(Entrevista com Pe. Bernhard Häring)
Bernhard Häring é padre redentorista. Nasceu na Alemanha em 1913 e foi ordenado em 1939, tendo retornado em 1989 para o convento de Gars, onde há mais de 50 anos havia iniciado sua caminhada de formação — e onde vive atualmente (Kirchplatz 10 — 8096 Gars am Inn) — após mais de 30 anos de ensinamento de teologia moral na Academia Alfonsiana, em Roma.
Quando for escrita a história da teologia contemporânea, certamente seu nome ocupará lugar de destaque. Sua obra A Lei de Cristo, nascida nos anos 50, causou grande impacto na teologia moral. Desde o Concílio Vaticano II, Pe. Häring tem sido um dos teólogos morais que mais produziu, tendo sido traduzido em todo o mundo. Uma de suas obras, composta de três volumes, Livres e fiéis em Cristo — Teologia moral para sacerdotes e leigos (cf. p. 53), continua sendo bastante utilizada em escolas de teologia, inclusive no Brasil.
Pe. Häring contribuiu muito para a realização do Concílio Vaticano II, tendo sido consultor dos papas João XXIII e Paulo VI, como nos dirá nesta entrevista. É amigo de João Paulo II, com quem trabalhou no Concílio, além de João Paulo I que, como professor de moral, adotou seu livro A lei de Cristo.
Com grande alegria partilhamos aqui as respostas que Pe. Häring nos concedeu com exclusividade no final do ano passado.
VIDA PASTORAL (VP): Qual o grande sinal dos tempos para nós hoje às portas do Terceiro Milênio? Como fazer para vivenciar este sinal na história?
Pe. Häring: Penso que a libertação não violenta da Alemanha Oriental promovida por cristãos animados pela não violência evangélica, e igualmente a libertação da Ungria, Polônia, Tchecoslováquia, eficaz com meios, métodos e, sobretudo, espiritualidade não violenta e o processo de reconciliação entre os países da NATO e do Pacto de Varsóvia é um sinal da presença de Deus Salvador-Libertador entre quem crê no Salvador-Libertador, Cristo, um testemunho histórico.
Cabe agora sobretudo aos cristãos do Terceiro Mundo aprofundar entre si e em suas sociedades a liberdade profética dos não violentos, a franqueza profética para acordar a consciência de todos os homens de boa vontade.
Em 1933, quando os partidos capitalistas uniram-se ao partido fascista nacional-socialista de Hitler contra os políticos que tinham preparado um plano claro para reparar o mal dos latifúndios na Alemanha Oriental, eu escrevi um drama. Eis o conteúdo:
Primeiro ato: Um latifundiário converte-se, vê o pecado terrível de ter gasto na cidade os fundos que o governo tinha reservado para a reforma agrária. Ele pede humildemente perdão a seus dependentes até então explorados. E lhes pede o favor de aceitá-lo como um deles, como colaborador para a reforma agrária e a solidariedade na justiça social.
Segundo ato: Os latifundiários unem-se contra o “traidor”. Ou se deixará convencer de ser solidário com eles na defesa da “propriedade”, ou perderá a vida.
Terceiro ato: O assim chamado “traidor” é morto. Os latifundiários celebram sua vitória. E eis que se anuncia: Königsberg da Prússia Oriental é ocupada pelo exército vermelho da Rússia que avança rapidamente. Em 1945, como prisioneiro russo, vi a fuga esvanecida dos latifundiários.
Esse drama deveria ser reescrito hoje, para abrir os olhos dos latifundiários e de seus comparsas no Brasil. Há ainda tempo para repensar tudo e libertar-se de uma injustiça secular, tantas vezes também “justificada” com argumentos religiosos — uma das mais bestiais blasfêmias!
VP: O senhor é grande admirador dos papas João XXIII e Paulo VI. Conte-nos algumas lembranças suas junto a esses dois papas.
Pe. Häring: O discurso de João XXIII, na abertura do Concílio Vaticano II, foi para mim ocasião para elaborar uma visão do Concílio. Fiz isso no discurso aos bispos francófonos (de língua francesa), e depois para outros episcopados. As Edições Paulinas (da Itália) publicaram esta minha visão em pequeno livro chamado Il Concilio nel segno dell’Unità. O primeiro leitor foi o papa João XXIII. No dia em que assinou sua encíclica Pacem in Terris, escreveu em seu diário: “Terminei de ler o livro de Bernhard Häring Il Concilio nel segno dell’Unità, com grande prazer e consenso”.
Nos dias seguintes, repetidas vezes, mandou seu secretário Capovilla buscar novos exemplares do livro para distribuí-los aos seus visitadores (bispos). O pequeno livro foi depois traduzido também em outras línguas. Eu mesmo o escrevi depois em alemão. Penso que, assim, pude ajudar um pouco o papa João na sua grande visão do Concílio.
Pouco depois da morte do papa João, visitei um meu irmão doente de câncer, em fase terminal. Toda manhã os médicos extraíam uma grande quantidade de líquido repleto de células cancerosas. Durante a novena, em uma noite, o irmão disse repentinamente: “Não há mais tal líquido!” Estava perfeitamente curado, vivendo mais 23 anos.
No primeiro ano de pontificado de Paulo VI dirigi os exercícios espirituais ao papa e à cúria (22 conferências). Antes dos exercícios o papa me disse: “Coragem! Sem medo! Proclame o evangelho também a nós com toda a franqueza”. Fiz isso. No final o papa, em discurso de aproximadamente dez minutos, fez a síntese de minhas pregações e anunciou que, em memória desses exercícios, seria introduzido na litania de louvor o verso “Seja louvado o Espírito Santo Paráclito”.
Em minha teologia moral e nas obras espirituais tinha sempre um lugar privilegiado “a lei do Espírito”, e, por isso, meu discurso moral é sobretudo uma paraclese: um encorajamento para viver segundo a lei da graça do Espírito Paráclito.
VP: Qual a importância do Concílio Ecumênico Vaticano II para a Igreja?
Pe. Häring: Após a conclusão do Concílio encontrei por acaso dois irmãos de Taizé, Schütz e Thurian. Perguntei-lhes se estavam contentes. A resposta: “Seria pouco dizer só isso! O Concílio foi um grande evento do Espírito Paráclito”.
Talvez se possa sintetizar o Concílio Vaticano II nos seis pontos seguintes:
1) Retorno radical à Palavra de Deus, ao Evangelho como Boa Nova e às amplas margens das tradições comuns aos cristãos; libertação das tradições confessionísticas emergentes da defesa e da potestas temporalis dos papas e bispos.
2) Conversão profunda e humilde ao testamento do Senhor: “Para que todos estejam unidos”. O ecumenismo com todas as suas consequências: Ecclesia semper reformanda. A Igreja romano-católica está disposta a aprender das outras partes dos cristãos e em humilde obediência ao Evangelho.
3) Nova autocompreensão da Igreja como communio, como “povo de Deus” peregrinante, sacramento da unidade, não só dos cristãos mas de todo gênero humano, sacramento de salvação e da paz, no seguimento de Cristo que é nossa paz, a não violência. Daí também o superamento do sulco entre clero e leigos. Todos digamos: “Nós somos o povo de Deus”.
4) Em consequência: um retorno a uma constituição sinodal-colegial da Igreja e em fidelidade ao princípio de subsidiariedade ensinada pela Igreja como princípio fundamental de toda sociedade. João Paulo I disse em carta a um amigo, poucos dias antes de sua morte: “A colegialidade será o critério e a prova da catolicidade”.
5) Conversão ao “mundo muito amado de Deus”: “As alegrias e esperanças, as tristezas dos homens de hoje, dos pobres sobretudo e dos que sofrem, são, pois, as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos discípulos de Cristo…” (Gaudium et Spes 1). A preferência pelos pobres é sinal e prova dessa conversão ao mundo. O outro aspecto é, porém, um não muito decidido ao mundo perverso, isto é, àquele mundo que perverte a religião em favor dos ricos e poderosos. Um NÃO forte e claro ao abuso da religião para confirmar um status quo injusto…
6) A adoração de Deus em espírito e verdade: a reforma da liturgia e favorecimento a tudo aquilo que ajudará uma integração entre fé e vida. Isso se expressa, entre outros, nas comunidades de base…
VP: Qual sua visão a respeito da Teologia da Libertação e da Ética da Libertação desenvolvidas na América Latina? Em que se deveria avançar mais hoje?
Pe. Häring: Os meus três volumes Livres e fiéis em Cristo foram esforço meu para elaborar uma ética de libertação em plena fidelidade a nosso Salvador-Libertador Jesus Cristo. Uma característica do meu enfoque é uma síntese entre amor sanante e profecia liberante. Penso que a teologia moral na América Latina está no caminho certo. Durante o primeiro congresso dos teólogos moralistas da América Latina, em São Paulo, em 1988, insisti muito que devemos aprofundar a síntese entre enfoque terapêutico e libertação. Há os poderosos, os super-ricos e os tradicionalistas que buscam ainda compor religião com “tradição, família e propriedade”, paternalismo (culto à masculinidade), tradição superficial a favor do status quo injusto, e a sacralização das posses injustas dos ricos como se fossem sacralizadas pelo decálogo, pela religião. Não basta desmascarar tal aliança entre tradicionalistas privilegiados e super-ricos como uma blasfêmia contra Deus “Pai de todos”, mas devemos fazer tudo para abrir os olhos dos cegos. Também os tradicionalistas que defendem o status quo injusto deveriam sentir que nós os amamos, que eles podem ser curados da cegueira e libertos da injustiça que pesa sobre suas cabeças. Devem sentir que nossa chamada de atenção contra o abuso da religião que diz Deus e pensa ouro é um grito de amor sanante e liberante sobretudo para eles. Nossa preferência pelos pobres é para todos nós o firme propósito de abrir nosso coração e nossas inteligências à primeira bem-aventurança: “Bem-aventurados os pobres diante de Deus…”.
VP: Se o senhor pudesse ter realizado seu sonho juvenil de ser missionário no Brasil, qual a atividade apostólica que gostaria de ter exercido? O que diria aos missionários que atuam em países do Terceiro Mundo hoje?
Pe. Häring: Quando entrei em nossa congregação dos redentoristas, meu sonho era transformar-me num apóstolo itinerante no Brasil, próximo ao povo simples, humilde e pobre, para anunciar a Boa Nova e administrar o sacramento da paz e da reconciliação. Já estava prestes a reservar uma passagem de navio quando meus professores impediram o superior provincial de mandar-me para o Brasil. Depois do Concílio estive um mês no Brasil. Proferi mais de 100 conferências. Penso que naquele mês pude entrar em contato com muitos brasileiros que haviam produzido segundo meu sonho.
Permaneci sempre um missionário de coração. Minhas longas férias acadêmicas, passei-as frequentemente no Terceiro Mundo. Fui proclamar o evangelho da salvação e da libertação em 20 países africanos e em 9 países asiáticos. Deus me concedeu muito mais do que tinha sonhado. Digo e disse tantas vezes na Europa, Estados Unidos e no Terceiro Mundo aos sacerdotes e leigos engajados: Distanciai-vos completamente daquele mundo perverso que abusa da religião e convertei-vos à pureza de coração, à pureza de serviço a Deus no serviço aos pobres e oprimidos. Disse e direi até o fim de minha vida: O evangelho requer inculturação e fidelidade ao Verbo encarnado, nascido entre os pobres. A pastoral no Terceiro Mundo deve libertar-se dos velhos esquemas do velho mundo. Viver próximos a Cristo significa também viver próximos das pessoas das quais somos ministros-servidores da Palavra e dos sacramentos.
VP: Em seus últimos cursos ministrados na Academia Alfonsiana de Roma, o senhor insistia bastante na temática do Evangelho da Paz, dando especial destaque às bem-aventuranças. Como fazer isso em meio a uma realidade de profunda injustiça institucionalizada, que leva à morte prematura seres humanos indefesos aos milhares?
Pe. Häring: Em minha última aula na Academia Alfonsiana, procurei sintetizar meu testemunho. Nos últimos anos concentrei meus estudos, meus escritos e minhas conferências sobre os três pontos do processo conciliar: A não violência terapêutica como caminho da paz; uma justiça social em nível mundial como critério de nossa fé em um só Deus Pai, um só Salvador, um só Espírito Paráclito. E não esquecendo a terceira dimensão: uma relação não violenta terapêutica com os dons do Criador (ética ecológica). Não podemos tomar somente um desses três aspectos, sem nos desviar. Paz-Justiça-Consciência ecológica formam um projeto indivisível.
VP: Como superar as dificuldades frente aos que se opõem (infra Ecclesia) a uma evangelização que opta abertamente pelos empobrecidos? (Conte-nos sua experiência nesse sentido.)
Pe. Häring: Se tivesse a chave para o problema deveria ser o mais sábio e o médico mais entendido. Frequentemente meus esforços foram insuficientes. Um exemplo de desilusão: Para a Constituição Pastoral Gaudium et Spes tínhamos um belo capítulo, um texto forte sobre a necessidade de reforma agrária a favor dos pobres. A resistência venceu ao menos 60%, com o argumento: “Isso não cabe ao Concílio. Cabe somente às Igrejas locais, onde talvez haja necessidade”. Mas era um argumento falso. A não realizada reforma agrária em tantas nações recai sobre todas as nações como obstáculo para uma verdadeira paz na justiça. Penso ter tido um pouco mais de sucesso quando encontrei ocasião de diálogo com gente na Igreja que não havia ainda compreendido do que se trata na opção preferencial pelos pobres. Sempre repeti: tal opção contém também a salvação dos ricos, tal enfoque expressa nossa fé em que os ricos e poderosos podem converter-se a Cristo que se fez pobre para enriquecer-nos a todos. Algumas minhas cartas de grande franqueza produziram bons frutos, quando deram testemunho evidente que se tratava de um enfoque não violento e terapêutico.
VP: Qual deveria ser a preocupação principal da Igreja na América Latina nesta véspera da IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, a se realizar em Santo Domingo em 1992?
Pe. Häring: Que seja coerente e fiel à grande conferência de Puebla e, sobretudo, à de Medellín. Que se explique bem o enfoque terapêutico e liberante de tal opção.
Que esta conferência evite toda aparência de triunfalismo no que se refere aos cinco séculos de presença do evangelho na América Latina — mas, infelizmente, também do mundo perverso de abuso da religião em prejuízo dos pobres e indígenas. Seja um canto de louvor à misericórdia divina quia non sumus consumpti, porque Deus nos mandou frequentemente verdadeiros profetas e nos fez descobrir gradualmente a dimensão de uma verdadeira evangelização e inculturação. Uma fervorosa prece para que a Igreja inteira se converta a Cristo pobre nos pobres.
VP: Qual o lugar da UTOPIA e da ESPERANÇA numa realidade de opressão como a que se vive na América Latina?
Pe. Häring: A verdadeira fraternidade, a solidariedade de salvação de todos os cristãos em cooperação com todos os homens de boa vontade, é uma utopia não arbitrária, não um sonho vão, mas uma meta posta diante de nós e escrita em nossos corações. Uma esperança sem firme empenho, ou um esperança que não corresponda às promessas divinas e a seu plano de salvação é um sonho vazio, uma utopia vã. Mas esperar que os cristãos se unam pela paz, pela justiça social no plano nacional e internacional, junto com uma opção de nos mover dia a dia nessa direção, parece mera utopia para quem tem pouca fé. Para nós é uma meta, que inspira, move e protege contra o pessimismo. Uma utopia, sim; mas mais que utopia, para quem se move em tal direção e põe sua esperança em Deus.
VP: Qual a mensagem que o senhor gostaria de deixar aos bispos, padres, religiosos(as) e agentes de pastoral do Brasil para que se concretize uma evangelização mais efetiva no mundo de hoje?
Pe. Häring: Meu patrono, São Bernardo, deu esta mensagem ao papa (em seu livro De considerazione): Deixar entrar profundamente a Boa Nova em nossos corações, meditá-la dia e noite para poder anunciar o verdadeiro júbilo. Tomados pelo júbilo do Senhor, celebrando com alegria os mistérios da fé, poderemos irradiar alegria e esperança, verdadeira liberdade e fidelidade. E encontraremos também o tom justo tratando questões morais sem moralismo. Poderemos comunicar a paraclese, o dom de confiança e de encorajamento que nos oferece o Espírito Paráclito. Para poder anunciar a Boa Nova aos pobres e oprimidos é necessário deixar-nos evangelizar pelos pobres, por todos os que vivem a bem-aventurança: “Bem-aventurados os pobres frente a Deus. Deles é o Reino de Deus”.
Pe. Darci Luiz Marin