Por Pe. Leonardo Lucian Dall’Osto*
*presbítero pertencente ao clero de Caxias do Sul (RS). Grudado em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Graduado é mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutorando em Teologia pela Pontifica Università Gregoriana de Roma.
Eis o artigo:
Jesus enviou seus discípulos para que anunciassem o Evangelho (Mc 16,15). Anunciar o Evangelho mais do que ensinar uma doutrina é continuar a obra salvífica de Jesus. O Mestre veio para comunicar à toda a humanidade a vida divina que brota do imenso amor de Deus. Veio para que n’Ele tivéssemos vida e vida em abundância (Jo 10,10). Constituiu seus discípulos em continuadores de sua missão, fazendo deles pescadores de homens (Lc 5,10), com a missão de retirar seus irmãos do mar, símbolo escriturístico do mal e da morte.
Portanto, em Jesus a vida se transforma qualitativamente através da nova relação que Ele estabeleceu entre Deus e a humanidade, que deve necessariamente transformar também as relações entre todos os seres humanos. Somente dentro dessa moldura relacional é que podemos entender o conceito de “salvação”. Salvação nada mais é do que a comunhão com Deus e com os irmãos, que tem suas raízes aqui na história, mas que tem uma vocação à eternidade. Essa teia de relações ultrapassa os limites da história e torna-se perene na eternidade.
Com o passar do tempo, e de modo muito particular a partir do sincretismo entre Evangelho e pensamento grego nos primeiros séculos, os conceitos de evangelização e salvação foram sendo revistos. Evangelizar passou a ser entendido no sentido de cristianização, ou seja, converter os pagãos à religião cristã e a salvação foi esvaziada de sua dimensão histórica e tornou-se salvação da “alma”, como cuidado único da dimensão espiritual do ser humano que sobrevive à morte. Nisso, por muito tempo, os esforços se concentraram em converter as pessoas à prática religiosa católica e através desta garantir aos convertidos a possibilidade de salvarem suas almas.
O Concílio Vaticano II na constituição pastoral Gaudium et spes, voltou as fontes bíblicas e retornou à compreensão que é o coração do Evangelho: o cuidado de Jesus com o ser humano. Para o Concílio é a pessoa que deve ser salva, não apenas sua dimensão espiritual: “o eixo de nossa exposição será o ser humano na sua unidade e na sua totalidade, corpo e alma, coração e consciência, espírito e vontade (GS 3)”. O escândalo da fé cristã é que Deus se coloca a serviço do ser humano, se abaixa para lavar os pés da humanidade (Jo 13,3-15). Se o Mestre lavou os pés da humanidade, a comunidade cristã não possui outra opção senão imitá-lo.
Passados sessenta anos desde a conclusão do Concílio, a Igreja parece ter retrocedido nas opções conciliares. De uma igreja que nos primeiros decênios pós Concílio se despiu das estruturas e roupagens de poder, passa-se agora a uma igreja que deseja novamente tudo aquilo do qual abriu mão. Por qual motivo? Talvez porque o Evangelho atrai pelo fato de comunicar vida, mas é vazio de poder. Enquanto que a religião como tal exerce poder, controle, domínio de consciências e garante status. Não apenas se quer retroceder para dentro das sacristias, mas se deseja uma igreja não sacramental, ou seja, se faz opção por não mais comunicar vida ao mundo. Interessa salvar as “almas” daqueles que estão dentro.
Esse é o motivo pelo qual Francisco caminha para um lado, enquanto parte considerável da Igreja caminha para outro. Francisco é um homem do Concílio, conhece bem suas opções. Não é um progressista como tantos dizem, mas alguém fiel às intuições conciliares que outros tentaram (e quase conseguiram) frear. Com clareza se percebe a distinção entre os discursos, prática e textos de Francisco e o discurso e propostas pastorais de muitos clérigos. Isso não é acidental, é uma opção!
Talvez o que mais visibilize essa tendência ao fechamento e o retorno às lógicas de poder seja o modo como as redes sociais e as TVs “católicas” apresentam a fé. Pregações que desconsideram o magistério conciliar e do Papa Francisco; transformação dos símbolos em amuletos; visões mágicas em relação à oração; superstições baseadas em supostas visões de Jesus, de Maria e dos santos; práticas devocionais acima do discipulado de Jesus. Em suma, o Evangelho instrumentalizado como moldura para um comércio religioso. Vender religião é lucrativo, hipnotizante e eficaz. Por vezes se falou de prática de exploração em igrejas evangélicas e agora os católicos correm o risco de cair no mesmo erro que outrora levou Lutero a protestar.
Há uma decisão a ser tomada: anunciar o Evangelho ou vender religião? É claro que vender religião e alimentar as pessoas com devoções sem nenhum extrato evangélico rende muito, pois garante igrejas e cofres cheios. E diante de enormes estruturas que devem ser sustentadas a tentação é muito grande. Ao mesmo tempo, cair nessa tentação significa estabelecer uma pastoral sem profecia alguma, de manutenção, preocupada excessivamente com a opinião pública e com as aparências institucionais. É sempre uma decisão. Penso que a resposta certa está em olhar como agiu Jesus diante da religião e das instituições de sua época e perceber quais foram suas escolhas.