Publicado em número 167 - (pp. 5-6)
Para uma igreja comunitária e participativa
Por D. Pedro Casaldáliga
Nas CEBs devemos lembrar sempre que, como nos diz o evangelho, somos fermento e semente. O fato de sermos pequenos, de vivermos às vezes meio incompreendidos, meio marginalizados, não nos deve assombrar. Isso faz parte do evangelho. Também não podemos esquecer que o fermento é para fazer crescer a massa e que a semente é para produzir e se reproduzir. As CEBs têm que ser ativas, missionárias, comprometidas. Mexer com a Igreja e a sociedade.
Se a gente quisesse explicar o fenômeno das CEBs para os “profanos”, poderíamos partir de três grandes postulados:
1. A participação. A vontade de participar. Não se aceita mais que alguns resolvam, sem a participação de todos.
2. Defesa da própria identidade. Todos, cada vez mais, queremos ser o que somos. Defender a própria identidade.
3. Alteridade. O outro, o diferente.
Penso que as CEBs aqui na América Latina, e muito concretamente agora, às vésperas de Santo Domingo, a partir deste VIII encontro que tem como tema “culturas oprimidas e a evangelização na América Latina”, as CEBs, a Teologia da Libertação, a Bíblia nas mãos do povo, os novos ministérios, a vida religiosa inserida, a liturgia inculturada, assumem evangélica e eclesialmente esses três postulados.
A participação. Toda a Igreja sendo adulta, corresponsável. Mais ainda, toda a Igreja é ministerial. Isso, acreditamos, mas não praticamos. E o desafio está aí.
A identidade. As culturas estão exigindo o pleno respeito que não receberam da evangelização tradicional. Devemos reconhecer honestamente, diante de Deus e da história, que ao longo dos 500 anos — não apenas nos primeiros dias da conquista — a evangelização tem sido colonizadora.
Nossas estruturas litúrgico-pastorais, a vida religiosa, a formação no seminário, até a língua. Haviam freiras ou religiosos que aprendiam melhor o francês, italiano ou castelhano que o próprio português, porque a congregação vinha da França, da Itália ou da Espanha.
A mulher exige, cada vez mais, ser reconhecida como mulher e ter plena participação. Aqui a Igreja continua tendo um pecado grave: a mulher não é reconhecida. Isso se deve reconhecer honestamente. Os documentos, inclusive os últimos, teoricamente falam da dignidade e da participação da mulher. Enquanto a mulher não puder ter acesso a todos os ministérios, continuará sendo marginalizada na Igreja.
Eu, honestamente, diante de Deus, também em consciência, devo dizer que não conheço nenhum argumento bíblico-teológico, nem da tradição apostólica, contra isso. Podemos apelar para argumentos da tradição cultural.
Não digamos a identidade dos povos indígenas, que são outros. Cada vez mais nossa teologia vem descobrindo que não é só optar pelos pobres, mas também optar pelo outro.
E os povos negros? Com respeito ao povo negro a Igreja talvez tenha ainda maior pecado. Porque a falta de sensibilidade com respeito ao povo negro foi ainda maior.
Como consequência disso tudo, a alteridade. Nós queremos outra sociedade. O mercado e o neoliberalismo que aí estão não nos servem. São homicidas e acabam sendo suicidas também. Essa guerra suicida do Primeiro Mundo contra o Terceiro já está declarada, sendo talvez a máxima guerra da história humana.
Queremos outra Igreja. Ninguém pensa em cismas, de jeito nenhum! Tenho recordado várias vezes que nestes últimos anos os cismas não vêm pela esquerda, vêm pela direita!
Queremos outro tipo de Igreja. Quando nas CEBs se lançou aquela primeira ideia: “o novo jeito de ser Igreja”, houve protestos. Quando lançamos a segunda nova ideia, que as CEBs seriam uma contribuição para que toda a Igreja fosse de um modo novo (“o novo jeito de toda a Igreja ser”), aí, num primeiro momento, o escândalo atingiu inclusive a certos teólogos amigos nossos. Todos estamos percebendo que a Igreja deve ser de outro modo. Queremos que toda a Igreja seja mais comunitária e, por causa disso, mais participativa. Que a Igreja seja verdadeiramente plural, encarnada nas diferentes culturas e conjunturas sociopolítico-históricas que os povos vivem. Que a Igreja seja mais capaz de dialogar ecumenicamente, com mais decisão. O ecumenismo, infelizmente, está perdendo muito espaço. Há um recuo. Que a Igreja seja capaz de assumir o que diz e escreve nos documentos. Que todos nós sejamos capazes de assumir, em primeiro lugar, o máximo documento que é o evangelho.
A pobreza, por exemplo. É evidente que nós somos pobres. Que a opção pelos pobres não seja apenas espiritual. Que seja também optar efetivamente pelas causas dos pobres.
A América Latina, o Terceiro Mundo todo, é muito mais pobre hoje que quando Medellín (1968) fez a opção pelos pobres. E os pobres são muitos mais.
E, finalmente, que a Igreja faça questão de acreditar em Deus. Às vezes parece carregarmos Deus como se ele pudesse quebrar-se pelo caminho. Como se fôssemos nós a salvar Deus! Que a Igreja acredite um pouco mais em si mesma. Se ela acredita, se se considera grávida do Espírito do Ressuscitado, que tenha medo de andar. Às vezes tem o andar de paralítica, indecisa, medo da liberdade, medo da alteridade, medo dos desafios da história, Façamos todos questão, já que todos somos Igreja, de ir superando, de uma vez por todas, essas dicotomias do horizontal e vertical, do céu e da terra, e que vivamos bem radicalmente a oração e bem radicalmente também o compromisso temporal, social, político e histórico.
Gosto de dizer, sobretudo aos irmãos e irmãs daquela sofrida e heroica América Central, que devemos ser radicalmente contemplativos e revolucionários.
Mais uma palavrinha. Agradeço de coração este serviço esplêndido que Vida Pastoral nos faz. Conste que em São Félix do Araguaia, e eu também, todas as semanas, nos preparamos com o auxílio desta revista; com Vida Pastoral e com um folheto muito bom que meus colegas da Catalunha publicam. Continuem! Vale a pena!
Abram também o espaço de Vida Pastoral para a latino-americanidade, a continentalidade. Este nosso Brasil, às vezes é pouco latino-americano. Que esse seja um fruto bem sadio deste V centenário.
D. Pedro Casaldáliga