima de muita disponibilidade e alegria.
— O encontro de bispos dos países da América Latina e Caribe para troca de experiências, reuniões informais, estudos e oração em comum.
— A necessidade de aprimoramento na organização de futuras e semelhantes assembleias, quanto ao local, entrosamento do CELAM, CAL; elaboração do regulamento, regimento interno da Conferência, envolvendo fundamentalmente as conferências episcopais…
— O texto de Santo Domingo nos apresenta a reafirmação das opções fundamentais de Medellín e Puebla, com ênfase especial aos pobres, jovens, à vida e à família.
Os bispos acolheram também novos problemas teológicos e pastorais de candente atualidade, sobretudo no capítulo 2º que trata da promoção humana.
2. Três elementos
João Paulo II afirmou em seu discurso inaugural: “Nas suas deliberações e conclusões, esta Conferência deverá saber congregar os três elementos doutrinais e pastorais, que constituem como as três coordenadas da nova evangelização: Cristologia, EcIesiologia e Antropologia” (nº 5). É a trilogia já trabalhada em Puebla: verdade sobre Jesus Cristo, a Igreja e o Homem. Santo Domingo coloca, sem ter feito aprofundamentos maiores, Jesus Cristo, o Evangelho do Pai, como “evangelizador vivo em sua Igreja” e como “vida e esperança da América Latina e Caribe”.
3. No centro, Jesus!
A Conferência de Santo Domingo possui centro inequívoco: coloca-nos diante de eixo claro e de opção fundamental: Jesus Cristo! Jesus Cristo, o Evangelho do Pai, é o farol sob o qual as conclusões da Conferência foram tiradas. Essa convicção vem expressa, entre tantos outros lugares, na “Oração” que finaliza o Documento: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, bom Pastor e irmão nosso, nossa única opção é por ti” (SD 303).
As solenes celebrações litúrgicas vividas naqueles memoráveis dias indicam também a centralidade de Cristo. Afirma-se (2ª parte do Documento) ser “Jesus Cristo, evangelizador vivo em sua Igreja”, aquele que nos conduz à “nova evangelização”, à “promoção humana” e à realização da “cultura cristã”. Na 3ª parte, se proclama “Jesus Cristo, vida e esperança da América Latina e do Caribe”, ao serem indicadas as “linhas pastorais prioritárias”. Aliás, tal centralidade em Cristo foi claramente proclamada pelo papa em seu discurso inaugural: “Esta Conferência reúne-se para celebrar Jesus Cristo, para dar graças a Deus por sua presença nestas terras americanas, de onde, faz 500 anos, começou a difundir-se a mensagem da Salvação…” (nº 2). Logo a seguir, reitera o papa: “Esta Conferência reúne-se para preparar as linhas mestras de uma ação evangelizadora que ponha Cristo no coração e nos lábios de todos os latino-americanos”. A centralidade de Cristo em nossa vida pessoal, em nossa pastoral, é a primeira preocupação, é a urgência mais fundamental de Santo Domingo. Sem Cristo no centro, sem a santidade a que “todos somos convocados” (SD 31-53), não será possível a nova evangelização, promoção humana e inculturação do evangelho. Como os discípulos de Emaús, desconcertados e tristes, peregrinamos pelas estradas da América Latina, tendo o Mestre a caminhar conosco. “Jesus procura as pessoas e caminha com elas, para assumir as alegrias e as esperanças, as dificuldades e as tristezas da vida”.
4. Nossa amada Igreja
A Conferência de Santo Domingo (preparação, durante e após a realização), constituiu-se em privilegiado momento eclesial. No meio de fraquezas, contradições, alegrias, esperanças, estivemos reunidos, no vigor do Espírito. Lá se concentraram o papa, numerosos representantes da cúria romana, cardeais, bispos, presbíteros, religiosos(as), leigas(os). É claro que as representações, atribuições, poderiam ter sido diferentes. Sendo Conferência de bispos, ela contou também com a participação de inúmeras pessoas sem as quais Santo Domingo não seria realizável. Refiro-me, de modo particular, às pessoas que ficaram permanentemente em adoração eucarística ao lado do plenário; às voluntárias e voluntários leigos que prestaram os mais diversos serviços… Essas pessoas também decidiram os destinos da Conferência de modo diverso, não menos importante, porém. No Documento, a comunhão e participação eclesiais são tidas como fundamentais. TODOS somos convocados à nova evangelização, promoção humana, à inculturação do evangelho. Jesus Cristo nos santifica e, na força do Espírito, nos faz Igreja fecunda em comunidades (atenção especial às CEBs) e movimentos; na diversidade de ministérios. Igreja de fato missionária, não reduzindo suas atividades a templos e sacristias; comunidades eclesiais comprometidas com a realidade sofrida do povo, voltadas à evangélica e renovada opção pelos pobres.
5. Leigos na frente!
Na evangelização, Santo Domingo dá protagonismo aos leigos e, entre eles, aos jovens. A convocação dos leigos não é de hoje! Na prática não é devidamente levada a sério. Não possuímos — ao lado dos seminários — verdadeiras escolas de formação de leigos para sua atuação no coração do mundo, como militantes cristãos e, dentro da comunidade eclesial, como ministros(as), nos mais diversificados serviços. O monopólio dos ministros ordenados naquilo que não é de sua competência ou poderia estar nas mãos dos leigos, é realidade que somente com muita dificuldade está sendo vencido.
6. Fogo novo!
A parte eclesiológica de Santo Domingo não nos apresenta grandes “novidades”. Ela nos oferece urgência de mudança de espírito e métodos! Convoca-nos à SANTIDADE; a um espírito, realmente, novo. As sugestões concretas que emergem de cada tema tratado clamam por urgente concretização. São fogo novo querendo nos despertar do sono, torpor, desânimo, de uma pastoral muitas vezes fria, burocrática, mantenedora, em nada missionária. Sem que isso aconteça, Santo Domingo será letra morta, em seu contexto final.
7. Trata-se de convocação
Santo Domingo é convocação de todos à nova evangelização com novo ardor, novos métodos e manifestações. É momento de verdadeiro mutirão evangelizador, em que devemos deixar de lado “pequenas e grandes diferenças”, “brigas em família” (conservadores e progressistas; comunidades e movimentos) para nos atirarmos, com vigor, à missão evangelizadora: “João tomou a palavra e lhe disse: Mestre, vimos um homem que expulsava demônios em teu nome e nós lho proibimos, porque não é dos nossos. Mas Jesus lhe disse: não lho proibais; porque o que não é contra vós, é a vosso favor” (Lc 9,49-50). Nada conspira tanto contra o espírito de Santo Domingo, quanto o fechamento, isolamento, egoísmo. Santo Domingo deseja que dentro da Igreja e entre os povos da América Latina e Caribe, haja reconciliação, solidariedade, integração e profunda comunhão. Sem isso, não acontecerá jamais a tão almejada libertação!
8. Promoção humana
Destaque especial no capítulo 2º, que trata da “promoção humana”, merecem os temas referentes aos “direitos humanos”, “ecologia”, “terra, dom de Deus”, “trabalho”, “migrações e turismo”, “ordem democrática”, “nova ordem econômica”, “integração latino-americana”, “família e vida”. Santo Domingo reafirma aqui “a renovada opção preferencial pelos pobres” e nos propõe uma série de sugestões concretas para que tenhamos seres humanos promovidos, libertados; uma América Latina — Pátria grande!
9. O grande desafio: inculturação
Finalmente, aspecto desafiador em Santo Domingo temos na “inculturação do evangelho” (SD 228 a 286).
Existe concordância entre os analistas de Santo Domingo sobre o fato de que a inculturação é a maior novidade e desafio da IV Conferência. Santo Domingo afirma que “a América Latina e o Caribe configuram um continente multiétnico e pluricultural. Nele convivem, em geral, povos aborígenes, afro-americanos…, cada qual com sua própria cultura que os situa em sua respectiva identidade social, segundo a cosmovisão de cada povo” (SD 244). Diante da imensa diversidade cultural que marca tantos grupos, povos da América Latina, como levar avante o processo de inculturação? Inculturação da fé, da liturgia, dos ministros leigos e ordenados, da Igreja, do evangelho? Como trabalhar a unidade da fé e a necessária pluralidade cultural de suas expressões? Como formar, de maneira adequada, os agentes da inculturação “que se realiza no projeto de cada povo, fortalecendo sua identidade e libertando-o dos poderes da morte”? (SD 13). Como chegar a uma das metas da “evangelização inculturada que será sempre a salvação e a libertação integral de determinado povo ou grupo humano…? (SD 243).
Essas e outras candentes questões deveremos ir respondendo no após Santo Domingo, neste vasto e complexo campo da evangelização inculturada.
O documento de Santo Domingo resume este compromisso pastoral, dizendo tratar-se de “uma evangelização inculturada”:
— que penetre os ambientes marcados pela cultura urbana;
— que se encarne nas culturas indígenas e afro-americanas;
— com uma eficaz ação educativa e uma moderna comunicação” (SD 302).
No dia a dia, teremos que concretizar esse compromisso, enfrentando — insisto — outros muitos problemas que esta urgente questão da “evangelização inculturada” irá nos colocando.
10. Voltando de Santo Domingo
Testemunho, pessoalmente, que retornei de Santo Domingo ao Brasil com muito entusiasmo e esperança. Não consigo me impressionar com coisas negativas que também lá notei em nossa caminhada de Igreja. Vibro porque também lá o Senhor da História fez maravilhas. Santo é seu nome! Que seu Espírito nos empurre à nova evangelização a fim de que, por Cristo em Cristo e por Cristo, todos, sobretudo os excluídos, pobres, sofridos, tenham vida e a tenham em plenitude (cf. Jó 10,10).
D. Angélico Sândalo Bernardino