Publicado em março-abril de 2025 - ano 66 - número 362
18 de abril – PAIXÃO DO SENHOR
Por Junior Vasconcelos do Amaral*
“Ó Pai, em tuas mãos, eu entrego meu espírito”
I. INTRODUÇÃO GERAL
“Só o amor é digno de fé”, afirmou Hans Urs von Balthasar, um dos mais brilhantes teólogos do século passado. Ele afirma isso em relação ao mistério do esvaziamento do Filho, que, na cruz, entrega sua vida para que o mundo obtenha salvação. Somente um ser como Cristo, Filho unigênito, que, fazendo-se como nós e sentindo nossas dores, pode ser digno de fé, pois ele, no altar da cruz, doa a si mesmo para nos redimir, salvar e santificar. Por isso, hoje lembramos o sacrifício – “o fazer sagrado” – de Cristo no alto do Calvário, onde reluz a humanidade atravessada pela dor da morte. Tal esperança tem nome: ela será conhecida como ressurreição. O sofrimento humano é e continuará a ser uma condição inseparável da essência humana. O Servo sofredor, da primeira leitura, desfigurado, nem parecia uma pessoa, dilacerado pelos pecados daquele tempo –o Israel do exílio é a prefiguração de Jesus, que carrega sua cruz ao Calvário. Na segunda leitura, Hebreus, em sua profundidade teológica insuperável, afirma que temos um sacerdote, Jesus Cristo, que entrou no céu, por isso podemos nos manter firmes na fé, pois, embora morrendo, Cristo tem do Pai a promessa real da ressurreição, que, na espera de fé, se tornará uma realidade. O Evangelho da paixão segundo João retrata, de um lado, as armadilhas e perversidades humanas, esquemas escusos que configuraram o julgamento e a condenação de Jesus, e, de outro, a convicção e a fé de Jesus, que o levam a entregar a vida como gesto amoroso e oblativo, de mais pura redenção para o mundo. Ele é digno de fé, pois vive o amor em plenitude e, no alto da cruz, no esvaziamento de si mesmo, de seu lado ferido pela espada do mal faz jorrar sangue e água, os sacramentos do amor e da salvação de todo o gênero humano.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
I leitura (Is 52,13-53,12)
O Servo de Adonai é um personagem coletivo. Ele representa o povo de Israel que sofre na Babilônia, ao ser deportado e exilado em país estrangeiro. Tendo sua terra destruída, junto com os principais monumentos, como o templo – principal referencial para a fé –, o povo parece desfigurado, sem feição humana (v. 14). Israel, da condição de servidor de Deus, passa a servidor dos caprichos humanos – tal ironia torna-se deflagrada para aquele cosmo próximo. O v. 15 ressalta que, diante de Israel, os reinos da terra se mantêm calados, pois a eles nada foi revelado em relação ao que havia sido para Israel. Não obstante, Israel nem sempre ouviu a voz do Senhor, nem sempre foi fiel a Deus, cometendo idolatrias, que tiveram como consequência o castigo do exílio. Essa visão punitiva pode ser lida na relação causa-consequência, não como desejo aleatório de Deus.
Buscando um retrospecto desde o chamado de Israel, o narrador do Dêutero-Isaías diz que esse povo cresceu em terra seca (Is 53,2). O Servo é rejeitado por seu próprio povo, embora a interpretação coletiva, que considera o Servo como “Israel” (Is 49,2), permaneça válida, aqui com um sentido amargo de solidão. O Servo revive o papel de perseguido de Jr 15,17 e Jó 19,13-19. Em hebraico, hadel, “abandonado”, pode significar “gordura”. Nesse contexto, “obtuso” e “tolo”. O termo “tapávamos o rosto” (v. 3) alude à cena de um leproso (Lv 13,45-46). Nos v. 4-6, alguns israelitas se arrependem de terem perseguido tal Servo (ebed Adonai). O Servo carrega a enfermidade de outros: aqui, vemos a prefiguração de Cristo, que carrega sobre sua cruz o pecado da humanidade, que o condenou por maldade e ignorância (nem sempre nessa ordem!). “O Servo não está libertando outros de sua reponsabilidade de arrependimento, mas os está enchendo com seu próprio espírito de tristeza e esperança”, afirma Carroll Stuhlmueller no Novo comentário bíblico São Jerônimo, AT (Paulus). O v. 4 parece atribuir a Deus essa situação, quando, na verdade, ela é fruto ou consequência de uma causa: o pecado. Vale ressaltar, teologicamente, que o sofrimento não é vontade do Criador, mas idiossincrasia de toda criatura, limitada, frágil e mortal.
O v. 5 denuncia que suas feridas são fruto de “nossos pecados”, assumindo a responsabilidade do pecado social, que recai sempre sobre os frágeis, mas, no caso de Israel exílico, também sobre os governantes e nobres. “Ele foi ferido”: repudiado ou profanado (43,28). “Pecados” pode ser lido como “iniquidades”, como rebeldia contra o cuidado pessoal de Deus. O v. 7 é o ponto alto dessas perversões: o Servo é levado como um cordeiro ao matadouro; atormentado pela angústia (v. 8); eliminado do mundo dos vivos; golpeado até morrer (v. 9); sepultado entre ímpios, entre ricos; não praticou o mal nem havia maldades em suas palavras; o Senhor quis macerá-lo com sofrimentos. Apesar de tudo isso, a vitória, embora jamais desfrutada pelo Servo durante sua vida, é proclamada.
No horizonte cristológico, esse Servo do Antigo Testamento e Jesus cumprem a vontade de Deus. Por isso, o Novo Testamento entende, em sua narratologia, sobretudo em Marcos e João, que Jesus é o cordeiro messiânico que tira o pecado, identificando-se, inclusive, com o Servo de Adonai, manso e humilde. “Por esta vida de sofrimento, alcançará luz e uma ciência perfeita. Meu Servo, o justo, fará justos inúmeros homens, carregando sobre si as suas culpas” (v. 11). Em seguida, Deus é novamente o orador. Embora a inocência do Servo o distinga de todo o Israel, ele está sempre de volta para a coletividade.
2. II leitura (Hb 4,14-16; 5,7-9)
O autor de Hebreus tem como temática pendular, do início ao fim de sua homilia retórica, o sacerdócio de Cristo, no sacrifício terrestre e espiritual, pleno, irrepetível e eterno, consumador da salvação. A razão dessa passagem na Sexta-feira Santa fundamenta duas questões: a primeira, sobre o sacerdócio de Cristo, plenificado na cruz, ele que é, ao mesmo tempo, sacerdote, altar e vítima e do qual se diz, no v. 9: “na consumação de sua vida, tornou-se causa de salvação eterna para todos os que lhe obedecem”; a segunda questão está ligada ao servo que se oferece a si mesmo como vítima sem par, que tira o pecado do mundo, como um cordeiro (Jo 1,29).
O v. 14 diz que “temos um sacerdote iminente que entrou no céu...”. Jesus Cristo, que, vivendo sua vida terrena, se entrega à humanidade como vítima sobre o altar, é aquele que entra no santuário do Senhor. Esse é o sentido do sacerdote, que cumpre o estreitamento da relação entre Deus e a humanidade por ele criada. O sacerdote é ponte entre os seres humanos e Deus. O autor da afirmativa faz uma exortação: “Por isso, permaneçamos firmes na fé que professamos”. Essa profissão de fé acerca da ressurreição do Senhor consiste em uma condição de possibilidade de sua entrada triunfal no céu. Por isso, cabe-nos permanecer firmes. Cristo se compadece de nossa fraqueza (v. 15), pois ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado. Não nasceu em pecado nem foi enredado nele, embora tenha sido tentado em sua vida terrena. O v. 16 nos convida a nos aproximarmos do trono da graça da salvação de Deus para alcançarmos misericórdia.
Hebreus 5,7-9 destaca a realidade final de Jesus Cristo, que sofreu, dirigindo preces, súplicas e lágrimas. O sentido que se pode ter de sua vida terrestre (v. 7) tem a ver com a humanidade do sacerdote. Para representar os seres humanos, deve ser um deles; para ter compaixão das faltas e pecados, deve tê-las compartilhado (Hb 2,17-18). Essa humanidade de carne (Rm 7,5) se vê em Jesus, através de toda sua vida terrena, por sua fraqueza, sobretudo sua agonia no Gólgota. Cristo se difere do sacerdote aaronita (descendente de Aarão) no fato de não ter pecado (Hb 4,15).
3. Evangelho (Jo 18,1-19,42)
O relato da paixão de Jesus segundo João é o mais dramático de todos e o mais rico em detalhes, no qual, aliás, Jesus tem palavras contundentes nas cenas, demonstrando ao leitor que ele tem consciência de tudo o que está se passando. Esse fato dá-nos a entender que ele é quem conduz sua vida. Jesus não é objeto de um malfeito das pessoas, mas entrega sua vida, do começo ao fim do Evangelho, como um cordeiro que vai redimir o mundo da mancha do pecado (Jo 1,29). Como é um relato longo, em dois grandes capítulos, podemos perceber que a narrativa joanina está esboçada em cenas separadas: 18,1-11; 18,12-27; 18,28-19,16a; 19,16b-30; 19,31-42. Há, em João, elementos da agonia sinótica de Jesus no jardim. Nesse texto, diferente dos sinóticos, Jesus não passa pela agonia do Getsêmani, como em Marcos (14,32-42), por exemplo.
Observa-se, em João, que não há também um processo formal diante de um órgão judaico. O processo em Jo 11,45-53 decidiu a questão do destino de Jesus. Uma audiência perante Anás aparece no lugar de um julgamento judaico formal. As acusações levantadas pelo sumo sacerdote parecem impingir a Jesus a pecha de ser um falso profeta, ou um enganador (Dt 18,28). O julgamento diante de Pilatos tem como elemento os perigos políticos da popularidade de Jesus, que punha em xeque os interesses dos poderosos – esse motivo é indicado já em Jo 11,45-53 para procurar a morte de Jesus.
Diante de Pilatos, em seu julgamento, Jesus age como ao longo de todo o Evangelho: mostra que Pilatos é quem realmente está sendo julgado. Com suprema ironia, Pilatos força o sinédrio a mostrar sua própria deslealdade para com Deus ao declarar César seu rei (Jo 19,14-15). Nós, os leitores do Evangelho, já estamos conscientes de que a morte de Jesus não é uma ignomínia, uma humilhação ou derrocada, e sim um retorno glorioso ao Pai. Por isso, a morte de Jesus em João não pode ser entendida como nos Evangelhos sinóticos, e sim como um modo de ele glorificar o Pai que está no céu. A hora de Jesus chegou: na cruz ele passa desta vida para o Pai. Sua ação culmina por meio do Espírito Santo (Jo 19,30), que é derramado sobre a Igreja reunida e lhe confere a missão de iniciar, mesmo em meio ao medo, uma nova missão: ser comunidade de fé e amor num mundo dilacerado pela incredulidade e pelo ódio.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Convidar a comunidade a vivenciar o silêncio esperançoso deste dia santo de jejum e abstinência de carne, celebrando a Paixão de Jesus, que se solidariza com os sofredores deste mundo, nos redime do pecado e nos salva para a vida eterna. Perceber que todo o processo contra Jesus está alicerçado no mistério da iniquidade humana, da insensatez que levou seus algozes a condená-lo e matá-lo. O mal parece vencer não porque é mais forte que Deus, mas porque o Pai não proíbe a liberdade daqueles que não aceitam o plano salvífico de seu Filho. Deus respeita a liberdade humana. Por fim, vivenciar o silêncio alicerçado na esperança escatológica que vê no fim o começo, e na morte os raios luminosos da ressurreição.
Junior Vasconcelos do Amaral*
*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seu doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor do Departamento de Teologia e do Programa de Pós-Graduação “Mestrado Profissional em Teologia Prática” na PUC-Minas, em Belo Horizonte, e desenvolve pesquisas sobre análise narrativa, sobre Bíblia e psicanálise e sobre teologia pastoral. E-mail: [email protected]