Publicado em março-abril de 2025 - ano 66 - número 362 - pp. 34-36
2 de março – 8º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Por Junior Vasconcelos do Amaral*
Toda árvore é reconhecida pelos seus frutos
“A ressurreição é o poderoso ‘Sim’ de Deus, o seu ‘Amém’ pronunciado sobre a vida do seu Filho, Jesus.” Com essas palavras inspiradoras do frei Raniero Cantalemessa, podemos traduzir a grandiosa força e experiência que os vindouros tempos de Quaresma e Páscoa nos possibilitarão vivenciar: mergulharmos na experiência da conversão e no epicentro da nossa fé, no mysterium paschale de Cristo. No Evangelho, Jesus ensina seus discípulos e a nós, hoje, a viver com sabedoria em todos os instantes da vida, pois nossas atitudes são como frutos de uma árvore, à qual somos comparados. Na primeira leitura, o sábio de Israel, autor do Eclesiástico, recomenda que nossa língua sirva para edificar e construir, e que não sejamos insensatos ao falar, pois a boca fala o que tem o coração. Na segunda leitura, o apóstolo Paulo lembra que a ressurreição de Cristo é o evento máximo da história da humanidade: é por Cristo e em Cristo que vivemos nossa vida, nele morremos e nele também ressuscitamos.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS 1. I leitura (Eclo 27,5-8)O livro sapiencial do Eclesiástico, que não está contido nas edições bíblicas protestantes/evangélicas, mas está presente nas bíblias de edições católicas, é considerado um escrito deuterocanônico, ou seja, canonizado posteriormente, contendo inúmeros ensinamentos para o ser humano que se encontra aberto ao aprendizado. Este livro, da mesma forma que outros, conhecidos como sapienciais, oferece práticas e reflexões ao ser humano para o bem viver. Na passagem deste domingo, o sábio tem como tema a palavra que sai da boca, a conversação. É pela palavra que uma pessoa revela o que traz no coração. As palavras saem do interior da consciência, mas, em alguns momentos, também do próprio inconsciente, como bem compreendeu a ciência conhecida como psicanálise.
O primeiro versículo compara o falar do ser humano com a ação de peneirar. Quando se sacode a peneira, fica nela apenas o refugo. Assim, quando alguém abre a boca, muitas palavras saem; algumas nem sempre são boas, e outras podem edificar. O falar de uma pessoa é provado como o vaso de barro do oleiro, que ao forno é levado. No caso do ser humano, é sobretudo nos momentos difíceis que pode dizer coisas que o autodestruam ou rompam suas relações, gerando trincas e sofrimentos, como um vaso que não foi bem cozido. O v. 7 se refere ao fruto que revela como a árvore foi cultivada. Assim, a palavra de uma pessoa revela como ela foi educada ou não, como foi o cuidado que recebeu desde a tenra infância, as dores que traz em seu coração ou as levezas que marcam sua psique. Por fim, o v. 8 aconselha a não elogiar uma pessoa antes de ouvir suas palavras, aquilo que ela tem a oferecer de seu coração por meio de sua boca. Em outros termos, “a boca fala do que o coração está cheio”.
2. II leitura (1Cor 15,54-58)
A primeira carta aos Coríntios é uma fonte teológica acerca da ressurreição, da vida incorruptível e imortal que, em Cristo, nos será concedida pela fé após nossa vida mortal. Cristo venceu a morte e desfez seu aguilhão. A morte não tem vitória e primazia sobre aquele que crê em Cristo. É Cristo que nos concede a vitória sobre a morte. Para Paulo, esta vida mortal e a vida imortal devem ser vividas em Cristo. “Em Cristo” é a categoria, a forma, o modo como somos convidados pelo apóstolo a viver nossa vida. Trata-se de condição nova de viver na e pela fé nele, o Ressuscitado. No v. 56, Paulo acena para o aguilhão da morte, o pecado. A Lei é a força do pecado.
Para o apóstolo dos gentios, nossa Eucaristia, nossa ação de graças é ao Pai, que nos dá em Cristo sua vitória. Foi o Pai quem ressuscitou o Filho pela força restauradora do Espírito Santo, por isso toda vida cristã está alicerçada na vida trinitária de Deus. O v. 58 é uma exortação do apóstolo para que o cristão fique firme e inabalável, pois é Deus quem o sustenta. É preciso, de igual modo, empenhar-nos cada vez mais na obra do Senhor, que é a soteriologia, a salvação, pois Deus nos criou a todos para a salvação eterna. As fadigas, os desafios, as dificuldades que um cristão enfrenta não são sem sentido: estão ligadas à vida de Cristo, que por nós sofreu e morreu e também nos ressuscita por sua ressurreição. O que essa leitura tem em comum com a liturgia deste domingo é a sabedoria, mesmo que implícita, de Deus: ele nos criou para a salvação e nos ajuda a chegar ao bom termo por seu amor doado a nós em Cristo, seu amado Filho.
3. Evangelho (Lc 6,39-45)
Este Evangelho nos apresenta uma característica importante da identidade de Jesus: a sabedoria. Ser sábio, para a tradição judaica, significa saber oferecer o bom senso aos outros, e é exatamente isso que encontramos nessa narrativa lucana. Essa seção do Evangelho de Lucas está localizada após o discurso inaugural e as bem-aventuranças, no início do capítulo 6. Jesus, para Lucas, é um mestre (didaskaloi) que vai gradativamente ensinando seus discípulos. A cristologia dos Evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc) apresenta, sempre em partes distintas dos Evangelhos, Jesus ensinando, como mestre, a seus discípulos. Essa é uma matéria muito importante para a cristologia do Novo Testamento.
No fim dessa seção, encontramos uma passagem parabólica com pequenos ensinamentos, uma espécie de coletânea sapiencial: o cego que não pode guiar a outro cego (v. 39); o discípulo que não é maior que seu mestre (v. 40); o cisco do olho do outro e a trave no olho daquele que, hipocritamente, busca tirar o cisco do olho do irmão (v. 41-42); a árvore boa que só gera bons frutos (43-44); a árvore reconhecida por seus frutos (v. 43); figos que não nascem em espinheiros, nem uvas de plantas espinhosas; por fim, o homem bom, que tira coisas boas do tesouro de seu coração, e o mau, que tira coisas ruins, pois sua boca fala do que seu coração está cheio (v. 44-45). Esse último versículo está em relação estreita com a primeira leitura, que refletiu sobre o que sai da boca de uma pessoa.
O Evangelho, portanto, convida-nos a viver a sabedoria em todos os momentos da existência. Essa coletânea sapiencial evidencia, no ordinário do dia a dia, coisas possíveis e impossíveis de acontecer; e quando as que parecem impossíveis acontecem, podem trazer um malefício, como um cego que guia outro cego, sob o risco de os dois juntos caírem em alguma cilada do caminho, ou como a árvore boa que pode gerar fruto ruim ou permitir que seu fruto, depois de colhido, adoeça e se torne ruim, por já não ter poder sobre o fruto que dela foi destacado. No Evangelho de Lucas, há uma caracterização cristológica ímpar, a qual nos revela um Jesus sábio que vem para cumprir a justiça (dikaiosyne) de Deus, desde o início até o fim do Evangelho.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO Somos chamados a avaliar o efeito de nossas palavras e refletir sobre elas, sobre aquilo que sai de nossa boca: é bom? Faz bem? Ajuda o outro? O que falamos é justo e necessário? Ou estamos vivendo em comunidades tóxicas, repletas de fofocas e palavras vazias, que não constroem a sinodalidade? O apóstolo Paulo nos convida a edificar nossa fé na ressurreição, vivendo em Cristo como novas criaturas e superando as dificuldades que vivemos no tempo presente em vista da vida salva que nos aguarda. Por último, o Evangelho enriquece nosso modo de agir: somo comparados a “árvores”, plantadas temporária e transitoriamente neste mundo, no qual somos convidados a gerar vida, frutificar e alimentar as pessoas com as quais convivemos, dentro e fora de nossas comunidades de fé.Junior Vasconcelos do Amaral*
*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seu doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor do Departamento de Teologia e do Programa de Pós-Graduação “Mestrado Profissional em Teologia Prática” na PUC-Minas, em Belo Horizonte, e desenvolve pesquisas sobre análise narrativa, sobre Bíblia e psicanálise e sobre teologia pastoral. E-mail: [email protected]