Roteiros homiléticos

Publicado em março-abril de 2025 - ano 66 - número 362

19 de abril – VIGÍLIA PASCAL

Por Junior Vasconcelos do Amaral*

“Ele não está aqui, ressuscitou!”

I. INTRODUÇÃO GERAL

O Sábado Santo é o coração do mistério pascal de Cristo: silêncio e esperança no alvorecer de um novo tempo e condição que constitui ressurreição. “Durante o Sábado Santo, a Igreja permanece junto ao sepulcro do Senhor, meditando a sua paixão e morte, a sua descida à mansão dos mortos (1Pd 3,19), esperando na oração e no jejum a sua ressurreição” (Paschalis Sollemnitatis, n. 73). É nesse espírito de alegria modesta, de esperança e fé pulsante, que aguardamos o renascer na vida de Cristo, sua verdadeira vida, que surge da morte. Acendemos nesta noite o fogo novo, iluminados por Cristo; somos lavados do pecado, ressurgindo para uma vida nova, no rito batismal; e comungamos da Eucaristia, que nos une num só coração.

 Para o teólogo suíço Hans Urs von Balthasar, pode-se contemplar neste dia o clímax da obra da redenção de Cristo. Ao descer à mansão dos mortos, Cristo se põe à máxima distância do Pai – um hiato que o angustiava desde o Getsêmani: “Pai, afasta de mim este cálice”, pois esse hiato poderia separá-lo de Deus, coisa antes jamais vivida por Jesus –, a distância entre o céu e o inferno. Deus, porém, o ressuscitou dos mortos e garantiu para toda a criação e para toda criatura um caminho novo, rumo não a uma nova terra, mas a uma nova condição: a salvação eterna.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Leituras do Antigo Testamento (Gn 1,1-2,2 • Gn 22,1-18 • Ex 14,15-15,1 • Is 54,5-14 • Is 55,1-11 • Br 3,9-15.32-4,4 • Ez 36,16-17a.18-28)

O conjunto das sete leituras do Antigo Testamento, lembrando a perfeição de Deus, desde a criação ao fim do exílio na Babilônia, tem seu início com os primeiros versículos da Sagrada Escritura, cuja composição sacerdotal mostra a beleza criadora de Deus, como numa evolução e um crescendum. No curso dos seis dias da criação, desde o céu e a terra, as águas, os peixes, as ervas do campo, as feras e as árvores, o ser humano é criado num dia vizinho do sábado, do dia pleno – o shabat. Sua incompletude o aproxima do sábado e o faz ser sempre peregrino de uma nova terra e um novo céu. Deus é o Criador de tudo, também do ser humano, feito à sua imagem e semelhança (Gn 1,26), e este ser humano é chamado a dominar (v. 28) a terra, no sentido do cuidado, a fecundar e multiplicar, encher a terra e estabelecer sobre ela sua forma de governar em harmonia com tudo o que existe.

Na segunda leitura, Gn 22,1-18, o patriarca Abraão é fiel a Deus. Com temor e tremor, leva seu filho Isaac ao sacrifício por pura obediência ao Senhor. Isaac é prefiguração da vida de Cristo doada no madeiro da cruz. O sacrifício de Isaac só não acontece pela ação de um Deus providente, que não quer o sacrifício do gênero humano, como eram cometidos por povos vizinhos à Palestina.

Na terceira leitura, Ex 14,15-15,51, o narrador mostra o poder de Deus, que liberta seu povo do Egito. Esse é o evento fundante para entendermos a Páscoa de Jesus, que passa da morte para a vida, da mesma forma que o povo passou pelas águas do mar Vermelho. Deus, porém, fez perecer todo o exército dos egípcios, seus homens e cavaleiros (Ex 14,27). O cântico de vitória entoado por Moisés tem como refrão: “O Senhor é minha força e meu canto, a ele devo salvação” (Ex 15,2). Deus garante a seu povo vida nova e salvação.

Agora em sua terra, Canaã, o povo de Israel nem sempre foi fiel a Deus, mas cultuou deuses pagãos, os ídolos: Baal, Asherá, Marduk e outros mais. As alianças espúrias entre Israel, seus monarcas, seu povo e as outras nações levaram-nos a inúmeras situações constrangedoras, sendo a pior delas o exílio da Babilônia (Is 54,5-14). Contudo, embora seu povo seja infiel, Deus manter-se-á sempre fiel. Essa será a certeza de fé do povo cujo Senhor é Adonai: é disso que trata essa quarta leitura.

Deus, sempre fiel, repropõe uma aliança eterna (berit, v. 3), é o que retrata a quinta leitura, no convite final do Dêutero-Isaías. Deus acompanhará seu povo do exílio para a terra de Judá, assim como o acompanhou de Judá até o cativeiro da Babilônia. Ele ama incondicionalmente, atrai seu povo para si. Quer, porém, que seu povo abandone o caminho da maldade e os pensamentos perversos (v. 7).

A sexta leitura sugere que o povo saiba discernir o que é mal do que é bom. É preciso que, com sabedoria, ele repense suas opções, escolhas e tomadas de consciência. Faz-se imprescindível que retorne para Deus, que é “fonte de toda sabedoria”.

Por fim, a sétima leitura do AT anuncia uma nova aliança (berit) de Deus com os exilados, marcando seu povo com novo selo em seu coração, que, em lugar de pedra, seja de carne, para amar e fecundar a vivência de nova fraternidade perdida pelo pecado, sobretudo pela idolatria, que faz a vida ser relativizada, ameaçada e destruída. Deus ama seu povo e fará vir sobre ele um novo Espírito, que fará reflorescer a vida no vale de ossos secos.

2. Carta (Rm 6,3-11)

Paulo traduz para a comunidade cristã sua nova identidade: batizados em Cristo, em sua morte e ressurreição. Ele faz uma aproximação entre a Páscoa de Cristo e o batismo, que nos lavou do pecado e nos fez filhos/as de Deus. O homem velho (v. 6) é deixado para trás e nos é dada nova vida de ressuscitados, à luz da experiência de Cristo. Assim como nossa vida é iluminada pelo sol e recebe o seu brilho, somos salvos pela luz radiosa da ressurreição do Senhor. Trata-se de graça salvífica que veio a nosso encontro. “Se, pois, morremos com Cristo, cremos também que viveremos com ele” (v. 8).

Por essa aproximação entre o mistério pascal de Cristo e o batismo é que somos aspergidos com a água batismal, que também faz que, nesta noite santa, incalculáveis homens e mulheres se tornem filhos e filhas de Deus. O batismo é um chamado, uma vocação à vida em Cristo, crucificado e ressuscitado, vencedor da morte, garantidor da vida nova para todos nós.

3. Evangelho (Lc 24,1-12)

O relato lucano é sempre uma bela narrativa que, embebida de traços do Evangelho de Marcos, o primeiro da fé cristã primitiva, nos faz entrar no mistério da madrugada daquele dia que marcou indelevelmente toda a agenda da história humana. As mulheres (citadas nominalmente por Mc 16,1, mas não nomeadas por Lucas), bem de madrugada, foram embalsamar o corpo de Jesus, depositado no sepulcro. É notório que Lucas e Marcos insistem no papel das mulheres na vida da Igreja, em sua comissão de serem as primeiras proclamadoras da fé pascal. “No primeiro dia da semana, bem de madrugada” (v. 1): o primeiro dia é sempre sinal de criação e, nesse caso, recriação, recomeço, sentido esperançoso de que só o tempo é capaz de transformar as marcas das dores do dia que passou. O poder das trevas vai dando lugar à luz da aurora, da vitória de Jesus sobre a morte (cf. Lc 1,78-79, especialmente “para iluminar os que jazem nas trevas da morte”).

A pedra do túmulo (v. 2) estava removida. Misteriosamente, Deus tira do caminho do Ressuscitado e das mulheres, suas testemunhas, todas as barreiras. Não encontram o corpo (v. 3), pois ele todo ressuscitou, ele é o Crucificado-Ressuscitado. Sua história completa é assumida por Deus, o Pai. O sentido de perplexidade das mulheres é ressignificado pela verdade que os dois homens agora lhes apresentam (v. 4). Eles trajam vestes fulgurantes, lembrando aquelas usadas por Jesus no monte Tabor (cf. Lc 9,29). São testemunhas primeiras da ressurreição e querem agora compartilhar essa verdade. O v. 5 destaca o medo e a prostração do rosto por terra. Eles trazem uma Boa Notícia: “Por que estais procurando entre os mortos aquele que está vivo? Ele não está aqui. Ressuscitou!” (v. 6). Os homens dizem: “Lembrai-vos de como vos falou...”, fazendo memória da predição da paixão, em sentido analéptico (revisitando algo dito ou acontecido no passado). Tudo isso Jesus havia dito quando estava na Galileia. E elas se recordaram das palavras de Jesus (v. 8).

Por fim, o relato nos apresenta a recusa dos apóstolos em aceitar o testemunho das mulheres. Agora Lucas as cita pelo nome (v. 9). Pedro, que se levanta para ir ao túmulo, inclinando-se, viu apenas os lençóis mortuários. Ele voltou para casa muito surpreso com os fatos acontecidos (v. 12). Vale ressaltar que o mais importante não é a incredulidade por parte da maioria dos discípulos homens, mas a fé das mulheres e a surpresa de Pedro, que servem de base para nossa fé. Que, para além de qualquer dúvida, possamos alimentar em nosso coração a certeza da ressurreição como a mais bela resposta de Deus à vida de Jesus e à nossa vida de cristãos/ãs.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Refletir com a comunidade cristã que qualquer desafio pode ser superado pela fé e solidariedade entre os irmãos. Para tanto, é importante confiarmos em Deus e em nossas relações de amizade e fraternidade. Convidar a comunidade a celebrar os ritos desta noite, por mais longa que seja a liturgia, considerando que é a mãe de todas as celebrações e vivenciando todos os momentos como uma evolução da história da nossa fé, que tem como ponto culminante Jesus Cristo e sua ressurreição. Levar a comunidade a compreender a importância do testemunho, seja do que falamos por palavras, seja do que vivemos em nossa prática. Perceber que a presença das mulheres na Igreja primitiva daquele tempo e na Igreja de hoje é de suma importância para a fé cristã no Ressuscitado, pois o digno testemunho não é privilégio apenas de homens.

Junior Vasconcelos do Amaral*

*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seu doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor do Departamento de Teologia e do Programa de Pós-Graduação “Mestrado Profissional em Teologia Prática” na PUC-Minas, em Belo Horizonte, e desenvolve pesquisas sobre análise narrativa, sobre Bíblia e psicanálise e sobre teologia pastoral. E-mail: [email protected]