Publicado em março-abril de 2024 - ano 65 - número 356 - pp.: 32-34
3 de março – 3º Domingo da Quaresma
Por Maicon André Malacarne*
Jesus Cristo é o novo templo e a nova lei!
I. INTRODUÇÃO GERAL
O 3º domingo da Quaresma põe no centro os fundamentos do judaísmo – a Lei e o templo. Com o Evangelho, Jesus inaugurou nova forma de experiência religiosa – a nova Lei é fazer a vontade do Pai e o novo templo é seu corpo ressuscitado. São Paulo, na primeira carta aos Coríntios, traduz a “sabedoria da cruz”; ou seja, aquilo que o mundo considera fraqueza, loucura, é a força e a sabedoria de Deus. Trata-se de sabedoria nova, que lança luzes sobre novo estilo de vida, pessoal e comunitário, a ser assumido por todos os seguidores de Jesus.
Nosso empenho quaresmal precisa nos levar a assumir nova relação com o Pai, sustentada pelo dom, pela graça, pela aliança, pelo amor, pela vida, superando a tendência de “troca de favores” e de “cumprimento de normas”. O biblista italiano Ermes Ronchi, presbítero da Ordem dos Servos de Maria, ajuda-nos a abrir o mapa desta reflexão: “Se pudéssemos aprender a caminhar pela vida, nas ruas de nossas cidades, dentro de nossas casas e, gentilmente, na vida dos outros com reverência, como se fosse a casa de Deus, tirando nossos sapatos como Moisés na sarça ardente, então perceberíamos que estamos caminhando dentro de uma enorme catedral. Que o mundo inteiro é o céu, o céu de um só Deus” (homilia de 6/11/2014, disponível em avvenire.it, tradução nossa).
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
I. leitura (Ex 20,1-17)
Estamos em um dos textos mais importantes do Antigo Testamento, o Decálogo. Há outra tradição, com algumas variações, no capítulo 5 do livro do Deuteronômio. O texto do livro do Êxodo se inicia afirmando que Deus “pronunciou todas estas palavras” (v. 1). Não se fala em “mandamentos”, mas “palavras”. De fato, decálogo significa “dez palavras”. O papa Francisco, na catequese sobre o Decálogo, sublinhava exatamente essa dimensão:
Que diferença existe entre um comando e uma palavra? O comando é uma comunicação que não requer o diálogo. A palavra, ao contrário, é o meio essencial do relacionamento como diálogo. Deus Pai cria por meio da sua Palavra, e o seu Filho é a Palavra que se fez carne. O amor alimenta-se de palavras, como também a educação ou a colaboração. Duas pessoas que não se amam não conseguem comunicar-se. Quando alguém fala ao nosso coração, nossa solidão acaba. Recebe uma palavra, verifica-se a comunicação, e os mandamentos são palavras de Deus: Deus comunica-se nessas dez Palavras e aguarda nossa resposta (catequese do papa Francisco na Audiência Geral do dia 20/6/2018, disponível em vatican.va).
No princípio da Aliança, está a iniciativa de Deus e a relação com ele: “Eu sou Javé, seu Deus, que fiz você sair da terra do Egito, da casa da escravidão” (v. 2). As dez palavras entregues a Moisés são inauguradas com a recordação da identidade de Deus, criador e libertador! Para responder à Aliança e para abrir-se à relação com o Pai, não se pode esquecer dessa identidade, manipulando Deus conforme a própria vontade. A lei de Israel deve ter no centro a vida, o contrário da escravidão vivida no Egito. Com o Decálogo, há o salto da submissão à liberdade!
Nos v. 3-17 temos a descrição de cada uma das dez palavras: a proibição da idolatria (v. 3-6), de pronunciar o nome de Deus em vão (v. 7), o respeito ao sábado (v. 8-11), honrar pai e mãe (v. 12), não matar (v. 13) – palavra que está no centro e evidencia o Decálogo como grande projeto de vida e de liberdade. Além disso, não cometer adultério (v. 14), não roubar (v. 15), não levantar falso testemunho (v. 16) e, por fim, a proibição da cobiça (v. 17).
O Decálogo, portanto, não é somente uma lei exterior, mas sobretudo um itinerário que conduz na direção de uma vida mais digna e livre. Permanecer na Aliança é permanecer na verdade de uma relação de amor!
2. II leitura (1Cor 1,22-25)
Lewis Carroll, em Alice no país das maravilhas, narra o sonho de Alice em um país de loucos. A certa altura, encontramos o diálogo com o Gato: “Mas eu não quero andar entre gente louca”, protestou Alice. “Oh, não há nada a fazer”, disse o Gato, “aqui somos todos loucos. Eu sou doido e tu também”. “Como é que sabes que eu sou doida?”, perguntou Alice. “Deves ser”, respondeu o Gato, “senão não tinhas cá vindo parar!”
Alice sonhava um país de absurdos, de uma lógica pelo avesso! A narrativa faz lembrar a “loucura da cruz”, sobre a qual escreveu Paulo aos Coríntios. De fato, a realidade daquela comunidade era bastante dura. Muitos trabalhavam no famoso porto de Corinto em condição de escravidão. Em meio a essa realidade de pesadas cruzes, Paulo afirmou: “nós anunciamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos” (v. 23). Deus, na cruz de Jesus, sinal de vergonha, inverteu toda a lógica: “a loucura de Deus é mais sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (v. 25).
As palavras de Paulo foram consolação e esperança para aquela pequena e frágil comunidade, formada de simples trabalhadores. Deus está, pela cruz, “escandalosamente” próximo dos crucificados! Assume essa condição para ressuscitar, erguer, toda forma de desalento.
3. Evangelho (Jo 2,13-25)
A festa da Páscoa era o momento em que o povo recordava a libertação do Egito. Jerusalém ficava repleta de peregrinos. Jesus estava no templo e “fez um chicote de cordas” (v. 15). Ao expulsar os vendedores e os cambistas, esparramar as moedas e derrubar as mesas, disse: “Não transformem a casa de meu Pai num mercado” (v. 16). Ele evidenciou que a religião não pode ser um comércio, uma troca, um negócio, e que é preciso retornar ao dom, retornar à essência da relação com Deus.
O Evangelho de João, no prólogo, afirma que “a Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Trata-se de novidade imensa: o templo já não é um amontoado de pedras, mas “o seu corpo” (v. 21). Para entender o templo-corpo, é preciso recordar o evento Jesus Cristo: “Quando ele ressuscitou, os discípulos se lembraram do que Jesus tinha dito” (v. 22). Fazer memória da morte e da ressurreição do Senhor é retornar à identidade da Aliança de Deus com a humanidade, que passa pelo Decálogo e alcança plenitude na cruz.
Jesus Cristo é o novo templo, lugar por excelência do encontro com o Pai. Sobre essa nova condição, Paulo escreveu: “Ou vocês não sabem que seu corpo é templo do Espírito Santo?” (1Cor 6,19). Toda pessoa, assim, também é templo de Deus, e toda forma de instrumentalizar alguém – mediante discriminações, violências, preconceitos, ódio – é uma ofensa a Deus. De fato, invocando a tradição dos Padres da Igreja, recorda-se a máxima de Santo Irineu de que “a glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem é a visão de Deus”.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Participar do corpo vivo de Cristo é assumir uma vida de fraternidade! O caminho quaresmal também é iluminado pela Campanha da Fraternidade, com seu convite à amizade social: “Vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23,8). Com base na Aliança de Deus com a humanidade, no itinerário de vida e de liberdade do Decálogo, na identidade de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, somos convidados a assumir a “loucura” da cruz para viver como filhos e filhas, irmãos e irmãs. Nosso compromisso também é ser comunidade sempre mais viva, aberta, consoladora dos mais sofridos, acolhedora dos mais esquecidos e sinal permanente do Cristo Jesus!
Maicon André Malacarne*
*é presbítero da diocese de Erexim-RS. Possui mestrado em Teologia Moral pela Pontifícia Academia Alfonsiana (Roma), onde atualmente é doutorando na mesma área. É especialista em Juventude no Mundo Contemporâneo pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – Belo Horizonte-MG), formado em Filosofia pelo Instituto de Filosofia Berthier (Ifibe – Passo Fundo-RS) e em Teologia pela Itepa Faculdades (Passo Fundo-RS). É aluno de doutorado em Teologia Moral da Pontifícia Academia Alfonsiana (Roma). E-mail: [email protected]