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Publicado em maio-junho de 2025 - ano 66 - número 363 - pp. 12-17

CONCÍLIO DE NICEIA: A DIVINDADE DE JESUS À LUZ DO DISCIPULADO DE JESUS DE NAZARÉ

Por Pe. Leonardo Lucian Dall’Osto*

O Concílio de Niceia, celebrado no ano de 325 d.C., foi um divisor de águas na cristologia. A definição de fé realizada no concílio trouxe clareza teológica para a comunidade cristã em meio a disputas religiosas que ameaçavam não apenas a fé, mas também a unidade política do Império Romano. Passados 1.700 anos, a definição nicena ainda tem um papel importante para a comunidade cristã, mas não deve ser interpretada fora do discipulado de Jesus de Nazaré.

 

Introdução

Olhar para o caminhar histórico da Igreja é olhar para a história da formação da doutrina cristã. Existem muitas formas de abordar o crescimento do movimento dos seguidores do Nazareno, posteriormente chamados de cristãos, mas é imprescindível que se lance um olhar acurado para o estabelecimento gradual, e ainda em andamento, da doutrina cristã, especialmente naquilo que diz respeito ao seu núcleo principal, o dogma. Passados tantos séculos, os cristãos correm o risco de esquecer, ou de nem sequer ter em mente, que a fé em Jesus e suas consequências litúrgicas, éticas e institucionais devem ser sempre entendidas e interpretadas no interior da história, formuladas por vezes a partir de culturas e de cosmovisões já não existentes.

Na história da Igreja, os concílios são momentos de estabelecimento de consenso em relação a questões relativas à fé, à vida sacramental e à disciplina da comunidade cristã. Analisados dentro de seus contextos históricos, e nunca fora destes, cada um dos 21 concílios ecumênicos lançou os fundamentos doutrinais para que se fixasse a doutrina da Igreja, sua organização hierárquica e sua vida celebrativo-sacramental.

Um concílio (concilium) nada mais é do que uma reunião. Essas reuniões foram sendo aprimoradas ao longo dos vinte séculos da fé cristã, porém sempre foram a maneira que a Igreja usou para discernir a vontade de Deus com base no estabelecimento do consenso dos padres conciliares. O último concílio ecumênico, o Vaticano II (1962-1965), repetiu o gesto tradicional de entronizar o Evangelho no centro da aula conciliar, recordando aos bispos, e a todos os partícipes da assembleia, que Cristo deve presidir os trabalhos e as discussões.

Nesse sentido, a busca de consenso é vista pelos cristãos como um duplo exercício: o exercício do discernimento em relação à fé e ao modo como os cristãos devem viver e se organizar, mas também um exercício político, para que se estabeleça o acordo entre os cristãos todos, representados por seus pastores e teólogos. Um concílio sintetiza esses dois movimentos. Ter fé e crer que o Espírito de Deus pervade ambos os movimentos.

1. A crise ariana

Os primeiros séculos da era cristã foram agitados por perseguições externas à comunidade, mas também por discussões internas em relação ao credo cristão como tal. Em 313 d.C., com o Edito de Milão, promulgado pelo imperador Constantino, o Grande, o cristianismo recebeu não apenas uma equiparação ao culto pagão, mas também foi ressarcido pelo Império Romano em reparação aos anos de perseguição. Constantino (como também Galério, anteriormente) percebeu que não era uma boa política continuar a perseguir uma religião que crescia e se fortificava rapidamente no interior do império. Estabelecer a paz com os cristãos significava conservar a unidade política imperial. Constantino foi um imperador estrategista.

No interior da comunidade cristã, as discussões religiosas eram frequentes, mesmo durante o tempo de ferrenha perseguição aos cristãos. Vários eram os elementos em discussão, pois a doutrina como tal estava em pleno processo de desenvolvimento. Entre os cristãos do Ocidente e do Oriente, as diferenças culturais foram, com o passar do tempo, transformando-se em abismos profundos, e ainda hoje existem dissensões irresolutas.

Duas questões que estiveram no centro das discussões dos cristãos nos primeiros séculos, constituindo não só a motivação de grande parte dos escritos dos teólogos, mas também o conteúdo discutido nos primeiros concílios, foram as discussões trinitárias e cristológicas. A gestação das fórmulas trinitárias e cristológicas foi marcada por ásperas discussões, perseguições e disputas teológicas que se transformaram em sérios problemas políticos.

No século IV, pouco tempo após Constantino conceder plena cidadania aos cristãos dentro do Império Romano, uma querela em relação à pessoa de Jesus começa a ganhar grandes proporções. A Igreja já havia condenado os monarquianos, que, para salvaguardar a unidade absoluta em Deus, acabavam por anular a Trindade. No entanto, nesse período, era bastante difusa a tendência a subordinar, de alguma maneira, Jesus, o Filho, ao Pai, sem, no entanto, negar-lhe totalmente a divindade (Bihlmeyer; Tuechle, 1989, p. 297).

Nesse contexto teológico, entra em cena um novo personagem que iria estabelecer as bases de uma discussão doutrinal que dominou quase todo o século IV. Seu nome era Ário, um padre da Igreja de Alexandria, no Egito. Ele, em suas pregações, poemas e cânticos, defendia a tese segundo a qual Deus não pode comunicar seu ser, seja por criação ou por geração, e, portanto, Deus não pode gerar um filho em sentido estrito. Tudo que se encontra fora de Deus foi por ele criado do nada. Contudo, para poder criar o mundo e tudo o que nele existe, Deus criou primeiramente um ser intermediário, que foi o instrumental para a criação. Esse ser é o Logos, que, mesmo sendo anterior a todas as demais criaturas, não é eterno. Ao encarnar-se, esse Logos tornou-se a alma de Jesus Cristo, que então passa a ser adotado por Deus, o Pai. Jesus só seria “deus” em relação às demais criaturas, mas não é Deus como o Pai. Em simples palavras: Jesus não é igual a Deus (Frangiotti, 2004, p. 86-87). O que se sabe, porém, é que Ário não agiu por desonestidade teológica, mas por preocupação em manter a todo custo o rígido monoteísmo bíblico.

A doutrina de Ário foi duramente combatida por Alexandre, bispo de Alexandria, que convocou um sínodo, provavelmente no ano de 319 d.C., no qual as ideias arianas foram condenadas. Após a condenação de suas ideias, Ário foi expulso de Alexandria e se refugiou em Cesareia, na Palestina. Tendo amigos no episcopado local, foi readmitido em suas funções sacerdotais por um sínodo reunido em Cesareia. Alexandre recusou-se a recebê-lo de volta, mas as ideias arianas já eram conhecidas e foram adotadas por parte da população e do clero. A questão teológica desceu do espaço do debate teológico acadêmico e tomou as ruas: era agora uma questão popular.

2. A convocação do Concílio de Niceia

Tomando consciência da extensão do problema, o imperador Constantino resolveu intervir na querela teológica. Primeiramente, enviou o bispo de Córdova, Ósio – na época, seu conselheiro eclesiástico –, a Alexandria para as tratativas de reconciliação entre Ário e Alexandre, com vistas à unidade religiosa da Igreja e do império. A missão, porém, falhou. Diante disso, resolveu, então, convocar um concílio para todo o império, a ser realizado no verão de 325 d.C., na cidade de Niceia, atual Iznik, na Turquia. O concílio contou com a participação de mais de 300 bispos, ressalvando-se que apenas sete participantes vinham do Ocidente, dentre os quais dois presbíteros (Vito e Vicente), que representaram o papa Silvestre, à época em idade avançada (Bihlmeyer; Tuechle, 1989, p. 299).

Ainda que muitos bispos tivessem sido influenciados pelas ideias de Ário, a maioria dos presentes no concílio não eram arianos. De certa maneira, também não pensavam como Alexandre, bispo de Alexandria, que advogava a igualdade total entre Jesus e o Pai. Influenciados por outro pensador, Orígenes, não aceitavam que Jesus fosse considerado apenas uma criatura, mas também eram relutantes em afirmar a igualdade entre Pai e Filho. Para a maioria dos bispos, Jesus era inferior ao Pai em glória, mas “deus” em relação à criação (Shindler, 2012, p. 135). As discussões foram por vezes tão acaloradas, que o próprio Constantino interveio, pedindo moderação.

O Concílio de Niceia, em 19 de junho de 325 d.C., formulou um credo cujos termos foram confessados, apesar de não estarem suficientemente definidos. A fórmula nicena usou, a pedido do próprio imperador, o termo grego ὁµοούσιος (consubstancial), para acentuar a igualdade substancial entre o Pai e o Filho. O concílio afirma que o Filho de Deus é da mesma “substância do Pai”, “Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não feito, da mesma substância do Pai” (DH 125). Os padres conciliares ainda acrescentaram algo que se tornaria uma prática normal nos concílios subsequentes, os anátemas, excomungando todos aqueles que desafiassem a doutrina ali fixada.

A doutrina de Ário parecia ter sido debelada definitivamente, mas não foi o que ocorreu. O arianismo foi sendo reformulado, e muitos bispos que haviam participado do concílio acabaram retirando suas aprovações do credo estabelecido em Niceia. Longo jogo de interesses e de discussões teológicas se seguiu ao concílio, tanto que apenas em 381 d.C., com a celebração do Concílio de Constantinopla, o arianismo foi definitivamente proscrito e a fé nicena restabelecida em todo o império, acrescentando-se o reconhecimento da divindade do Espírito Santo na formulação do dogma trinitário. O arianismo sobreviverá até fins do século VII entre os povos que estavam invadindo o Império Romano, os chamados “bárbaros”.

3. A fé em Jesus hoje

Passados 1.700 anos da celebração do Concílio de Niceia, entende-se que o dogma ali definido permanece patrimônio inegociável da fé da Igreja. Também está claro, porém, que a fidelidade à fé professada em Niceia significa ter em conta que se faz constantemente necessário interpretar o dogma dentro de seu contexto, nunca esquecendo que toda verdade de fé foi e é formulada dentro de um período histórico definido, com base numa cultura e numa linguagem também historicamente localizadas. No caso de Niceia, bastaria pensar no vocábulo consubstancial, acrescentado no credo por pedido expresso de Constantino. Essa palavra, que gerou posteriormente muitas discussões, não veio do mundo bíblico – muito mais ligado a uma linguagem mítico-narrativa –, mas do mundo grego, acostumado com a busca de definições filosóficas.

Por muito tempo, mas de modo particular por influência da escolástica, que estava assentada sobre uma linguagem essencialista, a Igreja pensou e refletiu sobre a fé quase transformando em “dogmas” a própria linguagem empregada nas fórmulas conciliares. Ainda hoje se tem pouca clareza de como resolver o dilema: a fé, em seu conteúdo, é perene, mas a linguagem é cultural e historicamente localizada. Nesse sentido, a melhor interpretação (hermenêutica) para recuperar as crenças e doutrinas mais fiéis ao momento em que foram definidas seria, segundo o teólogo David Tracy, mediante uma consciência histórica, não clássica (Tracy, 2014, p. 70). Dizendo de forma mais simples: não basta conhecer as formulações doutrinais antigas para que se tenha a clareza doutrinal (ortodoxia) em relação a algum enunciado de fé, mas é preciso que se mergulhe no contexto em que a questão foi discutida e assim se busque perceber como aquilo que outrora foi definido impacta ainda hoje a vida da comunidade cristã.

Certamente o credo de Niceia é um marco importante na doutrina cristológica, dando maior clareza ao que significa, de fato, afirmar que Jesus é Deus. Essa afirmação, no entanto, pode ser vazia ou simplesmente abstrata. Declarar a fé em Jesus como Filho de Deus, consubstancial ao Pai, pode ser apenas uma abstração, se não for preenchida pelo seguimento concreto do Nazareno. O papa Francisco, por diversas vezes, já alertou sobre o perigo de um moderno “gnosticismo”, em que a fé é apenas um amontoado de doutrinas e elucubrações, impedindo as pessoas de tocarem a carne de Cristo sofredor. Essa fé sem concretude histórica é uma ideologia muito perigosa (GE 37).

O biblista José Antonio Pagola sustenta que é essencial aos cristãos a afirmação de Jesus como Filho de Deus, mas não se deve reduzir seu ser a uma sublime abstração. Segundo o autor, não se pode alimentar a fé apenas de doutrina; é imprescindível crer num Cristo com carne. Todos correm o risco de converter Jesus em um objeto de culto, atraente e encantador à sensibilidade religiosa humana, mas sem os traços históricos próprios do Galileu do século I (Pagola, 2013, p. 566). É fundamental que não se perca de vista que o Verbo se fez carne em Jesus de Nazaré e que, ao mesmo tempo, somente no Nazareno histórico podemos encontrar o reflexo do verdadeiro rosto de Deus.

Conclusão

Por muito tempo, a cristologia ocidental estabeleceu como percurso único aquilo que se chama de “cristologia dedutiva”, ou seja, partir do dogma para poder afirmar com clareza quem é Jesus de Nazaré. Isso deu segurança aos teólogos e à Igreja como tal. Essa cristologia está bem presente no Evangelho de João, que, já no seu prólogo, declara que o Verbo se fez carne (Jo 1,14). Esse é um método teológico, mas não o único. Os Evangelhos sinóticos, por sua vez, possuem uma “cristologia indutiva”, em que os discípulos, a partir do encontro com o Nazareno, são chamados a responder quem ele é (Mc 8,27-30; Lc 9,18-21; Mt 16,13-20). Historicamente, esse é o único percurso possível para que se possa reconhecer em Jesus o Filho de Deus. Logo, é somente a partir do encontro com o homem de Nazaré e do estabelecimento de uma relação com ele que o discípulo e a discípula podem professar a fé. Sua humanidade perfeita (perfectum: feito por inteiro) permitiu às pessoas afirmar que Jesus é Deus. Os sinais por ele realizados, sua entrega absoluta na cruz e sua ressurreição foram os atestados históricos de sua identidade mais profunda.

As pessoas religiosas sempre foram acostumadas a adorar deuses distantes, inacessíveis, e transformá-los em objetos de culto. Esse raciocínio religioso manteve o sagrado e o profano abissalmente separados. Crer, de fato, que Jesus é Deus feito carne muda completamente essa visão religiosa. No Nazareno, que foi crucificado e, segundo seus seguidores, ressuscitou, Deus inundou a história e rompeu a barreira que dividia o profano e o sagrado. Sagrado e profano já não existem, o humano é lugar de Deus.

Talvez o significado de Niceia para os tempos atuais seja o constante desafio de contemplar um Deus que não admite ficar distante da realidade histórica. Jesus é Deus na história e feito história. Na sua ressurreição já teve início a ressurreição de toda a história. Para a fé cristã, o rosto de Jesus de Nazaré é o único capaz de manifestar quem é Deus, pois Deus é igual a Jesus.

Referências bibliográficas

BIHLMEYER, K.; TUECHLE, H. Storia della Chiesa: l’antichità cristiana. Brescia: Morcelliana, 1989.

FRANCISCO, Papa. Gaudete et Exsultate: Exortação Apostólica sobre o chamado à santidade no mundo atual (GE). Brasília, DF: CNBB, 2018.

FRANGIOTTI, R. História das heresias: conflitos ideológicos dentro do cristianismo. São Paulo: Paulus, 2004.

KAUFMANN, T.; KOTTJE, R. (org.). História ecumênica da Igreja: dos primórdios até a Idade Média. São Paulo: Paulus: Loyola; São Leopoldo: Sinodal, 2012.

PAGOLA, J. A. Jesus: uma aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2013.

SHINDLER, Alfred. A evolução teológica é dogmática. In: KAUFMANN, T; KOTJE, R.(org.) História ecumênica da Igreja: dos primórdios até a Idade Média.  São Paulo: Paulus: Loyola; São Leopoldo: Sinodal, 2012.

TRACY, D. Uma hermenêutica da ortodoxia. Concilium, Petrópolis, v. 2, n. 355, p. 66-77, 2014.

Pe. Leonardo Lucian Dall’Osto*

*é presbítero pertencente ao clero da diocese de Caxias do Sul-RS. Graduado em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), graduado e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), doutorando em Teologia pela Pontificia Università Gregoriana de Roma. Atualmente atua na paróquia Santa Rita de Cássia, na periferia de Caxias do Sul. E-mail: [email protected]