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Publicado em número 147 - (pp. 7-12)

A humanidade nova

Por Fr. Gilberto Gorgulho, op

Introdução

A leitura do Apocalipse de João é fundamental para encarnar a relação entre fé e política, e para realizar o testemunho cristão, no meio do mundo em conflito, como práxis de libertação. Pois o Apocalipse mostra que a política, muito mais do que discernimento do poder, é discernimento e realização da práxis de libertação e resgate da vida de um povo livre. O apocalipse, ou a manifestação do julgamento de Deus no processo histórico, é revelação, testemunho e profecia (cf. Ap 1,1-3).

A revelação do julgamento de Deus, na morte e ressurreição de Jesus de Nazaré, constitui o testemunho fundamental da história humana. A ação dos discípulos consiste em continuar e atualizar esse testemunho libertador. A novidade da revelação está em anunciar que é preciso “profetizar ainda…” (Ap 10,11). A ação cristã no meio do mundo em conflito é expressão dessa profecia que coloca o povo de Deus em marcha para a realização plena da Vida da Nova Humanidade.

O livro do Apocalipse é, por isso, predileto das comunidades populares. Aí elas encontram o ânimo para a luta. Descobrem o critério para interpretar a dominação e a perseguição. Encontram, sobretudo, o caminho para enfrentar os poderes que estão na raiz da sociedade e destroem a vida de um povo livre. As comunidades percebem que o desafio está em enfrentar a “caricatura da Trindade”: o Dragão, a primeira Besta e a segunda Besta. Nesse confronto, o testemunho profético é identificação e união com a Vida que vem do Pai, na força do testemunho do Filho e na comunicação que é o Espírito. Porque o testemunho de Jesus o espírito da profecia (cf. Ap 19,10).

Essa conaturalidade das comunidades atuais encontra eco e analogia com as primeiras comunidades para as quais o livro foi escrito e dirigido. De fato, o apocalipse foi escrito para que as comunidades aprendessem e praticassem o discernimento da violência e da força de morte do imperialismo dominador do Império Romano, no final do primeiro século. Com efeito, a partir do imperador Domiciano o imperialismo romano se impôs como ideologia hegemônica de Dominação e de perseguição, até com a divinização do Senhor (Kyrios) Imperador.

Diante desse imperialismo era preciso discernir o que o Espírito dizia às Igrejas. Era preciso fazer a ligação entre a utopia da nova humanidade e as medições concretas que a encarnam no processo histórico.

Nosso intento é mostrar as dimensões da Nova Humanidade, a partir da utopia da Jerusalém celeste (Ap 21,1-22,5). Aí se encontram os critérios para o discernimento e busca de mediações e de modelos sociais alternativos em vista da libertação e vida para o povo solidário.

 

1. A nova Eva

Apocalipse 12 mostra como irá formar-se a Humanidade Nova. O sinal da Mulher vestida de sol é a Nova Humanidade que se forma a partir da vida de Jesus Cristo, morto e ressuscitado. A Mulher vestida de sol é a nova Eva, tal como foi descrita em Gênesis 3,15-16 e 20.

A meta final será a união dos homens com Jesus Cristo, na Jerusalém celeste. A Humanidade Nova é a esposa do Cordeiro, com o qual realiza as bodas de uma união de vida sem fim (Ap 21,9). Antes, porém, há uma fase anterior que é a realização de todo o processo histórico, de geração em geração, até o final dos tempos. É a formação, no decorrer das gerações humanas, desta Humanidade Nova, a nova Eva, esposa do Cordeiro imolado que é o segundo Adão.

Com essa imagem da nova Eva o autor do Apocalipse faz uma leitura de Gênesis 1-11. Aí ele vê uma história profética de toda a humanidade. Essa história serve-lhe de eixo para apresentar a sua mensagem, através de um estreito paralelismo entre o primeiro Adão e Jesus Cristo anunciado como segundo Adão libertador e salvador da humanidade toda. Ora, em Gênesis 2-3, a história da humanidade se faz a partir da figura de Adão e de Eva: Adão é o SER-VIVO (Gn 2,7) e é o ESPOSO DE EVA, a Mãe dos Viventes (Gn 2,24).

A novidade está no fato de que o Ser-Vivo, princípio de vida de onde surge a Humanidade Nova, é Jesus Cristo morto e ressuscitado. Ele é o segundo Adão, princípio da verdadeira vida para a humanidade. Esta não se encontra mais na situação de dominação e de morte. Sua história não terminará na confusão de Babel (cf. Ap 17-19), como aconteceu com a humanidade saída do primeiro Adão (cf. Gn 11). A Nova Humanidade chegará a participar da Vida plena e a comer do fruto da árvore da vida que fora perdido no primeiro paraíso. A Humanidade Nova é chamada para a vida imortal e plena (Ap 1,18; 22,2).

O primeiro Adão é também o esposo de Eva (Gn 2,24). Aí o autor do Apocalipse viu a revelação do sentido da história humana. A humanidade é a Mulher, vestida de sol. Ela é, ao mesmo tempo, a mãe do Messias vencedor da morte: o Messias é homem e nasce da humanidade. Morre na cruz e ressuscita. Essa humanidade renovada pela ressurreição do Messias é a esposa do novo Adão. Assim, o sentido da história, o dinamismo da marcha das gerações, está na realização da comunhão da humanidade com o Cristo ressuscitado. O sentido da história humana é a marcha para as bodas do Cordeiro, na Jerusalém celeste. O processo de libertação do povo do poder da idolatria imperialista toma o sentido positivo de construção de comunidades vivas que encarnam as notas características da Cidade-Esposa do Ressuscitado (Ap 19,7-9).

A nova Eva é a Mãe dos Viventes. Terá uma descendência (cf. Gn 3,15) que irá lutar contra a serpente. Mas essa descendência sairá vitoriosa nessa luta e conseguirá atingir o fruto da árvore da vida. Nessa história da Mãe dos Viventes, a nova Eva, o autor vê a humanidade em gestação no novo mundo da vida, da liberdade e da solidariedade. Isso se realiza na união que existe entre Cristo e a Humanidade resgatada da dominação e da morte. Ambos nascem para a mesma Vida. Participam da mesma luta e da mesma vitória. A vida, a luta e a vitória de um é a vida, a luta e a vitória do outro (Ap 12,5; 21,2 e 7). Pois Cristo, Filho da nova Eva que é a Humanidade, lhe é tão solidário que sua vitória é a vitória da Humanidade (Ap 19,11.16.17). A nova Eva é o sinal do mundo novo em gestação na história a partir da ressurreição de Jesus Cristo.

 

2. A Noiva do Cordeiro

O sentido da história está para além da história! Ele se personifica na figura da Noiva que desce do céu e é chamada a ser a esposa do Cordeiro. A nova Eva é a esposa do segundo Adão (Ap 21,2 e 9).

Esse anúncio se faz no conjunto de sete visões finais que contemplam a união definitiva entre o Esposo e a Esposa, na cidade perfeita. Contraposta à velha Babilônia, surge a nova Jerusalém. Ela vem do céu como cidade perfeita. É ecumênica, universal, apostólica e da plena partilha da vida libertada. Assim o anúncio da visão final da Cidade santa toma como ponto de partida a proclamação da vitória do Ressuscitado. Apocalipse 19-21 forma um conjunto que revela o sentido final e transcendente da história, a partir da vitória de Jesus sobre a morte. Ele é o Rei dos reis, o Senhor dos senhores. O sentido da história não está no imperialismo do Estado romano. Está no testemunho dos que encarnam a vitória do Ressuscitado no meio da dominação e da perseguição que destrói o povo. É a visão do céu que orienta a práxis de libertação e de luta das testemunhas contra a “caricatura da Trindade”, ou os poderes do Estado que concentram as forças da economia, da política e da ideologia para constituir uma cidade idólatra e determinada pela negação da Vida e da Liberdade (cf. Ap 19,11; 20,1.4.11.12; 21,1 e 2).

De fato, Ap 19 anuncia que a Palavra, guerreiro vitorioso, leva a Esposa para as bodas, na Cidade perfeita. Ele coloca a história em marcha: Ele já venceu, ele vence e terá a vitória final. Ele realizará a união coma sua Esposa, na Cidade santa e perfeita. Aí se dará a consumação do processo da libertação do povo. O julgamento da cidade idólatra e entregue à prostituição é o ponto de partida para o surgimento da Noiva do Cordeiro chamada à vida de comunhão e de liberdade (Ap 19,3).

A “prostituição” da grande cidade — o que constitui também uma tentação para as comunidades cristãs (Ap 2,14; 2,20) — consiste em organizar as relações econômicas e políticas no espírito do Dragão, isto é, na injustiça, na dominação e na destruição da liberdade. Aí nasce e se sustenta o poder imperialista que domina pelas forças militar e ideológica. As pessoas perdem a liberdade e se tornam escravas do poder e da injustiça.

O primeiro passo consiste na libertação dessas forças imanentes à história e que engendram o imperialismo idólatra. É a negação da comunhão livre, por isso o primeiro passo consiste nesta libertação do poder do Dragão e das duas Bestas que o manifestam dentro do processo histórico.

A segunda fase é a libertação para as bodas do Cordeiro (Ap 19,7). O Ressuscitado, por sua vitória, coloca a humanidade no caminho da comunhão definitiva. Ele veio instaurar a nova Aliança cuja consumação se dará na Cidade perfeita. O amor solidário deve penetrar em todas as estruturas e em todas as relações sociais de produção e de reprodução da vida do povo. Somente assim é que as comunidades humanas caminham para sua realização plena.

Chegou o tempo das bodas do Cordeiro. Cristo veio ao mundo, Filho da Humanidade e também o seu Esposo. Ele veio para unir-se aos homens e para levá-los a viver de sua própria vida. Ele é o centro da nova Aliança e é o Senhor do processo histórico (Ap 19,16). A mensagem sobre as bodas do Cordeiro não é uma explicação neutra sobre Jesus Cristo. A figura do Esposo é a manifestação de sua realeza universal e anúncio de sua vinda na história. Ele vem e interpela à liberdade, provoca a conversão e a mudança das estruturas dominadas pelo poder que é “caricaturada Trindade”. Ele vem como Rei e como Juiz para instaurar a verdade, a liberdade e a comunhão. Ele reina dando vida plena. Coloca a humanidade, sua Noiva, em marcha para a comunhão e a unidade. Esta vinda é o fundamento da libertação da “prostituição de Babel” e a formação da vida nova de sua Esposa. O testemunho de Jesus e dos seus seguidores possui a mesma estrutura e converge para o mesmo fim: libertar as pessoas e as estruturas que exprimem a vida coletiva do povo para que vivam sob a moção do Espírito, para ser com os outros em relações humanas novas, movidas pela verdade da justiça e do amor.

Esse polo positivo da libertação é um dom transcendente. É a novidade absoluta do dom gratuito de Deus que vem do céu e penetra nas estruturas e nos mecanismos sociais. É a realização plena da Aliança que se corporifica na figura da noiva do Cordeiro, a esposa que desce do céu (Ap 21,1-8).

Essa primeira unidade do anúncio da Jerusalém celeste mostra que o fim da história não está nas forças imanentes e dialéticas que se exprimem nos conflitos econômicos, políticos e ideológicos. Não se trata de uma simples transformação imanente. A Noiva apresenta a sua novidade por sua origem celeste que lhe confere uma novidade transcendente (v. 2). Aparece no interior da nova Terra e é nova como o mundo na qual se situa. É a manifestação plena da realidade “povo”: sociedade que supera a dominação, a dispersão e a morte. O povo se realiza pela participação efetiva na comunhão de vida plena. Nele realiza-se a presença de Deus que acontece na ação livre e solidária do amor mútuo.

A nova Jerusalém possui, então, uma primeira qualidade: vem do céu e é inteiramente nova (v. 2). Há uma descontinuidade com o mundo antigo. E uma nova criação, inteiramente gratuita, cuja origem está no poder e no amor de Deus. Esta novidade é a comunhão de um povo santo, libertado de toda sorte de mal (Ap 21,3.7-8). A Noiva é o povo santo que vem das lutas e do meio da tribulação causada pelo poder do Dragão, da Besta que é o Estado imperialista, e da ideologia do falso profeta que cimenta e justifica tal imperialismo. O povo santo é aquele que encarna e continua o testemunho de Jesus contra as forças da idolatria e da morte (cf. Ap 7,14-17).

Essa união entre Noiva e seu Esposo contém, portanto, alguns elementos básicos que constituem a perfeição fundamental da Cidade santa (v. 2):

— É a consumação plena da presença de Deus que se comunica com os homens: Ele se doa em comunhão e habita com eles (como no antigo templo e na tenda do deserto). A presença é a comunicação plena e sem limites da vida (v. 3).

— Realiza-se, assim, a união plena da Aliança cuja fórmula clássica é relembrada: a união realiza-se pelo “Deus-com-eles”, o Emanuel.

— Não existe mais sofrimento ou qualquer sorte de privação (v. 4), pois o pecado e a morte são erradicados e o povo santo vive da perfeição de seu Esposo e tem acesso ao fruto da árvore da vida.

— A Vida é comunicada plenamente e os homens tornam-se Filhos de Deus, participando de seu próprio ser e realizando a vocação plena do Povo-Filho como anunciavam os profetas (Os 11,1ss; Dt 14,1ss; Ap 21,5). Essa filiação é a participação plena na realidade da vitória do Messias-Rei que é o Filho por excelência e que vence todos os inimigos. A Vida na Jerusalém celeste é, pois, a plenitude da vida deste povo como sacerdotes e reis para Deus, na união com a vida e com a ação do Messias vitorioso por sua morte e ressurreição (cf. Ap 1,6; 21,7).

 

É a esperança desta Cidade santa que anima e sustenta o testemunho das comunidades: o Espírito, constantemente, lhes relembra o seu nome e lhes refaz a imagem, no interior das cidades terrestres (cf. Ap 3,12).

 

3. A Cidade perfeita

A realidade final da história é a perfeição da Cidade, o ápice da atividade humana no tempo. A história começou num jardim, símbolo do trabalho do clã camponês sem exploração, e como a célula fundamental da sociedade livre e solidária (cf. Gn 2-3). O fim da história é a Cidade santa e perfeita. Ela é o quadro do novo céu e da nova terra. É a realidade plena do mundo da ressurreição, a glória da humanidade resgatada da corrupção e da morte e chamada a participar da glória do Deus Trino, no acesso à Vida imortal. Este é o anúncio da segunda parte da última visão que proclama a glória da Jerusalém celeste: Ap 21,9-27.

A glória é a expressão e o sinal da função da Cidade perfeita de abrigar e fazer existir a Nova Humanidade, na união da Vida com o Ressuscitado. A ideia da glória — imagem que vem dos profetas (cf. Is 60;62) — quer evocar a plenitude da perfeição e brilho de seu ser participante do próprio ser divino (v. 11).

Os vv. 12-14 falam da estrutura básica da Cidade (cf. Is 54,11; 62,6) cuja característica é o nome dos Apóstolos inscritos em seus fundamentos. Depois, à maneira de Ezequiel 40,3-43, descrevem as medidas que indicam sua harmonia estável e permanente (vv. 15-17): estabilidade harmônica que evoca a eternidade da tota simul et perfecta possessio.

Os vv. 18-21 afirmam a beleza do resplendor da glória messiânica que chega ao seu fim. Esta Cidade ao precisa mais de mediações, porque a Vida é partilhada na visão direta de Deus (vv. 22-23). Esta perfeição é o ponto de chegada e a aspiração de todas as nações que para lá fazem sua caminhada (vv. 24-27).

A Cidade nova, perfeita e santa, realiza os elementos da sociedade ideal. Ela é a expressão efetiva do novo ser redimido, é a nova criação. É a plenitude da ação e dos valores humanos que se exprimem na harmonia de sua forma arquitetônica. Encontram-se aí todas as nações, as riquezas da criação e a universalidade dos povos reunidos num só povo, em Deus e em Cristo. A Cidade nova é a sociedade perfeita, sem classes e sem mediações, no gozo pleno da Vida e da Santidade do próprio Deus. E a realização definitiva, sem sombras e sem obstáculos, da realidade “povo”.

A nova Jerusalém pertence ao futuro. Não se manifestou ainda. Mas a visão de sua perfeição é o modelo e a medida que anima e impulsiona a vida de todas as cidades e do universo humano inteiro. Existe, porém, uma realização antecipada e misteriosa dessa Cidade na vida do povo, seguidor do testemunho de Cristo, com suas características típicas: apostolicidade, catolicidade, santidade e unidade. A Cidade santa é a realização plena dessas características que, aliás, são o fundamento de todo projeto de sociedade que quer ser a expressão e o quadro concreto da vida de um povo livre e solidário.

A perfeição da Cidade celeste é a utopia que anima e inspira a marcha do povo de Deus na história. A função dessa visão do mundo novo é criticar os modelos atuais da vida social e procurar os meios para realizar, o mais possível, a perfeição proclamada. A crítica dos modelos e das mediações estimula os projetos e os instrumentos colocados a serviço da construção e manutenção da vida solidária do povo. As mediações devem estar a serviço da comunhão e da vida partilhada em comum, por todos, sem discriminação e sem exclusão. De fato, a característica principal é a perfeição e a harmonia. Perfeição harmônica (vv. 15-17) e esplendorosa como o próprio ser divino (vv. 18-21). A Cidade perfeita representa o ápice da atividade humana levada à plenitude. A forma arquitetônica e as medidas evocam a função e sentido da ciência, da técnica, da arte e da cultura em vista da comunhão e da vida coletiva. Os valores humanos são assumidos e transformados na sua plenitude (cf. Gaudium et Spes, 38-39).

A comunhão se realiza na união imediata, sem mediações. Não há mais templo, nem mediação alguma (vv. 22-23). Todas as mediações necessárias para constituir o povo (sacrifício, clero, reis, polícia, classes, exércitos etc.) não existirão mais. Existe somente o povo, régio e sacerdotal, participando diretamente da Vida de Deus, em Cristo, na força do Espírito. É a humanidade ideal que os povos procuram em suas organizações sociais e mediações institucionais. É a comunhão plena na verdade e no amor de uns pelos outros, sem nenhuma coerção, sem lei ou qualquer instituição. É simplesmente a união e a comunhão com a Vida de Deus e do Ressuscitado.

 

4. A plenitude da Vida

No interior da nova Jerusalém o autor apresenta a sua sétima perfeição. É a conclusão da visão do futuro: Ap 22,1-5.

De Deus vem a vida, e com a vida a paz (v. 3a). A presença de Deus (v. 3c) e a visão face a face de Deus (v. 4a) constituem como que o ato final da vida da nova Cidade. O nome de Deus é comunicado (v. 4b). Ele será a luz (v. 5a). O paraíso é reencontrado onde o novo Adão, Esposo da nova Eva, lhe dá do fruto da árvore da vida que provém de Deus Trino que se comunica em totalidade.

Assim, no interior da Cidade está o mistério da Vida em plenitude. Os homens veem a Deus diretamente, e com ele vivem a sua Vida imortal. No centro desse mundo totalmente novo está o Deus Pai, Filho e Espírito. O Espírito como um rio que vem do trono de Deus e do Cordeiro, procede do Pai e do Filho, e comunica a plenitude da Vida de quem vive na unidade perfeita (vv. 1-2). Nessa comunicação podem os homens possuir a mesma vida, numa visão imediata do ser de Deus e do Ressuscitado (v. 3), sendo divinizados pelo nome divino que está inscrito em seus próprios seres.

 

5. A utopia e o testemunho

A visão da Jerusalém celeste é estímulo e base para o testemunho das comunidades cristãs perseguidas e dominadas pelo imperialismo do Estado romano. Aí o testemunho encontra o modelo e a medida da ação libertadora. A função social da utopia consiste em orientar esta ação para desestruturar a força imperialista do Estado e transformar a cidade prostituta em Noiva do Cordeiro.

Assim, a primeira dimensão da utopia revela a natureza e a missão do povo, na figura da Esposa. Na realidade social “povo” há algo que escapa ao alcance das ciências humanas. Existe uma realidade transcendente. O povo só se forma pelo dom da Palavra e do Espírito. O povo se constrói pelo amor que supera os conflitos e as lutas econômicas, políticas e ideológicas. Povo é comunhão que é possível pela presença e ação do Espírito no processo social. A tarefa básica do testemunho consiste em colocar essa realidade como critério da ação e da organização das forças e dos organismos sociais. Pois, sendo fruto e expressão histórica do amor, o povo é um sujeito coletivo que liberta da dominação, da dispersão e da divisão, e constrói a comunhão na reprodução da vida comum.

Inspirado na utopia da Cidade perfeita, o testemunho retira do poder a sua força coercitiva de destruição dessa vida coletiva. É a tarefa de transformar o poder em serviço de defesa e de sustento da vida, na justiça e solidariedade. As mediações e instituições políticas estão subordinadas e ao serviço do povo. É tarefa do testemunho libertar do imperialismo do Estado cujo poder enraíza-se na força do “Dragão” e manifesta sua força através da “segunda Besta”. O testemunho desestrutura essa tríade para abrir o caminho da Liberdade e da Vida. O testemunho atinge o poder em suas manifestações estruturais, na sua motivação ideológica, chegando até a sua raiz antropológica mais profunda (cf. Jo 8,44ss):

— A força destruidora e violenta instala-se no poder e na estrutura do Estado que impõe a dominação absoluta, destruindo as relações de justiça e de comunhão. Esse poder faz da cidade a corporificação da “prostituição”. O primeiro passo do testemunho consiste em atingir esse nível do poder e destruí-lo pela força da palavra de Deus e pela promessa que vem da ressurreição (cf. Ap 19,19).

— O poder “embriaga”, ou envolve a totalidade da organização e das relações sociais, através do cimento e da força do falso profeta, ou da ideologia (cf. Ap 19,20). Esta opera maravilha, seduz, imprime a imagem da primeira Besta e leva a aceitar o imperialismo dominador como algo de natural e inquestionável. Faz-se mister suprimir o “espírito que sustenta a dominação e motiva a supressão da liberdade e da vida do povo. O testemunho na luta política é basicamente uma luta ideológica que dá a dimensão social à negação da Vida e da Cidade perfeita. Essa luta ideológica manifesta as dimensões do “anti-Reino de Deus”.

— É necessário, pois, levar a força do testemunho a penetrar e atingir a raiz mais profunda do imperialismo e da dominação. O importante está na destruição da força que vem do “Dragão”, o pai da mentira (cf. Ap 20,1-3; Jo 8,44). O testemunho político tem uma dimensão antropológica sem a qual não se mudam e não se constroem novas relações sociais. Essa raiz está no conhecimento e no discernimento que reintegra as pessoas e torna possível a realização da comunhão que constitui a vida da Esposa do Cordeiro (cf. Rm 1,28; Ap 20,4). É assim que o Reino Messiânico começa a se manifestar desde já no processo histórico, a caminho da consumação futura.

 

A missão do povo de Deus consiste, pois, na realeza e na vida de um povo sacerdotal (cf. Ap 20,4 e 6). O testemunho atualiza o julgamento e transforma o mundo exercendo a realeza de Cristo. Exerce a tarefa sacerdotal, destruindo e afastando a violência recíproca e tirando-a dos mecanismos e das instituições coletivas. O testemunho sacerdotal é um serviço de resgate do povo, abafado e suprimido pela força do poder e do espírito ideológico que o justifica. A liberdade é a raiz da Vida que frutifica no serviço e na doação mútua superando os germes da “segunda morte” (cf. Ap 20,6) e construindo a unidade da comunhão, características da união com Cristo, nas “bodas do Cordeiro” que ele promete e para a qual ele convida e conduz.*



* Cf. G. GORGULHO e A. F. ANDERSON. Não tenham medo Apocalipse. 9ª ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, pp. 184-200.

Fr. Gilberto Gorgulho, op