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Publicado em número 169 - (pp. 23-28)

Evangelho: fonte de vida para todos

Por Pe. Darci Luiz Marin

(Entrevista com Fr. Clodovis M. Boff)

Clodovis M. Boff nasceu em Concórdia (SC), em 1944. Sacerdote da Ordem dos Servos de Maria (OSM). Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina (Bélgica). Professor de Teologia e assessor de Comunidades Eclesiais de Base. Autor de dezenas de artigos em revistas de circulação nacional e internacional e de vários livros, entre os quais: Teologia e prática: Teologia do político e suas mediações, Vozes, Petrópolis, 1978 (tradução para o alemão, espanhol, inglês e francês); Teologia pé-no-chão, Vozes, Petrópolis, 1984 (tradução para o italiano, alemão e inglês); Como trabalhar com o povo: metodologia do trabalho popular, Vozes, Petrópolis, 1984 (tradução para o espanhol e inglês); A via da comunhão de bens: A Regra de Santo Agostinho comentada na perspectiva da libertação, Vozes, Petrópolis, 1988 (tradução para o italiano e espanhol); em colaboração com L. Boff: Como fazer teologia da libertação, Vozes, Petrópolis, 1986 (tradução para várias línguas); em colaboração com J. Pixley: Opção pelos pobres, Vozes, Petrópolis, 1986 (tradução para o inglês, francês, espanhol, neerlandês e alemão).

 

VIDA PASTORAL (VP): Estamos atravessando um tempo de desilusão intra e extraeclesial. Como sair desse “peso” (evitando otimismo ilusório) em busca de esperança fundamentada na realidade possível?

Fr. Clodovis: Pelas suas dimensões, a “desilusão” atual não parece ser o indicativo de uma situação passageira ou puramente conjuntural, como se diz. Também não é uma questão propriamente estrutural relativa à economia, à política e mesmo à cultura (no sentido restrito). Trata-se possivelmente de uma “crise de civilização” ou “de cultura” no sentido amplo — crise na qual tudo vem de novo posto em jogo: os modelos econômicos, os projetos políticos, as visões culturais; o social e o pessoal; a relação com a natureza (ecologia), com o outro gênero (mulher ou varão), com o diferente (negro, índio), com a própria subjetividade e até com o Transcendente (o retorno do sagrado).

Nesse sentido, no Discurso Inaugural de Santo Domingo, o Papa afirma: “Hoje em dia estamos diante de uma crise cultural de proporções inimagináveis”. E os bispos, que retomam essa afirmação, veem nessa crise um “desafio gigantesco” (Doc. De Santo Domingo nº 230).

Seja como for, eu veria a crise do momento atual, tanto para a Igreja como para o mundo, não como um momento de morte, mas de crescimento e vida. É uma chance de arquivar com velhos dogmatismos, de superar sectarismos e se abrir a novos problemas e novos horizontes. Ela assinala um tempo de renovar as concepções e criar propostas diferentes. Essa é uma opção prévia de fundo, fundada na confiança nas forças da vida, que são sempre mais potentes que as forças de morte. Para uma pessoa de fé, que aprendeu com S. Paulo a dialética da “abundância” do pecado e da “superabundância” da graça (cf. Rm 5,20) e que, na escola do próprio Cristo, ouviu falar do assalto ao “forte” (o Diabo) pelo “mais forte” (o Messias) (cf. Lc 11,21-22), a atitude mais correta diante dessas e de outras crises é de um otimismo fundamental e mesmo de “esperar contra toda a esperança”.

Também não quero fazer aqui a “apologia da crise” sem mais. A crise existe como prova, que deve ser assumida e superada. Por onde, pois, se pode sair da crise? Acho que tanto o evangelho como nossa experiência cristã latino-americana podem nos dar indicações úteis. Primeiro, o potencial do pobre. Pois a quem interessa um futuro novo? Naturalmente às vítimas do presente: do mercado liberal, da modernidade capitalista, da cultura da exclusão, da política de minorias. A multidão dos oprimidos, de muitas faces e nomes, aparece, pois, como os protagonistas potenciais (mas não sozinhos) de uma possível mutação civilizacional. Portanto, a “opção pelos pobres”, entendida em sentido ampliado, indica aqui o sulco fecundo em que se deve semear no presente se quisermos colher no futuro. Acho ilusório (e ingênuo) acreditar nos “príncipes deste mundo” (potências políticas, tecnológicas, econômicas) no sentido de transformar o regime do mesmo mundo e criar uma “nova ordem” social e civilizacional, pois isso não lhes interessa em absoluto.

E, depois, é preciso individuar onde, dentro da situação atual, latejam os germes do futuro; onde o novo está aparecendo; onde surgem sinais de um mundo novo. E aí podemos apontar para vários processos positivos, apesar de todas as suas ambiguidades: as organizações e lutas dos pequenos de toda sorte, os grupos de solidariedade internacional, o voluntariado social, a recuperação das culturas reprimidas, a luta pelos direitos da mulher e do feminino em geral, a sensibilidade para a ecologia, a exigência de ética na política, a busca de um sentido sagrado à vida e à história e por aí vai. É por aí que desponta o futuro. E é nesses campos que se há de investir esforços e esperanças.

 

VP:algum tempo você vem falando da “Pastoral da classe média”. O que significa isso e quais os objetivos?

Fr. Clodovis: Essa problemática surgiu da realidade. Era gente de classe média que chamei de “inquieta” e que queria entrar na caminhada da libertação do povo, mas não encontrava canais apropriados para isso, ou seja, uma pastoral específica dentro da pastoral orgânica da Igreja.

Por outro lado, havia na pastoral popular um bloqueio frente às classes médias (é melhor aqui falar no plural). Notava-se nas bases populares da Igreja (mais do lado dos agentes, eles mesmos de classe média, do que do lado do povo), uma “implicância” com os “classe média”, certo preconceito ou discriminação. O estudo que publiquei sobre a questão (REB, março de 1991, posteriormente em caderno) visava justamente desbloquear essa problemática junto às bases e envolver gente das classes médias na pastoral da libertação.

O artigo deu origem a dois seminários nacionais, patrocinados pelo “Centro Alceu Amoroso Lima pela Liberdade (CAALL) de Petrópolis (tel./fax 0242/42-6433). Aí se fizeram representar grupos e movimentos de cristãos de classe média para intercambiar experiências em curso e articular um processo conjunto. As conclusões desse debate sairão proximamente por Ed. Paulinas sob o título mais ou menos assim: “Classes médias e evangelização”.

O resultado prático foi a criação de uma “rede” de cristãos de classe média, cuja secretaria ficou por conta do mesmo Centro Alceu (a rede não podia ter um patrono mais apropriado). A rede já se encontra em funcionamento. Em breve será lançado um “Boletim da rede”, que trará informações e análises de conjuntura social e eclesial. Além disso, previu a formação de “fóruns” regulares de cristãos de classe média, sendo que o próximo (em meados de 93) debaterá o tema: “Classe média — A fome é moral?”.

É preciso dizer que a “Rede de cristãos das classes médias” não constitui propriamente uma “pastoral” no sentido de estar sob a responsabilidade dos Pastores. Mais do que uma entidade eclesiástica e talvez mesmo eclesial, trata-se de uma iniciativa cristã e de cristãos. Permanece inteira a responsabilidade dos Pastores de organizar uma verdadeira pastoral das classes médias como um organismo específico dentro de uma pastoral de conjunto, seja dando lugar e vez a grupos e movimentos já existentes, seja criando outros.

O objetivo dessa “pastoral” pareceu a mim inicialmente que devia ter sobretudo um caráter social: integrar pessoas das classes médias (“inquietas”), na caminhada libertadora dos pobres. Digo “sobretudo” porque era desde o início claro que se deviam discutir também as questões mais próprias das classes médias: subjetividade, competência profissional etc. Mas com os debates subsequentes ficou evidente que além da questão do compromisso social ou da “opção pelos pobres” existe um outro objetivo fundamental, de tipo missionário: despertar gente dessas classes para a experiência da fé e a participação eclesial. Embora distintos, os dois objetivos estão e devem estar interligados.

 

VP: Com o clima trazido pelos acontecimentos mundiais dos últimos anos, a tentação é cada um voltar-se para seu pequeno mundo, abandonando os grandes ideais políticos e sociais e voltar-se para a vida interna das pequenas comunidades, as pastorais intraeclesiais. Ainda que tudo isso tenha sua importância, como ficam os que estão fora?

Fr. Clodovis: A fé deve estar atenta aos Sinais dos Tempos, mas não necessariamente se deixar submeter a eles. Ao contrário, pode até reagir contra. Ela mantém firmes e soberanas suas exigências éticas e a partir delas julga o curso do mundo.

Ora, a tendência internista e subjetivista que sentimos hoje deve sim ser levada em conta, mas não como o metro da fé. A fé bíblica coloca indubitavelmente o imperativo profético da libertação do oprimido. Isso não pertence às conjunturas ou oportunidades históricas, mas é questão de princípio, que há de atravessar toda a prática histórica. Por isso mesmo, há de se reagir contra o fechamento no internismo: subjetivo, familiar ou comunitário.

Por outro lado, o internismo coloca um desafio para uma fé que se quer libertadora. Interno sim, internista não. Como realizar uma libertação que se conjugue com as exigências internas da pessoa? Continuar o compromisso sem considerações relativas à subjetividade é incidir no dogmatismo. Mas tratar dessas questões à custa do compromisso, não me parece também ser uma boa lógica. A saída é uma síntese em que o compromisso se dá sem sacrifício da subjetividade e vice-versa. Ao contrário: o desabrochamento do eu há de ser condição do desenvolvimento social; e o compromisso, condição de realização do eu.

A questão aqui não é tanto de quantidade, mas de qualidade. Não o volume do empenho numa ou noutra esfera, mas o modo de sua relação. Por isso há de se pensar um outro tipo de militância: mais prazeirosa e realizante; que envolva o sentimento, a fantasia, o bom humor (como nos mostraram a seu modo os “caras-pintadas” da campanha pelo impeachment). Igualmente é preciso pensar outra subjetividade, mais rica e profunda que a meramente burguesa; aberta ao outro e em diálogo com o processo histórico, onde o eu se mede com o todo, tanto no nível social como no ecológico.

 

VP: Como os agentes de pastoral podem viver a solidariedade com os empobrecidos que moram mal (CF-93), estão subempregados ou desempregados, são subnutridos…?

Fr. Clodovis: A solidariedade com os abandonados assume múltiplas formas. É um leque que vai desde uma vocação carismática de quem vai viver com eles e como eles (temos gente que convive com os mendigos, outros que participam das frentes de trabalho para os flagelados, outros ainda que sobem nos caminhões com os boias-frias), até aqueles que, a partir de sua própria situação social, “hipotecam solidariedade” com os excluídos em nível de sua competência profissional, de seu poder político ou de qualquer outra habilidade.

Sem dúvida, a Igreja precisa se aproximar fisicamente mais dos miseráveis ou excluídos. Sem um contato vivo e orgânico não há condições de compreender sua situação e auxiliá-los em sua libertação. A questão da “exclusão social” é um dos maiores desafios da sociedade e da Igreja. Essa é a cara da pobreza dos anos 90. Os “crentes” parecem ter maior penetração nesse universo do que a Igreja da Libertação. Que isso nos sirva in provocationem caritatis et bonor um operum (Hb 10,24).

 

VP: Como enxergar a espiritualidade na ação pastoral da Igreja no Brasil hoje?

Fr. Clodovis: A caminhada da nossa Igreja mostra que uma espiritualidade adequada a uma prática libertadora tem que ser também libertadora. É uma espiritualidade que busca a difícil síntese entre mística e vida. Descobriu-se que a vida não deve deixar de ser apenas o lugar onde se “gasta” uma espiritualidade acumulada (o dominicano contemplata aliis tradere), mas deve se tornar uma das fontes de comunhão com Deus (o jesuítico contemplativus in actione).

Ultimamente enfatiza-se o seguinte: que, para todos os efeitos, a, espiritual idade não pode ser funcionalizada apenas para a vida. Como o amor, ela tem sua grandeza própria, ela possui um valor por si mesma. Por isso se fala sempre mais em “gratuidade”. De fato, a espiritualidade pede em sua raiz uma relação de profunda gratuidade. Sem isso, não há espiritualidade que vá longe. É impossível uma “espiritualidade da luta” se não há, na base e no horizonte, uma “espiritualidade da graça” ou simplesmente uma “espiritualidade de Deus”.

É só assim que se pode responder à demanda geral de sentido, à busca difusa de sagrado que a sociedade moderna (pós-moderna?) experimenta. E disso são também sinais movimentos como o carismático. Ainda que se possa interpelá-lo no que concerne ao primeiro ponto, o compromisso pela justiça, não há dúvida que ele testemunha fortemente o primado da experiência gratuita de Deus, donde a justa importância que ele atribui à espontânea oração de louvor.

 

VP: Já há algum tempo o fundamentalismo vem conquistando considerável espaço na teologia, na exegese, na pastoral… da Igreja. Ao invés da refontização da mensagem do evangelho há justificação do “status quo” e ao invés de audição da voz dos empobrecidos, captação deles. Há saídas para isso?

Fr. Clodovis: Como mostrou um excelente número da revista Concilium (241 de 1992/3), o fenômeno do fundamentalismo é muito difuso na sociedade atual. Todavia não parece algo de originário, mas antes de derivado. É uma reação a uma cultura extremamente pluralista, que acaba no relativismo, quando não no niilismo. Ora, ninguém pode viver sem algumas convicções e certezas. É isso mesmo que forma uma identidade. De modo que a um “vale tudo” da sociedade moderna se levanta pretensão do “esta é a verdade” (naturalmente, a minha!).

Sem dúvida a fé cristã possui a sua “positividade”: é seu credo, seu núcleo de certezas, que ela pode anunciar e pedir conta aos que querem assumi-la publicamente, como no batismo. O “Novo Catecismo” procura responder justamente a essa exigência. Que se necessite: de algo “fundamental” na vida, nada mais que compreensível. A questão é se a busca do “fundamental” tenha que ser justamente “fundamentalista”. Ora, isso acontece quando se crê simplesmente porque alguém manda (como aquele escritor francês que, interrogado sobre aquilo que — como católico — acreditava, disse: “Vão perguntar ao papa” quando se toma por “fundamental” o que não passa de acidental e mesmo acessório; quando há fechamento na própria convicção sem abertura à convicção dos outros, sem diálogo e sem partilha. É fundamental possuir uma identidade forte e clara, mas aberta à alteridade e comungando com ela.

 

VP: Com seu trabalho de pesquisa (publicado no livro “Teologia e prática: teologia do político e suas mediações”) você possibilitou novos caminhos (metodologia) para a teologia: a mediação das ciências do social. A seu ver, quais as novas contribuições que a teologia, na ótica latino-americana, é chamada a dar hoje?

Fr. Clodovis: Vejo sobretudo duas grandes contribuições: a primeira é, e continuará sendo, a libertação social dos oprimidos. É o antigo (não velho) propósito da Teologia da Libertação (TdL), mas que continua de pé e hoje de um modo mais urgente e dramático que antes, apesar da mentalidade soft dos anos 90. A novidade nesse campo é provavelmente a compreensão mais rica que se tem da pobreza ou opressão. Essa é mais variada que simplesmente a de classe. É cultural (um dos temas de Santo Domingo): E aí temos as reivindicações de inculturação dos negros, dos indígenas e de outras minorias. É de “gênero”: é toda a questão do lugar da mulher e do feminismo em geral na sociedade e na Igreja. E é particularmente (e ainda) de condição social: o pobre hoje não é só o trabalhador explorado; é o “desclassificado”, o marginalizado do sistema social, especialmente do econômico (desempregado). Disso falamos acima. Enfim, junto com a miséria material de nossas sociedades, e ligada enigmaticamente com ela, salta hoje à vista sua “miséria espiritual”: sua falta de sentido, de esperança, de valores, de perspectivas maiores. A TdL sempre entendeu a “libertação” como um conceito aberto, integrativo, articulado em múltiplos níveis. Mas agora, o nexo entre a pobreza material e a espiritual emerge mais estreito e iniludível.

Uma segunda grande contribuição da TdL se refere não mais à dimensão ad extra da Igreja, como na questão anterior, mas a uma questão ad infra. Trata-se de consolidar uma “Igreja de comunhão e participação”. É o problema da — chamada por alguns — “democracia na Igreja”. A TdL sempre falou tanto do compromisso de libertação em vista de uma nova sociedade, como no empenho de participação nas CEBs em vista de uma Igreja realmente povo de Deus, comunidade participativa. Existe já toda uma reflexão e experiência de participação intraeclesial. Mas a questão agora é esta: como garantir e consolidar essa caminhada? Isso significa apontar para a necessidade de institucionalizar os processos de participação na Igreja da base e de conferir-lhes força de lei (juridificação). Sem o que, tudo pode retornar à estaca zero, dependendo da “linha pastoral” particular do bispo ou do padre. Os “casos” estão aí, eloquentes por si mesmos. Aqui também, as duas coisas — participação na sociedade e participação na Igreja — devem andar juntas.

Certamente as CEBs são o melhor laboratório dessa “democracia eclesial”, ou melhor, da prática da “conciliaridade” na Igreja. Sua experiência é, com certeza, histórica. Mas é preciso garantir esses avanços, consolidá-los e fazer deles o patamar de uma Igreja qualitativamente diferente no modo de sua organização histórica. Os intereclesiais de CEBs já foram chamados de “grandes concílios da Igreja popular” (L. Boff). São-no em verdade, embora não no sentido técnico, mas no sentido de que aí se vive de modo intenso e a partir das bases a dimensão conciliar que é de toda a Igreja.

 

VP: Qual sua avaliação dos passos feitos na preparação e realização da IV Conferência Episcopal Latino-Americana que se realizou em Santo Domingo de 12 a 28 de outubro do ano passado (dedicaremos o próximo número desta revista inteiramente a este tema)?

Fr. Clodovis: Fiz um balanço global de Santo Domingo que sairá numa obra coletiva pela Vozes. Atenho-me aqui apenas ao processo. O que eu vejo é um evidente enquadramento disciplinar da Igreja latino-americana dentro do projeto restaurador, ou seja, romanizador. Isso está claro tanto no modo como se processou Santo Domingo, em que o controle estava firme nas mãos de Roma — especialmente da Comissão para a América Latina (CAL) —, como nos conteúdos do documento. Nossas Igrejas são cada vez menos “locais-latino-americanas” e cada vez mais “universais-romanas”. Falamos aqui estritamente no nível das formas culturais de uma Igreja. E isso é tanto mais contrastante quanto mais o discurso de Santo Domingo enfatizava a necessidade de “inculturação”.

Isso tudo revela um distanciamento crescente da cúpula dirigente da Igreja (papa e bispos) com relação à base eclesial. E nesta convém incluir agora, por se identificar com ela, também a grande maioria dos religiosos e religiosas, dos teólogos, dos padres e mesmo um expressivo número dos bispos.

Com a agudização do centralismo autoritário dentro da Igreja católico-romana há o perigo, nas atuais circunstâncias, de haver uma proporcional perda de confiança da parte do “povo”, com relação à hierarquia. Com isso perderá a própria autoridade pastoral, pois ficará privada de sua força moral, e a própria Igreja, em vez de sair fortalecida para sua missão no mundo, ficará mais enfraquecida, justamente por muitos dos seus membros retirarem crédito nela. Isso agravará o fenômeno dos “cristãos sem Igreja”, ou seja, dos que pretendem continuar seu próprio caminho de fé, “deixando os bispos falarem sozinhos”.

 

VP: Quais os desafios que esse encontro deixa sobretudo aos agentes de pastoral que atuam na Igreja do Brasil?

Fr. Clodovis: Vejo quatro grandes desafios que Santo Domingo evidenciou. Já me referi a dois deles:

1) o desafio da “exclusão social”, que exige uma renovação criativa da “opção pelos pobres” em nível dos imperativos da década atual;

2) o desafio de prosseguir no esforço de garantir institucional e juridicamente o processo de uma Igreja participativa.

 

Existem, contudo, um terceiro e quarto desafios:

3) O desafio da “inculturação” da fé na pluralidade cultural de nosso povo. Santo Domingo ficará na história sobretudo por isso. Esse é um desafio relativamente novo para o qual nos faltam ainda balizas teológicas firmes e experiências pastorais de referência. Estamos apenas no começo de uma caminhada que se apresenta longa e cheia de tensões. Também porque cultura diz diversidade, pluralidade e ao mesmo tempo identidade. Ela toca em questões delicadíssimas, cuja raiz se situa no mundo misterioso do imaginário de um povo. Que significa passar de uma Igreja inculturada na “latinidade”, através de um processo milenar extremamente sedimentado, para uma Igreja afro-americana ou ameríndia, ou ainda mestiça-morena?

As CEBs nesse campo estão numa situação privilegiada. Elas representam um “cadinho” de fusão intercultural ou de síntese fé-cultura. Por quê? Porque elas podem articular essa relação no nível da base popular e a partir da vida. De fato, o encontro evangelho-cultura envolve mais as coletividades que as próprias elites religiosas, seja intelectuais seja hierárquicas. É só quando o povo entra em campo, assessorado por toda uma equipe técnica, como são seus pastores e teólogos, que se tem chance de deslanchar um processo real de cristianismo com novo rosto cultural;

4) o desafio de re-anunciar o evangelho a um mundo sedento de sagrado e em busca de um sentido radical à vida. Isso supõe a recuperação da dimensão explicitamente missionária ou kerigmática da missão da Igreja. Mas tal retomada supõe nova articulação entre kerygma e profecia, entre missão religiosa e compromisso social.

 

VP: Em recente artigo seu (“Lições sobre a primeira evangelização”) encontramos esta afirmação: “Na verdade, para a Igreja cristã, não é mais possível anunciar Jesus Cristo, sem anunciar os direitos do pobre. Mas também não é possível exigir dos cristãos que entrem na luta pelos direitos do pobre sem que estejam antes profundamente enraizados nas convicções de fé”. O que você quer dizer com isso?

Fr. Clodovis: É a segunda parte da afirmação acima que precisa de explicação: a necessidade da fé para o compromisso. Não falo aqui de modo absoluto. Pois há sem dúvida um compromisso social correto, mesmo sem a fé explícita. Falo com relação aos cristãos. Estes têm obrigação de serem “sal da terra e luz do mundo”. Por mandato evangélico e em espírito de serviço, eles precisam dar um testemunho qualificado no mundo. Senão, é em vão seu cristianismo: é sal que perdeu sua virtude e cujo destino é o lixo, para lembrar as palavras de Jesus. Digo mais: é a própria sociedade que precisa objetivamente desse testemunho e desse serviço. Não que toda ela tenha que ser confessionalmente cristã, mas que dentro dela existem cristãos confessantes, isso sim.

Aliás, seriam precisos ainda muitos argumentos para verificar o quanto a sociedade atual carece concretamente dos grandes ideais evangélicos? Se o mundo atual não funciona não é seguramente por excesso de evangelho, mas exatamente por falta dele. Isso é um truísmo teológico-pastoral. Infelizmente, alguns acham que o evangelho é “opcional”: é bom apenas para os que “gostam disso”, isto é, os cristãos e a Igreja em geral. O mundo, quanto a ele, pode-se muito bem dispensar disso; ele pode “ir em frente” impunemente, sem dar ouvidos a seus apelos. Estamos vendo no que isso está dando. De minha parte acho essencial para os cristãos, e vital para a sociedade que o testemunho evangélico continue a ser dado clara e conscientemente no seio do compromisso social. E isso para a salvação dos que creem e para a saúde dos que não creem.

Muitos cristãos militantes continuam a colocar a questão fé-política como nos anos 70 e 80. Ora, o cenário cultural mudou e a problemática social não é mais a mesma. A crise agora não é mais da “relevância” da fé, mas de sua “identidade”. No passado partia-se dela como de um pressuposto. Hoje a fé não é mais garantida culturalmente. Ela não é mais “o que vai por si mesmo”. É antes o compromisso que passa a ser “aquilo que vai por si mesmo”. Quanto à fé, ela precisa hoje ser reconquistada. É como um “capital” que necessita ser “reposto”. Sintoma disso é a demanda enorme, tanto de cristãos como de não cristãos, por espiritualidade, por uma nova espiritualidade. Quem não vê aí o Espírito soprando, sobre o mundo em vista de sua recriação?

Pe. Darci Luiz Marin