Publicado em maio-junho de 2025 - ano 66 - número 363 - pp. 55-58
19 de junho – SOLENIDADE DO CORPO E SANGUE DE CRISTO
Por Pe. Francisco Cornélio*
Pão repartido e vida doada: prova de amor
I. Introdução geral
A solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, que conclui o ciclo das grandes celebrações pós-pascais, surgiu na Bélgica, com o objetivo de reafirmar a presença real de Jesus na Eucaristia e promover a devoção ao Santíssimo Sacramento. Foi instituída oficialmente, no século XIII, pelo papa Urbano IV e rapidamente se popularizou em todo o mundo. Por muito tempo, foi celebrada com uma finalidade mais devocional e triunfalista, cujo ápice era a solene procissão. Com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, foi aprimorada teologicamente. Nesta festa, a Igreja reafirma e proclama solenemente sua fé na Eucaristia como memorial da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, como alimento que sustenta e conduz à vida eterna, e como presença permanente do Senhor junto a seu povo. Também recorda o compromisso dos cristãos com as pessoas mais necessitadas, sobretudo as que ainda não têm acesso ao pão de cada dia.
Tudo isso é contemplado pelas leituras. A primeira relata a oferta de Melquisedec a Abraão, vista como prefiguração da Eucaristia, desde as origens cristãs. Na segunda, Paulo narra a própria instituição da Eucaristia, recordando as palavras do Senhor na última ceia, com o anúncio da oferta total de sua vida para a salvação de todos, como consequência de um amor ilimitado. O Evangelho traz o relato da multiplicação dos pães e peixes, lido como antecipação do banquete eucarístico e convite ao compromisso de comunhão e solidariedade que a participação nele implica.
II. Comentários dos textos bíblicos
1. I leitura (Gn 14,18-20)
Tirado do livro do Gênesis, o texto pertence à seção narrativa conhecida como “ciclo de Abraão” (Gn 11,27-25,18). Como sugere o título, essa parte da obra relata a trajetória do primeiro grande patriarca hebreu, desde seu nascimento até sua morte. O capítulo 14 surpreende pela peculiaridade, pois retrata Abraão como um guerreiro, uma característica pouca recordada da sua identidade. Segundo o relato, ele chega a participar de uma guerra, envolvendo vários reis, para resgatar seu sobrinho Ló, que havia sido capturado durante o conflito (14,12). Com o auxílio de seus servos e familiares, derrotou quatro reis e seus respectivos exércitos, ao mesmo tempo que conseguiu libertar seu parente (14,14-16). Depois disso, alguns dos reis que tinham sido beneficiados pela vitória de Abraão foram ao seu encontro para prestar-lhe homenagens, em agradecimento. É nesse contexto que se insere a leitura.
O misterioso personagem Melquisedec, apresentado como rei de Salém – futura Jerusalém – e sacerdote do Deus altíssimo, oferece pão e vinho a Abraão, quando este retornava da batalha, como homenagem e agradecimento por sua vitória (v. 18). Homenagear heróis de guerra com oferendas e sacrifícios era prática comum no mundo antigo. Contudo, a oferta de Melquisedec chama a atenção pela singularidade, pois pão e vinho são símbolos da vida cotidiana, com suas reais necessidades para a sobrevivência, ao mesmo tempo que se revestem de sacralidade. Desse modo, a oferta de Melquisedec significa também uma atitude de solidariedade com Abraão e seus servos, que, certamente, se encontravam exaustos pela viagem e pela luta. Além de oferecer pão e vinho, ele abençoa Abraão em nome do Deus altíssimo, a quem reconhece como criador de todas as coisas e louva como verdadeiro responsável pela vitória (v. 19-20a). Em sinal de gratidão pela oferta, Abraão entrega o dízimo de tudo a Melquisedec (v. 20b), um gesto recordado pelo autor para justificar a prática dos dízimos em Israel.
Esse é o único episódio protagonizado por Melquisedec, o primeiro personagem bíblico a receber o título de sacerdote. Mais tarde, ele será recordado como figura messiânica em Israel, como atesta o salmo desta liturgia (Sl 109,4), e prefiguração de Cristo e do seu eterno sacerdócio (Hb 5-7). Desde as origens do cristianismo, sua oferta de pão e vinho a Abraão é lida como imagem do sacrifício de Jesus Cristo, ao doar sua vida, fazendo-se comida e bebida para a salvação do mundo.
2. II leitura (1Cor 11,23-26)
Apesar da tonalidade polêmica, devido aos vários problemas internos da comunidade destinatária, que Paulo buscou corrigir por meio da carta – como as rivalidades, divisões e vaidades –, 1 Coríntios conserva alguns dos ensinamentos mais relevantes das origens cristãs. O trecho lido na liturgia é claro exemplo disso. Trata-se do primeiro relato escrito da instituição da Eucaristia do Novo Testamento. Acredita-se, até, que essa passagem serviu de base para as narrativas da última ceia dos Evangelhos sinóticos, sobretudo o de Lucas, cuja afinidade com ela é bastante evidente (Lc 22,14-20). Está inserida precisamente na seção que trata do ordenamento das reuniões litúrgicas da comunidade (1Cor 11,2-14,40).
Nesse contexto, Paulo criticou duramente o comportamento dos coríntios durante o encontro fraterno da fração do pão (11,17-34), convidando-os a viver o verdadeiro sentido da Eucaristia: memorial da última ceia de Jesus e vínculo de comunhão com ele e de unidade entre os irmãos. Com efeito, nas primeiras comunidades, celebrava-se a Eucaristia durante uma ceia comum. A comida e a bebida eram levadas pelos próprios participantes, de acordo com as possibilidades, como sinal de unidade e partilha. Em Corinto, por causa das divisões, a celebração estava comprometida. Quem chegava primeiro não esperava pelos outros; os mais pobres, que chegavam por último por causa do trabalho, ficavam sem comida. Diante disso, Paulo recordou as palavras do próprio Jesus na última ceia (v. 24-25), a fim de sensibilizar a comunidade para o sentido da Eucaristia e o compromisso que dela emana.
O pão e o vinho oferecidos e repartidos são sinais de uma vida inteira doada por amor. Logo, “fazer em memória” de Jesus não significa apenas repetir ritualmente o gesto, mas implica assimilar o mesmo estilo de vida, com opções tão comprometedoras quanto as dele. Participar da Eucaristia, portanto, é assumir na vida o projeto de Jesus e comprometer-se com sua realização. Por isso, nas comunidades onde ela é celebrada, deve reinar o amor. E o amor gera partilha.
3. Evangelho (Lc 9,11b-17)
A “multiplicação dos pães” parece ter sido o milagre de Jesus mais apreciado pelas primeiras comunidades cristãs. Atesta isso o fato de ser o único milagre relatado pelos quatro Evangelhos, com seis relatos no total, uma vez que, em Mateus e em Marcos, é contado duas vezes (Mt 14,13-21; 15,29-39; Mc 6,35-44; 8,1-9; Lc 9,11-17; Jo 6,5-13). Apesar de tratar-se do mesmo acontecimento, cada evangelista narra-o à sua própria maneira, introduzindo elementos próprios, de acordo com suas intenções teológicas. Nesta liturgia, lemos a versão de Lucas, que está inserida na fase conclusiva da missão de Jesus na Galileia, já muito próximo de iniciar seu longo caminho para Jerusalém (9,51). A cena está localizada precisamente entre a missão dos doze (9,1-6) e a confissão de Pedro (9,18-27), um dado que atesta sua importância.
Os apóstolos voltaram entusiasmados da missão e logo contaram a Jesus tudo o que tinham feito. Diante disso, Jesus tomou-os consigo, retirando-se um pouco para um lugar deserto, provavelmente para proporcionar-lhes um tempo de descanso e ouvir suas impressões com maior atenção (v. 10). As multidões, porém, descobriram o plano e foram ao encontro deles (v. 11a). O trecho selecionado pela liturgia começa exatamente afirmando que Jesus acolheu as multidões (11b), um detalhe exclusivo do relato de Lucas. Essa acolhida ressalta a misericórdia de Jesus, um dos temas mais relevantes de toda a obra lucana, evidenciando o cuidado de Deus por todas as pessoas, especialmente pelas mais necessitadas, o que é confirmado pela sequência do versículo: “falava-lhes sobre o Reino de Deus e curava todos os que precisavam”. As atitudes de acolher, anunciar o Reino e curar constituem verdadeira síntese da vida e missão de Jesus. Tudo isso é demonstração de um amor completo, que cuida e humaniza.
Com o final do dia se aproximando, os discípulos demonstram preocupação com a situação e dão uma sugestão bastante razoável para as circunstâncias: mandar as multidões embora (v. 12). Contudo, Jesus não aceita tal sugestão e os envolve no compromisso de dar de comer, de serem eles mesmos agentes de partilha (v. 13a), apesar de terem tão pouco: apenas cinco pães e dois peixes (v. 13b). De fato, o que tinham era quase nada para uma multidão de aproximadamente cinco mil pessoas. Jesus, porém, sempre acredita na força dos pequenos e na abundância do que parece pouco. Por isso, dá mais um passo, ordenando que os discípulos mandem o povo se sentar, organizados em pequenos grupos (v. 14).
Depois que tudo estava organizado, Jesus cumpriu uma série de gestos com os cinco pães e os dois peixes: tomou-os, quer dizer, recebeu-os; olhou para o céu, certamente em ação de graças ao Pai pelos dons; partiu-os e os deu aos discípulos, para distribuí-los à multidão (v. 16). Tais gestos antecipam o que foi feito também na última ceia, embora compartilhada apenas com os discípulos. É importante notar que, apesar de indiferentes no início, os discípulos participaram de todos os momentos do agir de Jesus até aqui. Isso revela quanto Jesus quis envolvê-los, o que indica o comprometimento dos seus seguidores, em todos os tempos, com suas causas, como o combate à fome, por exemplo. De fato, o resultado do conjunto de atitudes de Jesus e seus discípulos foi exatamente a superação da fome: “Todos comeram e ficaram satisfeitos” (17a). E houve mais: “ainda foram recolhidos doze cestos, que sobraram” (17b), tamanha a abundância do conjunto de atitudes de Jesus, suficientes para matar a fome de Israel e do mundo.
Como se vê, mais do que um milagre, o relato da multiplicação dos pães é verdadeiro ensinamento de Jesus. É lição para os cristãos de todos os tempos. Ele nutriu materialmente a multidão faminta, que antes tinha sido alimentada pelo pão da Palavra, pois o início do texto diz que lhes foi anunciado o Reino de Deus. Isso quer dizer que as duas fomes – de Palavra e de pão – devem ser recordadas e saciadas sempre, sobretudo nas comunidades que celebram a Eucaristia, para que não apenas repitam gestos e ritos, mas realmente façam comunhão com ele.
III. Pistas para reflexão
A liturgia da Palavra, sobretudo o Evangelho, ensina-nos que não tem sentido participar da refeição fraterna da comunidade sem a disposição de viver como irmãos e sem se comprometer com o bem de todos. Em todas as leituras, a partilha do pão é fruto de atitudes de solidariedade e compaixão. Por isso, é necessário explicá-las bem, recordando o contexto da comunidade de Corinto, que levou Paulo a fazer memória da última ceia de Jesus. Compreendemos o sentido da Eucaristia e fazemos verdadeira comunhão quando assimilamos a vida de Jesus na nossa, vivendo à sua maneira. A celebração constitui um momento privilegiado para recordar a unidade entre as duas mesas: a da Palavra e a do pão. Jesus é a Palavra que se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14). Fez da sua vida um dom, entregando-se totalmente por amor. Por isso, é importante que nossa fé na Eucaristia se traduza também em gestos concretos de amor e doação.
Pe. Francisco Cornélio*
*é presbítero da diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia – Insaf (Recife) e bacharel em Teologia pela Universidade Católica de Salvador-BA. É professor de Teologia no Centro Universitário UniCatólica do RN. [email protected]