Por Eliseu Wisniewski*
*Presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
Eis o artigo:
O tema dos abusos é muito amplo e inúmeros autores têm se debruçado sobre ele. Se, por um lado, exaustivamente, tem-se falado dos abusos sexuais, por outro, uma questão que ainda não recebeu atenção suficiente diz respeito ao abuso espiritual. Trata-se de uma manipulação invisível. Enfrentar esse tema quase inexplorado no Brasil é tarefa da obra Abuso espiritual: a manipulação invisível (Paulus, 2024, 208 p.), magistralmente escrita pelo doutor em Filosofia da Educação e Teologia Gabriel Perissé.
O referido autor observa que “atualmente, graças a uma sensibilidade maior para perceber e denunciar situações intoleráveis, tornou-se possível falar abertamente sobre ‘abuso espiritual’, ainda que no passado, e é justo dar créditos a quem se mostrou corajoso, alguns autores já detectassem o problema” (p. 14).
Para Perissé, “existe abuso espiritual quando alguém se prevalece de sua posição ou de sua autoridade religiosa para dominar e manipular outra pessoa” (p. 11), e, por isso, “todo abuso é uma violação da alma, na medida em que atinge a nossa dignidade de seres humanos, na medida em que não nos fere apenas por fora, no corpo, no bolso, mas, sobretudo por dentro, em nossa afetividade e em nossa liberdade. O abuso espiritual, porém, vai ainda mais longe e mais fundo. Atinge ‘a alma de nossa alma’, e por isso é o pior dos abusos, embora possa passar despercebido” (p. 19). Lembra ainda que “a manipulação espiritual é uma espécie de mão invisível que penetra em nós e altera por dentro nossa visão de mundo, como se instalasse um ‘eu’ novo, um ‘eu’ diferente, que se sobrepõe ao nosso antigo ‘eu’. Esse ‘eu’ novo é o próprio abusador dentro de nós, comandando nossa consciência. Passamos a olhar o mundo com os olhos do abusador, a pensar o mundo com o cérebro do abusador. Devemos nos tornar membros manipulados e manipuladores do manipulador-mor” (p. 51).
Sendo um problema silencioso e uma preocupante realidade em muitos movimentos e grupos religiosos, nos doze capítulos da obra, Perissé esclarece quais são os mecanismos e os truques da manipulação, quem são as vítimas perfeitas do abusador espiritual, que tipo de gente pratica essa forma específica de abuso, como não cair nas armadilhas dos abusadores, no campo tão sutil da espiritualidade, como distinguir uma legítima orientação espiritual, que podemos acolher sem receio, de um comportamento assediador, em que momento uma comunidade de fé se transforma em seita invasiva, autoritária e destrutiva, quais os truques da manipulação espiritual. De modo humorado e sem perder a seriedade o autor coloca o leitor diante destes temas: 1) Outros abusos e o abuso espiritual (p. 17-31, 2), A vítima perfeita (p. 33-46), 3) Os truques da manipulação (p. 47-58), 4) A ideologia do medo (p. 59-72), 5) O complexo de santidade (p. 73-84), 6) Fanatismo pouco é bobagem (p. 85-98), 7) Nenhuma seita aceita que é seita (p. 99-116), 8) Fundamentalismo sem fundamento (p. 117-130), 9) Novos elogios à loucura (p. 131-146), 10) Deus no descontrole (p. 147-161), 11) Medo nunca mais (p. 163-175), 12) Discernimento (p. 177-194).
Ronaldo Zacharias, ao prefaciar a obra (p. 7-10), observa que Perissé “descortina diante do leitor um palco em que desfilam tantas aberrações, resultantes de egos inflados pela própria ignorância e/ou malícia e de personalidades doentias que não sentem remorso algum de se impor às pessoas como autênticos e exclusivos intérpretes da vontade de Deus a respeito delas” (p. 9). Pontua, ainda, que “o abuso espiritual, nas suas mais variadas expressões, revela que, quando ministros e pastores se afastam da lógica kenótica proposta e testemunhada por Jesus, acabam buscando segurança em si mesmos e, consequentemente, tornam-se servos do poder para que possam sustentar o próprio narcisismo e a própria autorreferencialidade. A subversão da lógica kenótica produz sujeitos autocontemplativos, que exaltam e reverenciam o monoteísmo do eu e, desse modo, traem o Deus que dizem tanto ser a razão do que são e dos “milagres” que fazem. Distanciando-se da verdadeira videira, deixam de produzir o que devem e se tornam, assim, infiéis. Passam a ser, mesmo que se autoproclamem ministros de Deus e pastores do povo, expressão mais clara do quanto a infecundidade leva à infidelidade. A manipulação invisível do abuso espiritual dá visibilidade a uma hipocrisia que não tem nada a ver com libertação e salvação, mas muito com os mecanismos dos quais se servem os filhos das trevas quando pretendem dar outros nomes à própria imoralidade” (p. 10).
Numa atmosfera fundamentalista, com pitadas de loucura, como a que boa parte do mundo se encontra hoje, a obra de Perissé, além de ser um guia para identificação de possíveis excessos cometidos por líderes religiosos é um convite ao discernimento, a tomar coragem e nos libertar dos abusadores espirituais, ou tomar consciência de que somos nós a agir como abusadores. Como ele mesmo diz, “para que a pessoa se liberte do abusador, precisará tomar consciência de sua real situação e de que, mesmo sendo uma ‘vitima perfeita’, não está condenada a ocupar esse papel para sempre” (p. 31). “A tendência é que tenhamos cada vez mais lucidez para discutir sobre manipulação espiritual e lideranças tóxicas dentro de ambientes religiosos. Pesquisar com discernimento é condição sine qua non para fortalecermos essa tendência” (p. 15). Vigilantes “para não sermos vítimas, e para não sermos algozes. Esta é uma ideia importante: ninguém nasce abusador ou abusadora. Todos nós podemos nos tornar manipuladores da alma de alguém. Para não corrermos esse risco, é preciso receber uma formação permanente e integral, formação humanizadora, formação espiritual, formação teológica também, sobretudo se ocupamos cargos de responsabilidade eclesial” (p. 191).