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Publicado em número 146 - (pp. 31-35)

A igreja na realidade brasileira

Por Pe. Darci Luiz Marin

(Entrevista com D. Aloísio Lorscheider)

D. Aloísio Lorscheider nasceu em 8 de outubro de 1924, na localidade de Picada Geraldo, município de Estrela, Estado do Rio Grande do Sul. Foi ordenado sacerdote em 22 de agosto de 1948. Em 1962 foi sagrado bispo de Santo Ângelo (RS). A partir de 1973 passou a residir em Fortaleza, no Estado do Ceará, como Arcebispo. No Consistório de 24 de maio de 1976, Paulo VI nomeou-o Cardeal.

Entre os diversos serviços de coordenação eclesial prestados por D. Aloísio, em nível latino-americano e brasileiro, destaca-se o da presidência do CELAM, no período de realização de sua III Conferência, em Puebla (México), há exatamente dez anos. Na alocução introdutória, D. Aloísio disse: “O tema da nossa III Conferência Geral é a Evangelização no presente e no futuro da América Latina. Proclamar hoje e amanhã o Evangelho a nossos povos latino-americanos, animados pela esperança e ao mesmo tempo torturados no mais profundo de seu ser pelo desprezo em sua dignidade, é não somente fraterno, nobre, enriquecedor, mas é também nossa missão, nosso dever, é nossa vida. O grito de esperança e angústia de nossos povos que chega até esta Conferência e pede uma resposta profética, exige o compromisso de encarnação da Palavra de Deus em nossa vida e em nosso anúncio”.

Essa tem sido a prática cotidiana deste grande Pastor da Igreja de nossos dias. Queremos, pois, partilhar fraternalmente com nossos leitores o que ele espontaneamente nos disse em resposta a algumas perguntas que lhe fizemos.

 

VIDA PASTORAL (VP): Qual o grande sinal dos tempos para os sacerdotes e agentes de pastoral hoje? Como vivenciar este sinal?

D. Aloísio: Vejo na emergência dos pobres o sinal mais característico para nós que vivemos na América Latina. Os pobres possuem uma força evangelizadora que revolucionará a pastoral e a organização da sociedade, se soubermos canalizá-la na linha da fé e do amor. Nada mais indicado para vivenciar este sinal do que a “profética (evangélica) opção preferencial e solidária pelos pobres”. A nossa mudança de lugar social é indispensável. É a partir dos pobres que realizamos a nova evangelização que o Santo Padre tanto enfatiza.

 

VP: Na ótica pastoral: O que nos deveria preocupar mais, como latino-americanos, às vésperas dos 500 anos de chegada dos primeiros missionários a estes nossos países?

D. Aloísio: Uma profunda revisão de toda a obra evangelizadora realizada pela Igreja nesses 500 anos. Nessa revisão é preciso ver o que houve de positivo. Formou-se um povo com um sentido de fé muito profundo, cuja manifestação mais clara é sua religiosidade cristã. Há, em nosso povo, certos princípios de vivência cristã que nos devem questionar hoje. Como é que os missionários conseguiram implantar no coração de nossos povos esta profundidade de fé, que nem a falta de ministros ordenados, nem a escassez de religiosos e religiosas, em várias épocas de nossa história, conseguiram arrancar e destruir? É só começar a ação pastoral e logo há muita sintonia do nosso povo com o Evangelho. De onde vem isso?

É necessário, porém, também ver o lado negativo que existe. Por que, por exemplo, a evangelização do passado não conseguiu evitar a tremenda injustiça de que somos vítimas hoje? Como é que se criou este hibridismo de pessoas bem situadas que se dizem católicas e se ofendem quando se afirma a respeito delas o contrário, e, contudo, oprimem os outros irmãos na fé, tratando-os como se escravos fossem. Aliás, a escravidão é, sem dúvida, um desses aspectos sombrios e obscuros de nossa história católica latino-americana. Acrescente-se a isso o extermínio dos nossos povos indígenas, o desrespeito total ao seu hábitat, à sua cultura, ao seu ser. O que houve? O que esteve errado?

Um exame de consciência sincero, uma revisão com desejos de uma evangelização realmente nova, deve animar-nos na celebração desses 500 anos. Caso contrário, tudo não passará de discursos ocos, sem consistência para o futuro. Nesse exame, porém, nem tanto ao mar nem tanto à terra. Em tudo devemos ser justos e manter um sadio equilíbrio.

 

VP: Como o senhor vê a realidade eclesiológica hoje na América Latina, especialmente no Brasil?

D. Aloísio: O Vaticano II acentua vários aspectos do mistério da Igreja, que geram necessariamente um novo tipo de pastoral.

Temos a Igreja Peregrina na história dos homens; a Igreja Testemunho-compromisso; a Igreja Povo de Deus, pedindo comunhão, participação, corresponsabilidade, focalizando a comunidade; a Igreja sempre em renovação, que se poderia denominar a Igreja Conversão; a Igreja Servidora da humanidade, Solidária com ela; a Igreja Missionária; a Igreja conduzida pelo Espírito Santo, onde os carismas são grandemente valorizados e, por isso, Igreja Carismática.

Essa acentuação por parte do Vaticano II de alguns aspectos mais correspondentes à vida atual da Igreja vista em si mesma e no seu relacionamento com o mundo, não exclui outros aspectos de índole mais institucional. O Vaticano II concentrou a sua atenção mais no aspecto de Igreja-mistério de salvação do que no aspecto de Igreja-instituição hierárquica de salvação.

Olhando já mais para a América Latina, onde Medellín e Puebla exercem papel importante, poderíamos, globalmente falando (as nuanças são muitas!), distinguir dois grandes modelos de Igreja: um, que se caracteriza pela preocupação e busca da salvação eterna do indivíduo, sem compromisso com a transformação de uma sociedade injusta, mas orientado, isto sim, para a vivência da honestidade cristã individual dentro do próprio ambiente de vida. A sua prática de fé é mais devocionista, mais sacramentalista, marcadamente jurisdicista, e faz dos mandamentos de Deus e da Igreja uma leitura fortemente individualista; outro, mais caracterizado pela busca de uma sociedade nova, dentro de um assumir comunitário participativo, marcado por uma vivência sociocrítico-profético-transformadora dentro do próprio contexto histórico de vida em que se encontra.

Nesta segunda visão, a oração, a palavra de Deus, os sacramentos, sem perda do seu aspecto profundamente salvador da pessoa em Jesus Cristo, possuem uma acentuação fortemente social. Abre mais espaço para os cristãos leigos; acentua muito a fidelidade a Jesus de Nazaré Filho de Deus (focaliza muito a humanidade de Jesus Cristo e a dimensão sociopolítica de sua vida); não se preocupa tanto com a apologética da fé cristã, quanto com o testemunho comunitário de fidelidade a Jesus e ao plano do Pai; os mandamentos de Deus e da Igreja são lidos mais numa dimensão comunitária; coloca-se decididamente na ótica do empobrecido.

Em síntese, teríamos dois grandes modelos de Igreja com fortes repercussões na pastoral: uma, de índole mais devocional e individual; outra, de índole mais profética e libertadora, com forte acentuação do comunitário.

 

VP: Nos últimos anos está havendo maior rigidez sobre o pensamento teológico que busca inovações. De que maneira poderíamos visualizar melhor o que acontece hoje nesse campo?

D. Aloísio: Na Igreja, no meu entender, não existe cerceamento quanto ao pensamento teológico. O pensamento é sempre dinâmico, como é dinâmica a fé à qual o pensamento presta o seu serviço. O que acontece hoje é apenas uma ajuda para que o pensamento teológico não enverede por estradas novas que possam levar a desvios doutrinários, que, por sua vez, seriam muito prejudiciais à pastoral. Uma das dificuldades hoje existentes é, sem dúvida, o da linguagem. A nossa teologia tomou um caráter mais pastoral, com uma linguagem mais aderente à vida e à prática, uma linguagem mais viva. Ora, tudo isso cria fáceis desentendimentos quando os termos não vêm bem definidos. Há ainda hoje outra novidade: a fisionomia própria de cada Igreja Particular. Isso traz consigo uma teologia mais dentro da vida de cada Igreja Particular. Há o risco de esquecer a dimensão mais universal da Igreja. Certas chamadas de atenção não nos deveriam afligir tanto. Faz parte de uma ciência, em si difícil, que deseja progredir e dar resposta aos problemas concretos da vida.

O Papa, na sua mensagem de 9 de abril de 1986 ao episcopado do Brasil, lembra o caminho necessário para uma sã teologia. Depois de haver lembrado que a teologia da libertação não é só oportuna, mas útil e necessária, ele continua, balizando: contanto que seja feita em estreita conexão com as teologias anteriores, com a reflexão teológica iniciada com a tradição apostólica e continuada com os grandes Padres e Doutores, com o Magistério ordinário e extraordinário e com o rico patrimônio da Doutrina Social da Igreja.

 

VP: Quais os novos passos que a teologia da libertação é chamada a dar hoje?

D. Aloísio: Parece-me que a teologia da libertação, reflexão de fé elaborada dentro de uma prática de libertação realizada pelos oprimidos em seus diversos movimentos, irá adquirindo mais e mais dimensões bem especificadas. Na aproximação do 500º aniversário de evangelização da América Latina, o aprofundamento da prática libertadora dos indígenas dentro também de suas culturas aparece como sumamente importante. Que teologia se aplicou na evangelização indígena? Que teologia se deveria ter aplicado? Que teologia devemos aplicar hoje, quando se trata de salvar alguém condenado a perecer?

O mesmo eu diria com relação à raça negra. A teologia da libertação, sendo uma teologia sumamente prática, realizada dentro da prática de libertação dos oprimidos, o que nos poderá dizer sobre os movimentos de libertação da raça negra entre nós? Onde a evangelização esteve certa e onde falhou? Por que esteve certa e por que falhou? São aspectos que a teologia da libertação ajudará a esclarecer, levando a uma prática efetivamente evangelizadora destes povos oprimidos, dentro de um respeito dos aspectos culturais legítimos.

Há toda uma militância cristã política que também está pedindo a orientação da fé dentro de uma prática política. Como deve ser, de fato, a pastoral política?

Há ainda a perspectiva da mulher. João Paulo II orienta com a Encíclica “Mulieris Dignitatem”, de 15 de agosto de 1988. Considerando a opressão em que vive a mulher, qual o autêntico caminho da autêntica libertação da mulher?

Os aspectos mais específicos que devem ser trabalhados pela teologia da libertação não faltam. A coleção “Teologia e Libertação”, com estudos sempre mais aprofundados, poderá dar boa contribuição para uma fé cristã sempre mais vivida, sempre mais praticada.

 

VP: Com referência aos ministérios a serviço da comunidade: Como o senhor vê as novas lideranças, sobretudo constituídas de mulheres, dinamizadoras das CEBs, Círculos Bíblicos etc.?

D. Aloísio: Na Exortação Apostólica Pós-Sinodal “Christifideles laici”, de 30 de dezembro de 1988, o Papa João Paulo II, aborda, no 2º capítulo, o problema dos ministérios, ofícios, funções dos cristãos leigos e dos cristãos sacerdotes. Distingue o Papa entre os ministérios derivados do sacramento da Ordem e os ministérios derivados dos sacramentos do Batismo e da Confirmação. É necessário manter sempre presente a diversidade essencial entre o sacerdócio ministerial e o sacerdócio comum do cristão leigo.

O Papa, a pedido do Sínodo dos Bispos sobre a vocação e missão do cristão leigo na Igreja e no Mundo, constituiu uma comissão especial que está estudando uma possível revisão do Motu Proprio de Paulo VI “Ministeria quaedam”, de 15 de agosto de 1972, e aprofundando problemas teológicos, litúrgicos, jurídicos e pastorais levantados pelo atual florescimento de ministérios confiados aos cristãos leigos.

O que significa isso? Que devemos aguardar um pouco nova orientação do Santo Padre ou da Santa Sé para maior clareza na questão dos ministérios.

O atual Direito Canônico dá uma orientação: “onde as necessidades da Igreja o aconselham, por falta de ministros, os leigos, mesmo que não sejam leitores ou acólitos, podem suprir alguns ofícios, como os de exercer o ministério da Palavra, presidir às orações litúrgicas, conferir o batismo e distribuir a sagrada comunhão, segundo as prescrições do direito” (Cânon 230 § 3). Vai mais na linha dos assim chamados ministros extraordinários.

Já respondendo mais diretamente à pergunta, eu não falaria de ministérios no caso da animação de CEBs ou de Círculos Bíblicos ou de outras reuniões da comunidade, mas falaria antes em ofícios ou funções ou tarefas. Nada impede que cristãos leigos se reúnam, que rezem juntos, estudem juntos a Palavra de Deus, que realizem atividades de caráter também sociocaritativo. Está dentro do seu ser profético, sacerdotal, régio. Tais tarefas até devem ser incentivadas, sempre com o cuidado que certas “lideranças” não se tornem dominadoras. A própria comunidade deve ser a líder, cabendo aos seus integrantes o papel de coordenador muito mais do que de liderança. É um ponto que pastoralmente também deveria ser mais aprofundado.

 

VP: A Campanha da Fraternidade de 1990 dedicará sua temática para tentar compreender melhor a situação da mulher em nossa sociedade e na Igreja. Quais as prioridades indispensáveis que deveriam fazer parte desta reflexão?

D. Aloísio: O tema “mulher” não é fácil. Embora se fale muito dele, talvez, ainda haja longo caminho a percorrer.

As prioridades, a meu ver, estão indicadas logo no início da Encíclica de João Paulo II sobre a mulher: a dignidade da mulher e a sua vocação. Esses dois aspectos têm sido objeto constante de reflexão humana e cristã. Impõe-se, nessa linha de pensamento, o aprofundamento dos fundamentos antropológicos e teológicos necessários para resolver os problemas relativos ao significado e à dignidade do ser mulher e do ser homem. O que é específico do ser mulher e o que é específico do ser homem. Por que Deus fez existir o ser humano sempre e somente como mulher e como homem? Quais as consequências disso?

A carta do Papa traz, sem dúvida, muita luz para todo este tema. Quem carrega o maior peso da pastoral deverá necessariamente analisá-la e torná-la como a orientação mais segura dada até agora. Aliás, o Santo Padre faz referências a diversos passos anteriores já dados pela Igreja no passado.

 

VP: No que se refere à sociedade brasileira: Quais os maiores problemas que ainda permanecem na nova Constituição do país? Como solucioná-los?

D. Aloísio: O problema da família com a sua instabilidade e o divórcio; o problema da reforma agrária que não foi assumida com seriedade, mas se legislou de tal forma que tudo se torna fluido e inseguro, embora se reconheça a função social da propriedade, dependendo, porém, como se relaciona esta função social com o direito individual à propriedade. Para a Igreja, a função social é intrínseca à propriedade; o destino universal dos bens como direito primário e fundamental é típico da doutrina social da Igreja. Em nossa Constituição Federal não se observa isso.

Faltou coragem aos Constituintes para legislar em favor da vida, defendendo-a desde sua concepção. A praga do aborto continua a rondar tantos inocentes em nossa pátria.

Um quarto problema é o do papel das Forças Armadas. É um assunto que mereceria maior aprofundamento. E o que se refere ao judiciário, será suficiente? Uma das áreas difíceis é a da justiça. Embora todos sejam iguais perante a lei, nem sempre isso acontece quando se trata de julgar pessoas menos bem situadas e pessoas melhor situadas.

A solução mais aperfeiçoada poderá vir daqui a cinco anos quando, segundo o artigo 3º das disposições constitucionais transitórias, se realizará a revisão constitucional pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral. Até lá será preciso trabalhar a opinião pública, para que a Carta Magna do país possa receber ulterior aperfeiçoamento.

Outra solução, em muitos casos, é a oportunidade da atual Assembleia Constituinte Estadual e a confecção das Leis Orgânicas dos Municípios.

 

VP: Em que medida a ação pastoral da Igreja no Brasil pode continuar fazendo frente às injustiças que aumentam geometricamente, abatendo-se impiedosamente sobre milhões de pessoas?

D. Aloísio: A Igreja no Brasil possui as suas Diretrizes de Ação Pastoral. São elas que orientam o fazer da Igreja diante deste mundo pecaminoso que aí está. Importa que todos assumam essas Diretrizes, de modo especial a evangélica opção preferencial e solidária pelos pobres. Se houver uma efetiva pastoral de conjunto em todas as dioceses e paróquias do nosso país, é certo que a vitória será da justiça e do amor fraterno. O compromisso com a justiça, que significa concretamente compromisso com os pobres, está ainda longe de ser assumido por todos. É bom que cada um pense na responsabilidade diante do enorme problema que aí está desafiando a todos.

 

VP: Qual a mensagem que o senhor gostaria de deixar aos milhares de sacerdotes e agentes de pastoral, que nos seguem através desta revista, para vivenciarem em profundidade os apelos do Evangelho no meio do povo no hoje de nossa história?

D. Aloísio: Tomar, como linha de trabalho, as Diretrizes Gerais da Ação Pastoral da Igreja no Brasil. Elas contêm toda uma teologia, espiritualidade e pastoral, necessárias para executarmos bem a nossa tarefa de embaixadores de Cristo. Elas nos ajudam em nosso ser e em nosso agir. Nesse sentido, eu diria: amor apaixonado a Jesus Cristo, fazendo da Eucaristia o centro de sua vida; adesão firme ao Santo Padre e aos Bispos; devoção bem orientada à Santíssima Virgem; amor, carinho e ternura pelos pobres.

 

Pe. Darci Luiz Marin